sexta-feira, 28 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XI

Mais trechos traduzidos do terceiro capítulo: IV. A Materia Quantitate Signata  

À luz dessas considerações podemos enfim perceber toda a magnitude do desvio cartesiano. Pois parece que ao rejeitar as qualidades dos chamados atributos “secundários”, Galileu e Descartes eliminaram o que é na verdade primário: a própria essência das coisas corpóreas [12].

Ora, com certeza a física lida com os aspectos quantitativos da manifestação cósmica; e isso obviamente é legítimo e informativo até certo ponto. Mas não podemos esperar demais. Para toda sua afamada proeza, há limites no que a física é capaz de compreender ou explicar, e acontece dessas limitações serem muito mais rigorosas do que em geral tendemos a supor. Como observou o metafísico francês René Guénon:
Pode-se dizer que a quantidade, enquanto constituinte do lado substancial do mundo, é como se fosse uma condição “básica” ou fundamental: mas deve-se ter cuidado em não ir muito longe a ponto de atribuir-lhe uma importância de ordem maior do que é justificável, e mais particularmente não tentar extrair dela a explicação deste mundo. O fundamento de uma edificação não deve ser confundido com a sua superestrutura: enquanto há apenas uma fundação ainda não há a edificação, embora a fundação seja indispensável à edificação; da mesma forma, enquanto há apenas quantidade não há ainda manifestação sensível, embora a manifestação sensível seja radicada na quantidade. A quantidade, considerada em si mesma, é só uma “pressuposição” necessária, mas ela não explica nada; é na verdade uma base, e nada mais, e não se deve esquecer que a base é por definição aquilo situado no mais baixo nível. [13]

Ora, admite-se que a frase “não explica nada” talvez seja excessiva; mas todavia ela serve como um contrapeso a alegações não menos exorbitantes feitas por aqueles que “tentam extrair a explicação deste mundo” dos dados da física.

Estritamente falando, a única coisa que podemos entender sobre um objeto corpóreo nos termos da física são os seus atributos quantitativos; e além disso só podemos fazê-lo em virtude do fato de que os atributos em questão são herdados, por assim dizer, do objeto físico associado. Além deste ponto a física não tem mais nada a dizer. Ela tem “olhos” apenas para o físico: SX é tudo o que ela percebe, tudo que sempre aparece em seus gráficos. E essa é sem dúvida a razão porque os físicos têm conseguido convencer a si mesmos (e o resto do mundo instruído!) de que o objeto corpóreo como tal não existe; ou para colocar de outra forma: que X “não é nada senão” SX. Esta é a razão porque se pensa que as entidades corpóreas são “feitas de” átomos ou partículas subatômicas, e porque se defende que as qualidades são “meramente subjetivas”.

Finalmente, é preciso observar que essa suposta redução do corpóreo ao físico tem como efeito tornar ontologicamente incompreensível o próprio físico. podemos ainda, é claro, fazer cálculos e predições quantitativas, mas isso é tudo. Podemos de fato responder à pergunta “Quanto?” com incrível precisão; mas qualquer tentativa de responder à dúvida “O quê?” leva necessariamente à contradição ou absurdidade. Esta Weltanschauung (que na verdade não é uma Weltanschauung) não admite uma ontologia. E não é essa a conclusão a ser tirada do interminável debate sobre a “realidade quântica”? Ademais, é impossível sequer dar uma explicação não falsificada da metodologia científica dentro do quadro da posição reducionista, pois na ausência de qualidades não pode haver nenhuma percepção, e por isso também nenhuma medição. Estritamente falando, não conhecemos nem o corpóreo nem o físico, nem temos qualquer concepção clara do que é que a física trata. É de se admirar, então, que os físicos devam ter (nas palavras do físico Nick Herbert) “perdido o controle da realidade?” [14].



Notas
12. Para colocar em termos escolásticos: eles eliminaram precisamente as formas substanciais. Porém, na ausência das formas substanciais, o mundo corpóreo deixa de existir.

13. The Reign of Quantity (London: Luzac, 1953), p. 29.

14. Os leitores de Eric Voegelin podem se recordar da sua terrível tese de que, devido à dominação das “realidades segundas” nos tempos modernos, “desapareceu o fundamento comum da existência na realidade”, e que, como resultado, “desmoronou o universo do discurso racional”. (Veja “On Debate and Existence”, reimpresso no A Public Philosophy Reader, Arlington House, 1978). Parece haver muito de verdade neste argumento. Porém, Voegelin está pensando nas “realidades segundas” de um tipo cultural e ideológico; aparentemente, não lhe ocorreu que a “realidade segunda” mais importante – a que parece ser a base de todas as outras e que confundiu praticamente a todos – não é outra senão o universo físico como geralmente concebido. No momento em que se esquece que este chamado universo constitui apenas um domínio sub-existencial – uma mera potência em relação ao corpóreo –, cria-se um monstro. Pois de fato o domínio físico, assim “hipostasiado”, a partir daí se torna o principal usurpador da realidade, a grande ilusão da qual brotam uma multidão de erros maléficos. “Perder o controle da realidade” não é coisa pouca ou inofensiva!

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte VII

Mais trechos traduzidos do segundo capítulo: III. O Mundo Micro e a Indeterminância

Freqüentemente se diz que o mundo micro é indeterminístico [4], e supostamente essa alegação se baseia no princípio da incerteza de Heisenberg, ou no fenômeno da indeterminância, o que dá no mesmo. Fica a pergunta, contudo, sobre se a incerteza – ou indeterminância – de Heisenberg implica em indeterminismo.

Para começar, notemos que a incerteza de Heisenberg se refere não ao mundo micro ou ao universo físico como tal, mas aos resultados de medições, e portanto a uma transição do plano físico para o corpóreo. Por outro lado, no plano do mundo micro em si não existe algo como a incerteza de Heisenberg. Não podemos dizer, por exemplo, que a posição ou o momento de um elétron é incerta ou indeterminada, pela simples razão de que um elétron – em si e por si mesmo – não possui posição e nem momento. Em linguajar técnico, ele é descrito por um vetor de estado, que, como regra, não será um autovetor de nenhum observável.

O que, então, o chamado vetor de estado de um sistema físico nos diz em geral sobre um observável? Ele nos diz primeiramente duas coisas, ambas as quais são probabilísticas e conseqüentemente estatísticas em seu conteúdo empírico. Assim, em primeiro lugar, o vetor de estado determina um valor esperado, isto é, o valor médio do observável em um número suficientemente grande de observações – um conceito que pode realmente ser interpretado em termos precisos. E, em segundo lugar, o vetor de estado determina um chamado desvio padrão, outra quantidade probabilística, que nos diz, grosso modo, quão próximos, em média, os valores observados serão dos esperados. E esta noção, desnecessário dizer, pode novamente receber um preciso sentido estatístico.

Agora, recordaremos que o princípio da incerteza de Heisenberg envolve os desvios padrões Δp e Δq associados com os observáveis conjugados p e q. O que o princípio afirma, na verdade, é que

Δp Δq ≥ h/2π

onde h é a constante de Planck. E isso constitui um enunciado matemático preciso, que pode ser derivado dos axiomas da teoria quântica e interpretado empiricamente por conjuntos estatísticos.

A teoria quântica depende é do fato de que o vetor de estado – ou, de forma equivalente, o sistema físico –, ainda que em geral não determine os resultados das medições individuais, determine em qualquer evento a sua distribuição estatística. Ao mesmo tempo, porém, não há absolutamente nada “incerto” a respeito do sistema físico como tal. O caso é na verdade análogo ao de uma moeda, que pode dar “cara” ou “coroa” quando jogada. Aqui, também, o fato de não podermos dizer de antemão que lado da moeda dará não significa que a moeda em si seja de algum modo “indeterminada”; em outras palavras, a chamada incerteza obviamente pertence ao arremesso, e não à moeda. E acrescentemos que esta última – não menos do que um sistema da mecânica quântica – determina a distribuição da probabilidade de seus “observáveis”. Ela determina a distribuição (e por conseguinte o valor esperado e o desvio padrão), por exemplo, do número de “caras” em n tentativas – como lembrará qualquer aluno de teoria da probabilidade.

Se, então, os sistemas mecânicos quânticos não são em si mesmos “incertos”, não seriam, por outro lado, indeterminísticos? Ora, dizer que um sistema físico é determinístico é afirmar, supõe-se, que a evolução do sistema é unicamente determinada por seu estado inicial (presumindo, é claro, que saibamos as forças externas que influenciam o sistema). Mas é precisamente isto que a célebre equação de Schrödinger implica! O mundo micro, portanto, é realmente determinístico, mesmo que os sistemas físicos sejam indeterminados. Podemos colocar assim: O estado inicial de um sistema físico isolado (ou de uma sistema físico sujeito a forças externas conhecidas) de fato determina os seus estados futuros; mas acontece que o estado de um sistema em geral não determina os valores de seus observáveis. Não há, assim, nenhum conflito entre o determinismo e o indeterminismo; e na verdade a teoria quântica exige ambos. Para sermos precisos, é a equação de Schrödinger que garante o determinismo, assim como o princípio de Heisenberg garante o indeterminismo.

Pode-se levantar a objeção de que a medição destrói o determinismo; pois, como sabemos, uma medição realizada em um sistema físico pode causar o chamado colapso do vetor de estado, um evento que viola a equação de Schrödinger. Seria possível dizer que a medição acaba com o determinismo ao interromper a evolução “normal” do sistema físico. Devemos lembrar, contudo, que os sistemas físicos são especificados através da medição. Logo, na medida em que uma medição colapsa o vetor de estado, ela constitui um ato de especificação que altera o estado e por conseguinte o sistema físico “real”. O sistema físico X com o qual nos preocupamos antes da medição não será em geral o mesmo que o sistema Y resultante dessa especificação adicional. Enquanto lidamos com sistemas físicos determinados, é claro, o sistema pode ser especificado de uma só vez. Não há então nenhum colapso do vetor de estado e nenhuma mudança de especificação – ou “perda de identidade” – resultante dos atos subseqüentes de medição. Quando se trata de sistemas indeterminados, por outro lado, as medições subseqüentes resultarão em geral na especificação de um novo sistema físico. Poderíamos dizer que o sistema físico original é terminado – ou metamorfoseado – pelo colapso de seu vetor de estado. Com certeza os sistemas mecânicos quânticos não são permanentes, nem são “absolutos” – mas existem “para nós”, como objetos de intencionalidade. Esses fatos básicos, contudo, não impedem o determinismo, uma vez que um sistema da mecânica quântica se comporta de uma forma determinística (contanto que exista).

Obviamente, esse determinismo mecânico quântico é muito diferente do clássico. Contudo, o que se perdeu não foi tanto o determinismo, mas o reducionismo: isto é, a suposição clássica de que o mundo corpóreo não é “nada exceto” o físico. Com efeito, foi este axioma que saiu de moda pela separação da mecânica quântica do sistema físico e seus observáveis. A física quântica, como vimos, opera necessariamente em dois planos: o físico e o empírico; ou, melhor dizendo, o físico e o corpóreo, pois devemos lembrar que a medição e a exibição terminam necessariamente no plano corpóreo. Há, então, esses dois planos ontológicos, e há uma transição do físico para o corpóreo que resulta no colapso do vetor de estado. Poderíamos dizer que o colapso denota – não um indeterminismo no nível físico – mas precisamente uma descontinuidade entre os planos físico e corpóreo.
Mas enquanto o próprio formalismo da mecânica quântica alega que há esses dois níves e clama, por assim dizer, pelo reconhecimento deste fato, a propensão reducionista dominante tem impedido que se dê esse reconhecimento. Não é de se admirar, portanto, que a interpretação ontológica da mecânica quântica não tenha ido pra frente.

***

A mecânica quântica sugere que os sistemas microfísicos constituem um tipo de potência em relação ao mundo atual. Como mostra Heisenberg, eles ocupam, com efeito, uma posição intermediária entre a não-existência e a atualidade, e nesse respeito lembram a chamada potentia aristotélica.

Para compreender isso mais claramente, precisamos olhar mais de perto o formalismo da mecânica quântica. Notemos, antes de tudo, que todo observável admite um conjunto de valores possíveis (seus chamados autovalores), e que em geral uma medição de um determinado observável é capaz de produzir qualquer um desses resultados admissíveis. Um sistema físico, entretanto, pode também estar n’um estado no qual o valor do observável dado é determinado com certeza; e tais estados são chamados de autoestados. Por exemplo, se uma medição do observável produz o autovalor λ, então sabemos que o sistema está, naquele momento, em um autoestado correspondente a λ [5].

Já aludi ao fato de que um sistema físico, como concebido na mecânica quântica, é representado por um chamado vetor de estado. Mais precisamente, vetores de estado representavam estados de um sistema físico [6]. E isso evidentemente explica a noção de autovetores à qual eu também me referi (na discussão da indeterminância): assim, um autovetor é um vetor de estado correspondente a um autoestado.

Ora, lembremos que os vetores podem ser acrescentados, e também multiplicados por um número (real ou complexo, conforme o caso); e isso significa que vetores podem ser combinados para formar somas ponderadas. Desta forma, toda soma ponderada de vetores de estado (contanto que não seja zero) define outro vetor de estado [7]. No entanto, uma vez que os vetores de estado representam estados do sistema físico, cada uma dessas somas ponderadas corresponde a um estado físico. Chega-se assim ao chamado princípio da superposição, que afirma que as somas ponderadas de vetores de estado correspondem a uma superposição real de estados. Em outras palavras, acaba que as operações algébricas pelas quais formamos somas ponderadas de vetores de estado (com coeficientes complexos, além disso) carregam um significado físico. Existe, se preferir, uma “álgebra de estados”, que nos permite representar os estados físicos de diversas formas como uma superposição de outros estados [8].

Surge a pergunta sobre se, para um observável arbitrário, cada estado do sistema pode ser representado como uma superposição de autoestados. Em outras palavras, pode cada vetor de estado ser expresso como uma soma ponderada de autovetores pertencentes ao observável dado? E enquanto esse não é o caso, em geral somos capazes de obter uma representação análoga por meios matematicamente mais sofisticados [9]. Contudo, para evitar complicações técnicas que não influem no argumento, irei supor que todo observável realmente possui um conjunto “completo” de autovetores: isto é, um conjunto pelo qual todo vetor de estado pode ser expresso como uma soma ponderada.

Ora, o que tudo isso tem a ver com a discussão de Heisenberg sobre os sistemas quânticos constituirem um tipo de potentia aristotélica? É isso que precisa ser explicado. Considere a representação de um vetor de estado como uma soma ponderada de autovetores pertencentes a um determinado observável. Cada autovetor corresponde a um autoestado, e portanto a um possível resultado de um experimento atual. Ele assim representa uma certa possibilidade empiricamente realizável, cuja probabilidade é na verdade determinada pelo peso com o qual aquele autovetor ocorre na soma dada [10]. O próprio estado de vetor, como uma soma ponderada de autovetores, pode conseqüentemente ser visto como um conjunto ou síntese das possibilidades em questão. E se supormos (como fizemos) que o vetor de estado pode ser expresso como uma soma ponderada de autovetores para todo observável, ele então constitui, pela mesma razão, uma síntese de todos os resultados possíveis para cada medição concebível que possa ser realizada no sistema físico dado [11].

Por outro lado, ao término de uma medição, o sistema estará em um autoestado pertencente ao observável dado. Se o vetor de estado, antes da medição, era uma soma ponderada de autovetores, ele agora é um autovetor particular, e, por conseguinte, se preferir, uma soma ponderada de autovetores na qual todos os coeficientes, exceto um, são zero. O vetor de estado colapsou, dizemos; em um instante ele foi reduzido a um único autovetor do observável dado: uma possibilidade única, isto é, cuja probabilidade agora saltou para o valor 1 (indicativo de certeza). Pelo ato da medição, um elemento particular do conjunto dado de possibilidades foi discriminado e realizado no nível empírico, ou seja, corpóreo. O sistema físico, como um conjunto de possibilidades, foi assim “atualizado”. Mas só em parte! Pois enquanto o valor de um observável particular foi agora determinado, o sistema permanece em uma superposição de autoestados para a maioria dos outros observáveis. E, assim, apesar das atualizações parciais efetuadas pela medição, o sistema é e permanece sendo um conjunto ou síntese de possibilidades. Nas palavras de Heisenberg, ele não é na verdade uma “coisa ou fato”, mas uma potência, um tipo de potentia.

Como a própria terminologia aristotélica sugere, a concepção de sistemas físicos e do colapso de vetor de estado à qual chegamos é de uma certa forma clássica, e pode de fato ser compreendida de um ponto de vista metafísico tradicional. Por muito tempo se soube que a transição do possível para o atual – ou da potência para a manifestação – implica invariavelmente um ato de determinação: uma escolha de um resultado particular a partir de um conjunto de possibilidades. Além disso, a geometria euclideana exemplifica muito claramente esse processo – mas desde que a disciplina seja entendida da forma antiga. Devemos lembrar que antes de Descartes o continuum geométrico – o plano euclideano, por exemplo – era concebido como uma entidade por seu próprio direito, e não simplesmente como a totalidade de seus pontos. De acordo com a visão pré-cartesiana, não na verdade pontos no plano – isto é, até que eles sejam trazidos à existência através da construção geométrica. Concebido classicamente, o plano como tal não contém nada; em si mesmo constitui um tipo de vazio, uma mera potência, na qual nada foi ainda atualizado. E então construímos um ponto ou uma linha, seguida por outros elementos geométricos, até que se obtenha uma certa figura. Devemos notar que essas determinações não podem realmente ser feitas em fundamentos racionais, ou na base de alguma regra prescrita, um fato que tende a embaraçar a mente analítica. O ato determinativo, além disso, é na verdade mais do que uma mera escolha, uma mera seleção de um elemento em um dado conjunto: pois ele leva à existência – ex nihilo, por assim dizer – algo que antes não existia como uma entidade atual. Desta forma, a construção geométrica, concebida classicamente, evoca a cosmogênese. Podemos dizer que ela imita ou exemplifica o próprio ato criativo dentro do domínio da matemática.

Voltando à mecânica quântica e, em particular, ao ato de medição, agora notamos que isso pode de fato ser interpretado em termos ontológicos tradicionais. A medição, portanto, é a atualização de uma certa potência. Ora, a potência em questão é representada pelo vetor de estado (não colapsado), que contém dentro de si, como vimos, todo o espectro de possibilidades a serem realizadas pela medição. Medir é, assim, determinar; e esta determinação, além disso, é realizada no plano corpóreo: no estado de um instrumento corpóreo, para ser mais exato. Abaixo do nível corpóreo, lidamos com possibilidades ou potentia, enquanto a atualização destas potentia é realizada no plano corpóreo. Não sabemos como esta transição acontece [12]. De alguma forma uma determinação – uma escolha de um resultado particular em um espectro de possibilidades – é efetuada. Não sabemos se isso ocorre por acaso ou por desígnio; o que sabemos é que de alguma forma o dado é jogado. E esse “jogar do dado” constitui de fato o ato decisivo: é assim que o sistema físico cumpre o seu papel como uma potência em relação ao domínio corpóreo.


Notas


4 – Há, é claro, o determinismo clássico para ser explicado, mas o problema é facilmente resolvido com base no fato de que as leis clássicas que permitem predizer a evolução de um sistema físico são inerentemente probabilísticas, e aplicáveis apenas ao mundo macro.


5 – Estamos supondo que a medição é realizada por um experimento “do primeiro tipo”. Há também experimentos “do segundo tipo” que não deixam o sistema em um autoestado correspondente.


6 – É necessário dizer que um vetor de estado pode ser multiplicado por um número complexo, e que a multiplicação por um fator não-zero não altera o estado físico correspondente.


7 – Os pesos dos coeficientes nessas somas ponderadas são em geral números complexos, e este fato é vital à teoria quântica. Se não tivéssemos números complexos à disposição (números que envolvem a raiz quadrada “imaginária” de –1), não seríamos capazes de entender o mundo micro.


8 – A superposição de estados da mecânica quântica pode ser compreendida por analogia à superposição de ondas sonoras. Considere um tom produzido por um instrumento musical: um violino, um oboé, um órgão, etc. Cada um desses tons possui sua própria característica, seu próprio timbre, como é chamado; e é por isso que podemos reconhecer o instrumento a partir de seu tom. Cada tom, no entanto, pode ser representado como uma superposição dos chamados tons puros, isto é, cuja onda sonora é um sinusóide simples. E é isso que faz um sintetizador eletrônico: ele produz o som de uma flauta, por exemplo, misturando diversos tons puros nas proporções certas. Outro exemplo de superposição é fornecido pelo fato de que uma cor arbitrária pode ser obtida pela superposição de três cores primárias. Ou, ainda: a luz branca, quando passada através de um prisma, se divide em luz de várias cores (um processo que pode ser revertido). Devemos notar, além disso, que em todos esses exemplos de superposição estamos lidando ostensivamente com o movimento de onda de um tipo ou de outro. Ora, na medida em que a superposição é fundamental à mecânica quântica e parece ser um fenômeno de onda, somos levados a supor que as entidades quânticas podem realmente ser ondas; e esta idéia foi de fato acolhida por muitos físicos, começando por Erwin Schrödinger (um dos fundadores da teoria quântica). O leitor pode lembrar que o termo “mecânica de onda” tem sido freqüentemente usado como um sinônimo da teoria quântica. Deve-se entender, contudo, que, se as entidades quânticas são de fato “ondas”, elas necessariamente são ondas “sub-empíricas”: ondas que a princípio não podem ser observadas. Pois, como sabemos, a teoria quântica insiste que o sistema físico é uma coisa e os seus observáveis outra. Portanto, não está claro se realmente se ganha algo falando de sistemas quânticos como “ondas”. No fim das contas, parece que o princípio da superposição nos diz tudo que pode e que deve ser dito sobre o assunto. Ele afirma, se preferir, que as entidades quânticas podem ser superpostas “como se fossem ondas de algum tipo”. E acrescentemos, para os leitores com alguma exposição à matemática da teoria quântica, que o fator de fase ubíquo exp(-2πiEt/h) no nível dos vetores de estado realmente atesta a “natureza de onda” dos estados quânticos. Podemos dizer que a teoria quântica, com efeito, resolveu o dilema onda-partícula ao relegar os dois conceitos mutuamente contraditórios a planos ontológicos distintos: ondas ao físico, e partículas ao empírico, isto é, o plano corpóreo. De qualquer forma, isso é o que a separação mecânica quântica do sistema e seus observáveis realiza de jure, mesmo que as pessoas de facto continuem a se embaraçar com o problema ao confundir o domínio físico com o corpóreo.


9 – No lugar de autovetores devemos usar o que Dirac chama de “eigenbras”; e no lugar de somas finitas ou infinitas, exigem-se integrais de um tipo apropriado.


10 – Supondo que a soma dos valores quadráticos absolutos dos pesos seja igual a 1 (uma condição que pode sempre ser atingida multiplicando o vetor de estado por um fator não-zero apropriado) e que não há múltiplos autovalores, a probabilidade de que uma medição realizará a possibilidade correspondente a um autovalor particular é dada pelo valor quadrático absoluto do peso correspondente.


11 – Quando falo de um vetor de estado como “um conjunto de possibilidades”, eu na verdade identifico o vetor de estado com o estado físico correspondente. Estritamente falando, é claro que o sistema físico em um determinado estado (e não a sua representação matemática!) é que é “um conjunto ou síntese de possibilidades empiricamente realizáveis”.


12 – Voltaremos a essa questão nos capítulos 5 e 6.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte VI

Tradução do trechos do segundo capítulo: III. O Mundo Micro e a Indeterminância

Uma coisa é falar de um objeto físico genérico – como o “campo eletromagnético”, por exemplo – e bem outra falar de um objeto específico, do tipo que existe concretamente e pode realmente ser observado. E a diferença é a seguinte: enquanto o objeto genérico é determinado por um modelo matemático ou apenas por uma representação, o segundo é também sujeito a determinações de um tipo empírico. Em outras palavras, ele é um objeto com o qual já estabelecemos um certo contato observacional. Por exemplo, podemos falar do planeta Júpiter porque ele realmente foi visto ou detectado; e, ainda, pudemos procurar o planeta Plutão (descoberto em 1930) porque ele também já havia sido observado, não diretamente, é óbvio, mas através dos seus efeitos sobre outros planetas.

Há, é claro, graus de especificação; entretanto, a distinção entre o genérico e o específico é, apesar disso, bem definida, e acaba por ser crucial. Pois ocorre que a física lida, antes de tudo, com objetos físicos do tipo “específico”: estes são seus objetos “verdadeiros”, podemos dizer, distintos das entidades (como o “campo eletromagnético”) que existem em algum sentido abstrato, idealizado ou puramente matemático. Os “verdadeiros” objetos da física, portanto, são entidades que não só podem ser observadas em algum sentido apropriado, mas que na verdade já foram observadas. Como Júpiter ou Plutão, elas foram especificadas até certo ponto por um conjunto de observações. Usarei o termo “especificação” para me referir ao ato ou atos empíricos pelos quais um objeto físico é especificado; e com esse entendimento podemos realmente dizer que um objeto não é específico até que tenha sido especificado [1].

Vamos agora considerar alguns exemplos de especificação. No caso dos objetos subcorpóreos é normal ou natural especificar SX por meio do objeto corpóreo X correspondente, isto é, por meio de apresentação. Por outro lado, é também possível especificar um objeto subcorpóreo SX de forma mais indireta – como no caso previamente citado de Plutão, por exemplo. Tendo sido especificado por quaisquer meios, o objeto pode, é claro, ser ainda mais especificado por determinações adicionais; a especificação, como já dissemos, é suscetível de gradação.

Enquanto os objetos subcorpóreos podem de fato ser especificados por meio da apresentação (ou melhor dizendo, somente pela apresentação), esta opção não existe no caso de um objeto transcorpóreo, como um átomo, por exemplo, ou uma partícula elementar. Assim, quando se trata de objetos transcorpóreos, a especificação necessariamente se dá em dois estágios: primeiro, o objeto deve interagir com uma entidade subcorpórea, que por sua vez é observada (ou tornada observável) através da apresentação. Considere, como exemplo, um campo eletromagnético produzido no laboratório: em primeiro lugar, o campo interage com o aparato científico pelo qual ele é gerado; e esse aparato (agora concebido como um objeto subcorpóreo) pode então ser observado através da apresentação. Ou ainda; um contador Geiger registra a presença (dentro da sua câmara) de uma partícula carregada. A partícula entra na câmara e causa uma descarga elétrica, que então é registrada de algum modo no nível corpóreo (talvez na forma de um click audível, ou uma leitura de um contador). Ora, essa cadeia de eventos constitui, evidentemente, uma especificação da partícula. Pode-se daí falar em “partícula X” – mesmo que nunca mais seja possível reestabelecer o contato observacional com a partícula X. Por outro lado, com a ajuda de uma instrumentação mais complicada, o experimentalista é capaz não só de estabelecer um contato observacional inicial com uma partícula, como também pode prosseguir com observações adicionais. Em outras palavras, tendo especificado a “partícula X”, ele pode sujeitar esta partícula a mais medições – como foi feito, por exemplo, por Hans Dehmelt, o recente vencedor do Nobel, que conseguiu “aprisionar” um pósitron em uma chamada armadilha Penning por um período de cerca de três meses, durante os quais a dada partícula (apelidada de “Priscilla”) pôde ser observada com graus de precisão sem precedentes.

Mas, seja como for, o que nos interessa agora é o seguinte fato geral: quer lidemos com a partícula fundamental, quer com a mais simples entidade corpórea, não podemos falar de um objeto físico X até que se tenha estabelecido um certo contato observacional inicial com X. Os objetos físicos não “crescem em árvores” simplesmente: eles precisam antes de tudo ser “especificados” no sentido técnico que demos a este termo.

***

A pergunta agora é se é possível especificar um objeto físico tão completamente que o resultado de todas as observações adicionais possam ser antecipados, ou se ele é de qualquer forma determinado com antecedência. Será conveniente, contudo, reformular um pouco essa pergunta, após introduzir algumas outras distinções. Em conformidade com o uso aceito, utilizarei o termo “sistema” para designar uma representação abstrata ou matemática de um objeto físico. Um objeto físico, concebido em termos de uma dada representação, pode então ser denominado como um sistema físico. Além disso, ele é a representação ou sistema abstrato que define os observáveis: as quantidades associadas com o sistema físico, que podem a princípio ser determinadas por meios empíricos. O que for e o que não for observável, em outras palavras, depende não apenas do objeto, mas da forma pela qual o objeto é concebido. Uma bola de bilhar, por exemplo, tomada como uma esfera rígida, admite um número indefinido de observáveis um tanto simples (começando com sua massa, seu diâmetro e as suas coordenadas de posição e velocidade); concebido como um conjunto de átomos, por outro lado, ele admite muitos outros observáveis. A especificação se refere conseqüentemente ao sistema físico, distinto do objeto como tal. Dado um sistema físico e um subconjunto dos seus observáveis, podemos dizer que este subconjunto é especificável se for possível medir cada observável no subconjunto (para que, ao término do experimento composto, os valores de todos esses observáveis sejam conhecidos). A pergunta colocada acima pode, portanto, ser reformulada desta forma: dado um sistema físico, existe um subconjunto especificável de seus observáveis cuja determinação experimental determine os valores de todos os outros observáveis do sistema? Em outras palavras, é possível tornar completamente determinado um sistema físico por meio da especificação? Sabemos hoje, à luz da teoria quântica, que essa pergunta deve ser respondida negativamente. Não há na verdade uma coisa como um sistema físico completamente determinado (um cujos valores exatos de todos os observáveis possam ser antecipados). E isso se dá não só porque não somos capazes de controlar ou monitorar as forças externas com a precisão necessária, mas também devido a uma certa indeterminância residual intrínseca ao sistema físico em si, que nenhuma quantidade de especificação pode dissipar.

Por outro lado, quando lidamos com sistemas físicos de larga escala de um tipo suficientemente simples, os efeitos dessa indeterminância residual podem não ser mensuráveis, ou podem ser tão pequenos que não cumprem nenhum papel significativo [2]. Em um sentido formal e aproximativo, portanto, podemos falar de um sistema físico determinado; e esses, é claro, são precisamente os sistemas dos quais trata a física clássica, e aos quais ela se aplica. Tal sistema pode então ser descrito ou representado em termos de um conjunto completo de observáveis – um conjunto pelo qual todos os observáveis possam ser expressos. E isso significa que não precisamos mais distinguir entre o sistema como tal e os seus observáveis; o sistema agora pode ser identificado, com efeito, a um conjunto completo de observáveis. O que, por exemplo, é um campo elétrico, classicamente concebido? É uma distribuição contínua de vetores elétricos: isto é, de observáveis! Além disso, essa redução do sistema a um subconjunto dos seus observáveis é na verdade implicada pelo próprio formalismo da física pré-quântica, que lida exclusivamente com as relações funcionais entre quantidades observáveis. Assim, um sistema físico clássico não é nada mais do que uma distribuição no espaço e no tempo de certas grandezas escalares ou tensoriais observáveis. [3]

Onde há indeterminância, por outro lado, o formalismo clássico se desfaz. É preciso então distinguir categoricamente entre o sistema físico S e seus observáveis, dos quais nem todos a princípio podem ser determinados pela especificação. Conseqüentemente, a redução clássica (do sistema aos seus observáveis) é admissível apenas no que se pode denominar como limite clássico: isto é, sob condições que garantam que os efeitos da indeterminância não tenham nenhum papel mensurável ou significativo. Fora desse limite, ou desse domínio restrito, a física exige um formalismo não-clássico – uma necessidade que foi brilhantemente realizada em 1925 com a descoberta da mecânica quântica. O novo formalismo, como sabemos, distingue entre sistema e observáveis, e sobre essa base podemos trabalhar com a física em face da indeterminância.


Notas

1 – Contudo, isso não significa necessariamente que um objeto físico específico não existisse antes de sua especificação. Não estou sugerindo, por exemplo, que o planeta Júpiter se materializou de alguma forma no momento em que foi pela primeira vez observado. O que estou dizendo é que é preciso primeiro se especificar um objeto antes que se possa perguntar, entre outras coisas, se o objeto existia, digamos, a mil anos. E no caso de Júpiter, é claro, a resposta a essa questão acaba sendo afirmativa. Há outros tipos de objetos, como veremos em breve, em que isso não acontece.

2 – Estritamente falando, não é apenas o número de átomos, digamos, que conta a esse respeito, mas também o arranjo desses átomos. No caso dos chamados arranjos aperiódicos, por exemplo, os efeitos quânticos podem entrar em jogo mesmo em conjuntos macroscópicos.

3 – É razoável supor que essa “passagem ao limite clássico” possa não ser legítima no caso mesmo dos mais simples organismos vivos. Como alguns têm conjecturado, não é improvável que a indeterminância quântica cumpra um papel vital nos fenômenos da biosfera.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte V

Mais trechos traduzidos do segundo capítulo: II. O que é o Universo Físico?

A física lida, no fim das contas, com estruturas matemáticas existenciadas. Deve-se admitir, contudo, que tanto o leigo como o especialista tendem invariavelmente a cobrir essas entidades matemáticas com formas imaginativas mais ou menos concretas derivadas certamente da experiência sensível. Ou, melhor dizendo, é preciso na verdade cobrir essas entidades intangíveis com imagens sensíveis de um tipo ou de outro para colocá-las ao alcance, por assim dizer, das faculdades mentais. Além disso, no caso do matemático ou do físico instruído, esse procedimento é perfeitamente seguro e tem realmente um papel vital na compreensão das estruturas e relações de tipo matemático. Nas mãos do especialista, a forma concreta se torna um símbolo – uma catalisadora da intelecção, se preferir. O teórico competente sabe muito bem como extrair da imagem concreta uma forma abstrata que possa conter uma analogia com a estrutura matemática que ele deseja compreender. Ele aprendeu a captar o que é essencial e a descartar o restante. Essa é na verdade a “arte oculta” que precisa ser dominada. Seguindo uma aprendizagem mais ou menos extensiva, enfim nos tornamos proeficientes no uso mental do que poderia ser denominado em geral como “auxílios visuais”, que podem variar desde as simples imagens das entidades materiais até coisas como gráficos e diagramas, não esquecendo que mesmo uma fórmula matemática necessariamente porta um aspecto visual e sintático que também tem seu papel a cumprir [8]. Assim, pode-se dizer que, com a matemática e a física, não menos do que com qualquer outro empreendimento humano, “agora vemos como por espelho, em enigma”; falando em geral, as formas sensíveis servem como um “espelho”.

O uso de imagens ou suportes sensíveis, contudo, pode facilmente se tornar ilegítimo e se transformar n’um tipo de idolatria intelectual. Tudo depende de entendermos a diferença entre uma representação visual – o que os escolásticos chamariam de “fantasma” – e o objeto físico ou matemático que ela deve de alguma forma representar. No momento em que se confunde imagem e objeto, acontece o erro; quando os fantasmata são confundidos com a realidade, acontece a fantasia. Mas, pra dizer a verdade, a linha é facilmente atravessada e re-atravessada, tantas vezes que pode ser mais realista falar não de puro conhecimento contra a completa fantasia, mas de graus. Porém, a distinção lógica entre um uso “simbólico” e um “concreto” dos fantasmata mantém sua plena validez e seus direitos, apesar da fraqueza humana.

Há, então, graus de compreensão, e mesmo os físicos não estão de forma alguma isentos da tendência concretizante. Eles também, em outras palavras, tendem vez ou outra a “reificar” o objeto físico (como veremos a partir de agora) através de uma aceitação mais ou menos inocente dos suportes visuais; e até mesmo poderia se discutir que, como regra geral, eles reificam, portanto, muito livremente, desde que os fantasmata em questão não entrem em conflito muito patente com as necessidades lógicas ou matemáticas de sua teoria. E, contudo, mesmo a reificação do tipo mais inócuo é sempre ilegítima; em contraste com um uso genuinamente simbólico dos suportes visuais, ela falsamente projeta qualidades sensíveis sobre um domínio onde essas qualidades não têm lugar. Falando de outra maneira, a reificação “corporaliza” o que é inerentemente incorpóreo e desta forma confunde o plano físico com o corpóreo.

Não se pode negar que a reificação foi comum em toda a era newtoniana. Havia, primeiro de tudo, a mecânica dos corpos rígidos e não-rígidos, de objetos subcorpóreos portanto, que sem dúvida eram rotineiramente reificados através da identificação com as entidades corpóreas correspondentes. Havia também a gravitação, é claro, que não podia ser tratada dessa forma; mas esse fato era percebido como uma anomalia. O próprio Newton tentou (no Opticks) explicar a força gravitacional em termos da pressão gradiente de um fluído interplanetário hipotético; mas ele também reconhecia com admirável clareza que, n’um sentido técnico ou computacional, a questão não tinha relação nenhuma com a física. Para calcular o movimento dos corpos sob a ação da força gravitacional, a única coisa que importa é a lei matemática que descreve como que uma “partícula de massa” afeta outra; e Newton tinha boas razões para sustentar que sua própria lei da gravitação tinha liquidado com esse assunto de uma vez por todas.

A ânsia por explicações mecanistas, contudo, não cedeu. Era uma época em que os homens da ciência olhavam com expectativa para a Mecânica como a chave para resolver praticamente todos os fenômenos; e essa Weltanschauung, como sabemos, realmente obteve suas vitórias. Além de suas descobertas primárias – as leis do movimento e da gravidade e a conseqüente explicação das órbitas planetárias –, o próprio Newton foi pioneiro em uma acústica, que, com efeito, reduzia o som a um fenômeno da mecânica contínua, e começou ao menos a especular – muito corretamente – que a temperatura e o calor tinham a ver com a “agitação vibratória de partículas”. É interessante notar que uma segunda teoria do calor, menos feliz, porém não menos mecânica do que a de Newton, fez sua aparição aproximadamente na mesma época e por cerca de duzentos anos foi amplamente aceita. De acordo com esta visão, o calor era supostamente um fluído “sutil, invisível e sem peso” chamado de phlogiston, o qual se pensava de alguma forma permear os corpos e fluir das regiões quentes para as frias, tanto quanto os fluídos comuns fluem por um gradiente de pressão. Somente em meados do século XIX é que a doutrina do phlogiston finalmente foi abandonada em favor da teoria newtoniana, graças ao trabalho de Joule e Helmholtz.

Além dos vários ramos da mecânica – incluindo a ainda problemática teoria do calor – a física newtoniana também compreendia a ótica como um ramo de investigação mais ou menos independente e bem sucedido. Ninguém tinha quaisquer dúvidas sérias de que esse domínio também pudesse eventualmente ser compreendido em termos mecânicos, e de fato existia dois modelos mecanistas – o modelo de onda de Huygens e a teoria corpuscular de Newton – pretendendo explicar o fenômeno da luz.

Havia também uma química rudimentar, à qual Newton, por exemplo, dedicava um imenso esforço. Mas acontece que não havia a menor possibilidade na época de se explicar os fenômenos químicos em termos matemáticos, que dirá mecânicos – o que sem dúvida é a razão porque Newton nunca publicou um tratado separado sobre esse assunto. Contudo, como é de se esperar, Newton e seus colegas inclinaram-se fortemente a uma teoria mecanista dos átomos, que logo veio a ser considerada em círculos mais amplos como um dogma incontrovertível da ciência. Como Voltaire colocou, com seu aplomb de sempre:

Os mais duros corpos são vistos como repletos de furos, ao modo de peneiras, e na verdade é isso o que são. Os átomos são reconhecidos, indivisíveis e imutáveis, princípios aos quais se deve a permanência dos diferentes elementos e dos diferentes tipos de coisass. [9]

Devemos notar, finalmente, que além da mecânica e da ótica – e de um imaginado atomismo – os newtonianos também estavam familiarizados com os fenômenos elétricos e magnéticos de um tipo rudimentar [10]. Por várias razões, contudo, não se pôde fazer muito progresso nesse domínio até o século XIX, quando os meios necessários tornaram-se disponíveis e a pesquisa prosperou, culminando na magnífica teoria de Faraday e Maxwell. E, com a descoberta do campo eletromagnético, a perspectiva mecanista enfim começou a minguar. O conceito de pura estrutura, ou de forma matemática, estava prestes a suplantar as noções mecânicas da época newtoniana. Mas a transição foi gradual. O próprio Maxwell concebia o campo eletromagnético em linhas mecânicas com base em um éter – outro fluído “sutil, invisível e sem peso”, indistinto do malfadado phlogiston – e essa visão foi amplamente aceita por algumas décadas. Em retrospecto, é possível ver que ainda havia dentro da comunidade científica, com efeito, uma poderosa inclinação em favor das explicações mecanicistas e que aparentemente exigiu toda a força do experimento apurado mais o gênio arrojado de Einstein para superar tal propensidade inveterada. Entretanto, a transição se realizou, e agora, por exemplo, já nos reconciliamos com o campo eletromagnético como uma entidade física por seu próprio direito, uma “estrutura” que não pode ser reduzida a categorias mecânicas.

Mas embora tenhamos nos livrado do éter e não mais ansiemos por modelos mecanísticos, ainda temos a necessidade de suportes sensíveis. Assim, o campo eletromagnético, não menos do que qualquer outro objeto físico, deve ser concebido – não em termos mecânicos, claro – mas ainda em virtude das representações adequadas de tipo visual. Como todo aluno sabe, o campo elétrico em um ponto é dado por um vetor, uma entidade matemática que possui um comprimento e uma direção e que pode, conseqüentemente, ser representada por uma seta – uma pequena, de preferência, que possa convenientemente se localizar no ponto em questão. Tendemos, na verdade, a posicionar a seta com a sua “cauda” exatamente no ponto P. Com um pequeno esforço, podemos agora representar um campo elétrico em um dado tempo como uma distribuição tridimensional contínua dessas setas, que mudam seus comprimentos e direções de acordo com as necessidades da teoria matemática. O mesmo pode ser feito com o campo magnético, e portanto com o eletromagnético, que assim exige a adição de duas setas a cada ponto, correspondendo com os componentes elétricos e magnéticos do campo. Para facilitar mais a nossa compreensão, poderíamos até mesmo considerar os vetores elétricos como vermelhos e os magnéticos como azuis, um artifício que permite reproduzir representações impressionantes de uma onda eletromagnética [11]. Não estou sugerindo, é claro, que qualquer um pudesse ser tão simples a tomar o valor nominal da noção de “vetores vermelho e azul”; meu argumento, pelo contrário, é dividido em dois. Primeiro, devemos admitir que pelo menos em um plano mental as representações desse tipo geral são necessárias e realmente legítimas como suporte sensível para o conceito de um campo eletromagnético. E, sendo assim, é em princípio possível – e muito fácil, na verdade – reificar o campo eletromagnético; tudo o que se precisa fazer a esse respeito é esquecer que um vetor elétrico ou magnético em P não é na verdade uma seta, mas algo de um tipo totalmente diferente, que de fato não pode ser “representado” de forma alguma – exceto, é claro, por meio de um artifício, como o de uma seta. Em uma palavra, há um salto a ser feito - e pode não ser fácil saber de fora se uma pessoa “está olhando para o dedo ou para a lua”.

Poderíamos argumentar que de um ponto de vista suficientemente pragmático isso pouco importa; e em geral é verdade. Porém, acontece que, nesse exemplo, a reificação indicada do campo eletromagnético é inadmissível mesmo de um ponto de vista técnico, devido ao fato de que os vetores elétricos e magnéticos não são invariantes de Lorentz. A decomposição do campo eletromagnético em componentes elétricos e magnéticos, em outras palavras, depende da escolha do quadro de referência. E o que é por si só invariante e, portanto, objetivamente real, acaba por ser não um par de vetores em um espaço tridimensional, mas uma chamada 2-forma exterior em um espaço-tempo quadridimensional. Enquanto isso, nossos “vetores vermelhos e azuis” mantém, apesar de tudo, sua validez e utilização como uma representação do campo eletromagnético – contanto que se compreenda que tal representação não deve ser tomada nominalmente, e que mesmo n’um sentido formal ela se aplica apenas dentro de uma classe restrita de quadros de referência. Com relação à 2-forma exterior, esta também se vê necessitada de suportes visuais; mas não existe “representação” – nem uma única representação concreta no espaço e tempo ordinários – com a qual esse objeto matemático possa ser identificado. Em uma palavra, o campo eletromagnético não pode ser reificado em uma forma invariante de Lorentz.

O mesmo se aplica na verdade a outras estruturas invariantes de Lorentz, e portanto à física relativista como um todo. E essa é sem dúvida a principal razão da relatividade nos parecer tão formidável: ela é “difícil” em virtude do fato de não poder ser reificada impunemente. Além disso, quando se trata do mundo micro, o mesmo ocorre até quando a exigência da invariância Lorentz é negligenciada, na medida em que o dualismo onda-partícula evidentemente proíbe a reificação das chamadas partículas. Pois, de fato, esses objetos não podem ser representados consistentemente como partículas, porque no contexto de certos experimentos elas se comportam como ondas; e pela mesma razão, elas não podem ser representadas como ondas. Conseqüentemente, elas não podem ser representadas de forma alguma – e é precisamente isso que nos deixa perplexos.

O que aconteceu em nosso século é que a física foi em seu próprio terreno levada a rejeitar as interpretações ingênuas e a manter uma postura rigorosamente simbólica em relação às representações concretas. Ou, melhor dizendo, ela foi forçada a manter tal postura no domínio das altas velocidades e, acima de tudo, no mundo micro. Quando se trata do domínio físico macro comum, por outro lado, a tendência a reificar ainda se manifesta, mesmo em autores que longamente se queixam sobre o assunto “estranheza quântica” – como se 1024 átomos pudessem ser representados mais facilmente do que um! Deve-se ainda reconhecer que há uma diferença ontológica entre os domínios físico e corpóreo, e que o hiato não pode ser fechado pela mera agregação das chamadas partículas.


Notas

8 – Poderíamos destacar nessa conexão que a linguagem – e, portanto, o pensamento – obviamente possui o seu suporte sensível, ainda que auditivo. Porém, quando se trata da compreensão da estrutura matemática, sem dúvida os símbolos visuais é que cumprem o papel principal.

9 – Veja W. C. Dampier, A History of Science (Cambridge: Cambridge University Press, 1948), p. 167.

10 – Não só Newton reconhecia a força gravitacional e eletromagnética como parece que ele também antecipou as forças nucleares, conforme podemos tirar da seguinte afirmação na 31ª Investigação do Opticks: “As atrações da gravidade, do magnetismo e da eletricidade alcançam distâncias muito sensíveis, e logo foram observadas pelo olhar comum, e pode haver outras que alcançam distâncias tão pequenas que até agora escaparam à observação.”

11 – Só precisamos, é claro, levar em consideração a dependência do tempo do campo. Isso pode ser feito, por exemplo, através da exibição de um gráfico animado.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte IV

Mais trechos traduzidos do segundo capítulo: II. O que é o Universo Físico?

Deve-se notar que toda forma de observação científica – seja um caso de medição ou de exposição – depende da correspondência entre um objeto corpóreo X e o objeto físico associado SX. Ela depende, em outras palavras, do ato de apresentação (X sendo a apresentação de SX). Em geral, a transição do domínio físico para o corpóreo, que consome o processo de observação, deve ser efetuada precisamente por uma passagem de SX para X; pois, de fato, não sabemos de nenhuma outra ligação ou nexo entre os níveis físicos e corpóreos da existência. Além disso, é evidente que o próprio físico experimental vale-se dessa conexão o tempo todo, como um procedimento de rotina.

Ele se vale dela, por exemplo, quando trata um objeto corpóreo como um sistema físico, ou quando emprega entidades corpóreas para “preparar” um sistema físico de um tipo transcendental; e sem dúvidas vale-se dela quando mede ou exibe um objeto físico.

Acontece, contudo, que essa ligação crucial não é reconhecida em parte alguma. Assim, em primeiro lugar, ela não aparece nos mapas dos físicos, pela simples razão de que esses mapas se referem exclusivamente ao domínio físico (e são por isso obrigados a excluir a ligação em questão). Nem há qualquer espaço para ela na nossa imagem cientificista do mundo; pois essa Weltanschauung, como sabemos, se baseia no postulado da bifurcação. Conseqüentemente, ela nega a existência do domínio corpóreo e, portanto, também a existência de uma ligação. Entretanto, reconhecida ou não, a ligação da apresentação está lá, e na verdade parece ser de constante utilização científica. O fato de nós não entendermos esse nexo – seja por meio da física ou da investigação filosófica – parece não importar, no mínimo. Também não fazemos sempre amplo uso da percepção sensível – a qual se revela não menos incompreensível?

Isso tudo se resume desta forma: Não pode haver o conhecimento do domínio físico sem a apresentação – assim como não pode haver o conhecimento do mundo corpóreo na ausência da percepção sensível. Não há maneira, é claro, de convencer o cético obstinado de que o universo físico existe em primeiro lugar, muito menos de que este pode ser conhecido; e certamente é sempre possível cair num reducionismo positivista. Basta dizer, entretanto, que não podemos evitar a idéia de apresentação – exceto ao custo do universo físico.

Surge agora a pergunta: O que podemos descobrir sobre um objeto físico a partir de sua apresentação? Apesar do fato de X e SX serem tão diferentes quanto poderiam – pense numa bola de bilhar vermelha, por exemplo, e numa nuvem de átomos –, precisa haver ainda uma certa “semelhança” entre os dois, ou X não poderia nos dizer nada sobre SX; o que, então, é essa “semelhança” ou conexão? Ora, a primeira coisa a se notar quanto a isso é que X e SX ocupam exatamente a mesma região do espaço – por mais estranho que isso pareça [5]. Pois, de fato, não faria sentido algum distinguir entre um dito espaço corpóreo e um espaço físico – porque o espaço físico não teria sentido a menos que pudéssemos relacioná-lo ao corpóreo, o que só pode ser feito, contudo, através da apresentação. Mas isso equivaleria a uma identificação de dois espaços, e, portanto, à concidência espacial de X e SX.

Mas esta coincidência espacial implica que as noções de distância e ângulo – que podem ser definidas, como se sabe, em termos de operações envolvendo varetas de medição – sejam levadas para o domínio subcorpóreo. Portanto, cada decomposição de um objeto corpóreo X em suas partes corpóreas corresponde a uma decomposição congruente ou geometricamente isomórfica de SX. Em uma palavra, há uma “continuidade geométrica” entre X e SX [6]. E é precisamente em virtude dessa continuidade geométrica que os objetos físicos podem ser observados. Graças a essa continuidade, é possível, por exemplo, apurar o estado de um instrumento físico a partir da posição de um ponteiro em uma escala (um ponteiro corpóreo em uma escala corpórea, desnecessário dizer). Ou, para colocar em termos mais gerais: o estado de um instrumento físico, conforme dado por sua geometria interna – ou, mais exatamente, pelas posições relativas de suas partes subcorpóreas – é passado para o plano corpóreo através da apresentação. Claramente toda medição e toda forma concebível de exposição depende desse fato.

Mais uma observação: em virtude da continuidade geométrica, a apresentação constitui um modo de exibição. Ela constitui de fato o que se poderia chamar de modo primário de observação, uma vez que todas as outras formas de observação dependem da exibição de apresentação, como notamos antes.


Notas

5 – O fato de que X e SX ocupem a mesma região no espaço não é nem um pouco paradoxal. Em primeiro lugar, ele não contradiz a nossa experiência sensível, porque a percepção pertence somente a X. Além disso, de um ponto de vista teorético, não há nada contraditório na noção de duas entidades ocupando o mesmo espaço; isso acontece, por exemplo, no caso dos campos. Um campo elétrico pode coexistir com um campo magnético, ou um gravitacional. Mais uma vez, o que você vê depende de como você olha.

6 – Há também, é claro, uma “continuidade temporal” entre X e SX. Isso significa, em primeiro lugar, que um objeto corpóreo X, considerado num instante particular do tempo, constitui uma apresentação de SX no mesmo instante, e, em segundo lugar, que a noção de “distância temporal” ou duração temporal, medida por relógios corpóreos, transfere-se para o reino subcorpóreo.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte III

Tradução do trechos do segundo capítulo: II. O que é o Universo Físico?


Alguém gostaria de dizer que o universo físico é simplesmente o mundo como concebido pelo físico; mas, por outro lado, está longe de ser claro como exatamente o físico de fato concebe o mundo. Devemos lembrar, em primeiro lugar, que a física passou por um estupendo desenvolvimento e continua a progredir com uma rapidez espantosa. E, além do mais, tem havido ultimamente pouco consenso entre os físicos sobre o que é exatamente que a física está trazendo à luz. Como, então, podemos falar em um “mundo concebido pelo físico”?

Podemos fazê-lo, até certo ponto, em virtude do fato da física possuir uma metodologia própria, um modo distintivo de investigação. As teorias físicas particulares podem ser substituídas, e as opiniões filosóficas podem ir e vir; mas os meios cognitivos básicos pelo quais a física como tal é definida permanecem inalterados. E esses meios cognitivos de uma forma geral determinam os seus objetos: este é o ponto crucial. Digamos, então, que o universo físico seja o reino das coisas a princípio cognoscíveis por esses meios particulares, e vamos ver aonde isso nos leva.

Vimos no capítulo anterior que o mundo corpóreo existe “para nós”: como o domínio das coisas a serem conhecidas através da percepção sensível; e agora descobrimos que o universo físico existe “para nós” quase no mesmo sentido. Só que os respectivos meios de conhecimento são notoriamente diferentes. No primeiro caso, nós conhecemos através da percepção direta, e, no segundo, através de um complexo modus operandi fundado na medição – o que é uma coisa completamente diferente.

Examinemos brevemente o ato da medição. A primeira coisa a ser notada é que medimos não diretamente pela visão, ou por qualquer outro sentido, mas por meio de um artefato: um instrumento apropriado. O que conta, na verdade, é a interação entre objeto e instrumento: é isso que determina o estado final do instrumento, e, portanto, do resultado da medição. E esse resultado, além disso, será uma quantidade; um número, como queira. Ora, para ter certeza, o físico experimental lança mão dos seus sentidos em cada etapa; e é particularmente por meio da percepção sensível que ele corrige o estado final do instrumento. Mas isso não significa que ele perceba a quantidade em questão. Sejamos claros sobre isso. Estritamente falando, não percebemos uma coisa como o peso ou o diâmetro de um objeto familiar, não mais do que somos capazes de perceber o momento magnético, digamos, do elétron. O que percebemos são objetos corpóreos de vários tipos – incluindo instrumentos científicos. E é claro que somos capazes de ler a posição de um ponteiro em uma escala. Mas não percebemos quantidades mensuráveis. E essa é a razão porque precisamos de instrumentos. O instrumento é exigido precisamente porque a quantidade em questão não é perceptível. Logo, a função do instrumento é converter, por assim dizer, esta última no estado perceptível de um objeto corpóreo, para que, por meio da percepção sensível, possamos adquirir o conhecimento de algo que não é por si mesmo perceptível.

Ora, o modus operandi da física se baseia na medição, como eu disse; logo, é através de atos de medição que o universo físico vêm à tona. O físico olha para a realidade – não com as faculdades humanas ordinárias da percepção – mas através de instrumentos artificiais; e o que ele vê através destes “olhos” construídos pelo homem é um estranho mundo novo composto de quantidades e de estrutura matemática. Em uma palavra, ele contempla o universo físico distinto do mundo corpóreo familiar.

O que, então, tomamos dessa curiosa dualidade? Podemos dizer, por exemplo, que um dos dois domínios é real e o outro subjetivo ou de alguma forma fictício? Na verdade, parece que não há fundamentos convincentes para apoiar qualquer um desses reducionismos. O que você vê depende das “lentes” pelas quais você olha: esse é o âmago da questão.

Surge a pergunta de como dois mundos aparentes – ou “cortes transversais da realidade” – podem coexistir, ou se encaixar, como de fato eles devem. E basta dizer, por agora, que esse é um assunto que não pode ser investigado ou compreendido através dos meios cognitivos associados a cada reino. Nem através da percepção sensível, nem pelos métodos da física pode o problema ser resolvido – pela simples razão que cada um desses meios cognitivos se restringe à sua própria esfera. Idealmente, o que precisamos é de uma ontologia integral, e também podemos deixar sem solução, por ora, a questão sobre se tal empreitada é viável. O que importa, por enquanto, é a compreensão de que cada um dos nossos dois domínios – o físico não menos do que o corpóreo – é limitado em sua abrangência. Em cada caso, existem as coisas que podem ser conhecidas através dos meios cognitivos dados, e existem as coisas que não podem. Como um círculo, o conceito de cada domínio de uma só vez inclui e exclui. E desde o início não deveria haver dúvida de que o que cada um exclui precisa, na verdade, ser incomensuravelmente mais vasto do que a multidão – por mais incrível que pareça – do seu conteúdo total.


(...)


Estritamente falando, ninguém jamais percebeu um objeto físico, e ninguém jamais perceberá. As entidades que respondem ao modus operandi da física são, por sua natureza, invisíveis, intangíveis, inaudíveis, desprovidas de sabor e cheiro. Esses objetos imperceptíveis são concebidos através de modelos matemáticos e observados por meio dos instrumentos apropriados. Há, contudo, entidades físicas que se apresentam, por assim dizer, na forma de objetos corpóreos. Ou, colocando o inverso: todo objeto corpóreo X pode por si mesmo ser sujeito a todos os tipos de medições, e, dessa forma, determina um objeto físico associado SX. Se X é uma bola de bilhar, por exemplo, nós podemos medir sua massa, seu raio e outros parâmetros físicos, e podemos representar o objeto físico associado SX de várias formas: por exemplo, como uma esfera rígida de densidade constante. O ponto crucial, de qualquer maneira, é que X e SX não são a mesma coisa. Os dois são na verdade tão diferentes quanto a noite e o dia: pois ocorre que X é perceptível, enquanto SX não.

Ora, a primeira dessas alegações é óbvia e incontrovertível. Todo mundo sabe que uma coisa como um bola de bilhar é perceptível. Ou, melhor dizendo, todo mundo sabe isso muito bem – contanto que não seja um bifurcacionista. Mas e sobre o SX: por que este não é perceptível? Há aqueles, presumivelmente, que diriam que uma esfera rígida, por exemplo, pode muito bem ser percebida. Mas, enquanto, estritamente falando, esse acaba não sendo o caso, [2] a contestação é na verdade irrelevante. Pois a pergunta diante de nós não é se coisas como esferas rígidas podem ser percebidas, mas se SX pode ser, e essa é uma outra questão. Pois enquanto o objeto físico associado SX do presente exemplo pode de fato ser representado (dentro de certos limites de precisão) como uma esfera rígida, ele também pode ser representado de muitas outras formas. Por exemplo, como uma esfera elástica – um modelo que na verdade pode suscitar uma descrição mais precisa. O mais importante, contudo, é que sabemos hoje que os objetos físicos são compostos de átomos – ou, mais genericamente, de partículas subatômicas – e que todas as representações contínuas ou “clássicas” transmitem não mais do que uma visão bruta e parcial da entidade em questão. Mas, ora, se supormos que SX é de fato um conjunto de átomos ou de partículas subatômicas, será ainda concebível que SX pode ser percebido? Obviamente que não; pois está claro que o que percebemos não é uma coleção de átomos, partículas atômicas ou ondas de Schrödinger, mas precisamente uma bola de bilhar. Poderia, é claro, se alegar que o conjunto de átomos ou partículas suscitam de alguma forma o objeto percebido ou perceptível – mas essa é uma questão completamente diferente. O que nos preocupa no momento é a identidade desse objeto percebido ou perceptível, não a sua causa conjecturada. E essa identidade é indiscutível: o que percebemos é a bola de bilhar vermelha ou verde, para dizer mais uma vez. Ninguém, repito, jamais percebeu um conjunto de partículas subatômicas ou uma coleção de átomos.

Assim se chega a um reconhecimento básico que por muito tempo foi obscurecido em razão da inclinação bifurcacionista: agora descobrimos que todo objeto corpóreo X determina um objeto físico associado SX. Devemos a partir daqui nos referir a X como a apresentação de SX. Nem todo objeto físico, é claro, possui uma apresentação; o que quer dizer que nós podemos distinguir entre dois tipos ou classes de entidades físicas: as que admitem apresentação e as que não admitem. Subcorpóreos e transcorpóreos, digamos. Mas me apresso em destacar que essa dicotomia envolve não o objeto físico como tal, e sim a sua relação com o domínio corpóreo. O físico, em outros palavras, que investiga a estrutura ou as propriedades físicas dos objetos em questão, não irá descobrir nenhum traço dessa dicotomia. Conforme os átomos se congregam em moléculas, e as moléculas se unem em agregados macroscópicos, não há nenhum ponto, nenhuma linha mágica de demarcação que sinalize o começo do reino subcorpóreo. Pois, de fato, só com referência ao plano corpóreo é que essa noção é definida. E, portanto, se tivéssemos olhos somente para o mundo físico – e pudéssemos ver apenas átomos, etc – não haveria maneira de podermos distinguir agregados subcorpóreos de agregados transcorpóreos.

Apesar disso, a distinção é vital para a economia da física. Pois fica claro, a partir do que foi dito acima, que os instrumentos de medição devem ser corpóreos. O processo de medição deve terminar, no fim das contas, no estado perceptível de um objeto corpóreo. Mas isso significa, à luz das considerações anteriores, que o instrumento físico é necessariamente subcorpóreo; para ser preciso, deve ser o SI de um instrumento corpóreo I.


Nota 


2. Sob o risco de chover no molhado, o argumento poderia ser colocado assim: uma esfera rígida de densidade constante é caracterizada inteiramente por duas constantes numéricas: o seu raio R e densidade δ. Nem R nem δ, contudo, podem ser percebidas (essas quantidades podem é claro ser medidas, mas como vimos antes, medir não é o mesmo que perceber). Mas, visto que as quantidades pelas quais se define a esfera rígida são imperceptíveis, então também o é a esfera rígida. Ou novamente: ninguém jamais percebeu (no sentido visual) um objeto desprovido de toda cor. Mas a esfera rígida não possui cor (é caracterizada por R e δ, como eu disse). Logo, é imperceptível.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte I

Tradução do trecho inicial do primeiro capítulo: I. Redescobrindo o Mundo Corpóreo


As dificuldades e certamente as perplexidades que nos afligem no momento em que tentamos construir um sentido filosófico a partir das descobertas da teoria quântica são causadas não só pela complexidade e sutileza do mundo micro, mas, antes de tudo, por uma adesão a algumas falsas premissas metafísicas que têm ocupado o posto de domínio intelectual desde a época de René Descartes.

Que premissas são essas? Para começar, há a concepção cartesiana de um mundo externo constituído exclusivamente das chamadas res extensa ou “entidades extensas”, as quais se assume serem desprovidas de todos os atributos qualitativos ou “secundários”, como a cor, por exemplo. Todo o resto é relegado, de acordo com essa filosofia, às res cogitans, ou “entidades pensantes”, cujo ato constitutivo, por assim dizer, não é a extensão, mas o pensamento. Assim, de acordo com Descartes, qualquer coisa no universo que não seja res extensa é, por isso, como diríamos, “um objeto do pensamento”, ou, em outras palavras, uma coisa que não possui existência fora de uma res cogitans particular ou fora da mente.

É certo que a dicotomia tem a sua utilidade; pois de fato, ao relegar os chamados atributos secundários para o segundo compartimento cartesiano, realizou-se de um só golpe uma incalculável simplificação do primeiro. O que resta, na verdade, é precisamente o tipo de “mundo externo” que a física matemática poderia em princípio compreender “sem nenhum resíduo”. Há, contudo, um preço a ser pago: pois, uma vez dividido o real em dois, aparentemente ninguém sabe como colocar as peças de volta. Como, particularmente, a res cogitans adquire conhecimento da res extensa? Pela percepção, com certeza; mas, então, o que é isso que percebemos? Ora, nos dias pré-cartesianos em geral era pensado – tanto pelo filósofo quanto pelo não-filósofo – que no ato da percepção visual, por exemplo, nós de fato “olhamos para sobre o mundo exterior”. Não é assim que acontece, declara René Descartes; e o faz com razão, uma vez aceita a dicotomia cartesiana. Pois se o que eu realmente percebo é, digamos, um objeto vermelho, então ele deve ipso facto pertencer à res cogitans, pela simples razão de que a res extensa não possui cor alguma. Assim, indo de acordo com os seus pressupostos iniciais, não foi por escolha, mas por força de necessidade lógica que Descartes viu-se levado a postular o que desde então ficou conhecido como “bifurcação”: isto é, a tese de que o objeto perceptivo pertence exclusivamente à res cogitans, ou de que, em outras palavras, qualquer coisa que realmente percebemos é privada e subjetiva. Em crassa oposição à crença comum, o cartesianismo insiste que não “olhamos para sobre o mundo externo”; de acordo com esta filosofia, nós na realidade estamos presos, cada um em seu mundo privado, e o que nós normalmente tomamos como uma parte do universo externo é na verdade apenas um fantasma, um objeto mental – como um sonho – cuja existência não vai além do ato perceptivo.

Mas essa posição é precária, para dizer o mínimo; pois se o ato da percepção na verdade não cobre o abismo entre os mundos interno e externo – entre o res cogitans e o res extensa – como então esse abismo é transposto? Como, em outras palavras, é possível conhecer as coisas externas, ou mesmo conhecer que elas existem como um mundo externo, em primeiro lugar? O próprio Descartes, como se recordará, teve grande dificuldade em superar as suas célebres dúvidas, e só pôde fazê-lo através de um tortuoso argumento que poucos hoje em dia achariam convicente. Não é estranho que os práticos e críticos cientistas tenham tão prontamente e por tão longo tempo defendido uma doutrina racionalista que põe em dúvida a própria possibilidade do conhecimento empírico?

Mas, por outro lado, se alguém ignorar este impasse epistemológico – ou se fingir que ele foi resolvido –, então é capaz de se satisfazer com o benefício aparente que o cartesianismo de fato oferece: pois como eu já destaquei, a simplificação do mundo externo que resulta da bifurcação torna pensável uma física matemática de alcance ilimitado. Mas a questão, de qualquer forma, não é se a bifurcação é vantajosa em algum sentido, mas simplesmente se ela é verdadeira e realmente sustentável. E esse é o problema que precisa ser resolvido em primeiro lugar; todas as outras questões que pertencem à interpretação da física são obviamente uma conseqüência disso, e, portanto, devem esperar a sua vez.

Antes da ciência, antes da filosofia, antes de toda investigação racional, o mundo existe e é em parte conhecido. Ele existe não necessariamente no sentido específico no qual alguns cientistas ou filósofos possam ter imaginado que exista ou não, mas precisamente como algo que pode e deve vez ou outra se apresentar à nossa investigação. Além disso, ele deve se apresentar por um tipo de necessidade lógica, já que pertence à própria concepção de um mundo a ser conhecido parcialmente – da mesma forma que pertence à natureza de um círculo encerrar alguma região do plano. Ou, pra colocar de outra forma: se o mundo não fosse conhecido em parte, ele ipso facto deixaria de ser o mundo – o “nosso” mundo, de qualquer maneira. Logo, em um sentido – que pode, mesmo assim, ser facilmente mal compreendido! – o mundo existe “para nós”; está aí “para a nossa investigação”, como eu disse.

Ora, essa investigação com certeza é realizada através dos nossos sentidos, através da percepção; só que desde o início é preciso entender que percepção não é sensação pura e simples, o que é o mesmo que dizer que ela não é só uma recepção passiva de imagens ou um ato desprovido de inteligência humana. Mas, independente de como o ato é consumado, segue o fato de que nós percebemos as coisas que nos cercam; com a permissão das circunstâncias, nós podemos ver, tocar, ouvir, degustar e cheirar as coisas, como todo mundo sabe muito bem. É, portanto, inútil e perfeitamente vazio falar do mundo como algo que é em princípio impercebido e imperceptível; e, mais, isso é uma ofensa contra a linguagem – como dizer que o oceano é seco, ou que uma floresta é vazia. Pois o mundo é manifestamente concebido como o lugar das coisas perceptíveis; ele consiste de coisas que, embora possam não ser agora atualmente percebidas, poderiam entretanto ser percebidas sob condições apropriadas: este é o cerne da questão. Por exemplo, eu agora percebo a minha escrivaninha (através dos sentidos da visão e do tato); e quando eu deixo o meu escritório, eu não irei mais percebê-la; mas o ponto, claro, é que, ao retornar, eu posso novamente percebê-la. Como o bispo Berkeley bem observou, dizer que um objeto corpóreo existe é dizer não que ele é percebido, mas que ele pode e será percebido sob circunstâncias apropriadas.

É esta verdade vital e muito esquecida que permeia a sua máxima merecidamente celébre: “Esse est percipi” (“Ser é ser percebido”), não obstante a possibilidade desta afirmação altamente elíptica realmente ser interpretada no sentido de um idealismo espúrio. Além disso, esse perigo – do qual o próprio bispo irlandês caiu vítima [1] – surge principalmente em razão do percipi na fórmula de Berkeley poder facilmente ser mal compreendido. Como eu já salientei, pode a percepção ser interpretada erroneamente como uma mera sensação; e foi essencialmente assim que a maioria dos filósofos a interpretou, desde a época de John Locke até o século XX, quando aconteceu desta visão bruta e insuficiente ser sujeita ao escrutínio e descartada pelas principais escolas.


1. Eu discuto as filosofias de Descartes, Berkeley e Kant a propósito da bifurcação em Cosmos and Transcendence (La Salle, IL: Sherwood Sugden & Co., 1984), ch. 2.