terça-feira, 15 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XVII

Tradução do trecho final do sexto capítulo: VI – No Princípio

Se a singularidade inicial é de fato uma imagem do Centro, é n’um certo sentido uma imagem global ou “macrocósmica”, pois ela evidentemente remete ao cosmo como um todo. Entretanto, deveria haver também reflexos locais ou “microcósmicos” do mesmo Centro – reflexos “aqui e agora” – como o próprio símbolo do círculo sugere pelo fato de que o centro é repetido nas intersecções dos raios com a circunferência. Assim, surge a pergunta sobre se a física também versa sobre essas manifestações “localizadas” do Centro transcendente. Ora, eu argumento que sim, e que essas “manifestações microcósmicas” na verdade não são nada mais do que os casos de colapso do vetor de estado.

Desde as nossas considerações anteriores sabemos que esse colapso está associado a uma transição ontológica do plano físico ao plano corpóreo, e portanto associado a uma determinada passagem da potência à manifestação. Por isso, o colapso deve ser atribuído a uma ação da natura naturans, o princípio “naturante” ou “que dá a forma”. Mas sabemos que a natura naturans age “radialmente”, e, assim, através da causação “vertical”. Normalmente, a ação da natura naturans é certamente mascarada, por assim dizer, pelos modos secundários de causação, que operam “no tempo”, continuamente. O que é especial a respeito do colapso do vetor de estado, por outro lado, é a sua instantaneidade, que torna o fenômeno inexplicável em termos de causalidade “tangencial”. Em um certo sentido, o colapso ocorre “fora do tempo”, e por isso constitui não um fenômeno temporal, mas realmente “radial”. Poderíamos ir mais longe e dizer que, por sua irredutível descontinuidade, o colapso de um vetor de estado “torna visível” uma ação da natura naturans. Eu afirmo que a instantaneidade do colapso manifesta a “instantaneidade” do verdadeiro Princípio e espelha a “pontualidade” do próprio Centro metacósmico.

Falando desta forma, certamente me expresso em termos metafóricos. Deve-se entender, em primeiro lugar, que o chamado Centro metacósmico e o verdadeiro Princípio se referem ao ato criativo pelo qual o universo é trazido à existência. E quando falamos da “pontualidade” do Centro, ou da “instantaneidade” do Princípio, estamos afirmando a unicidade deste ato, ao encontro da doutrina bíblica: Qui vivit in aeternum creavit omnia simul (“Aquele que vive eternamente criou todas as coisas de uma só vez”). O ato de Deus é único e indivisível; mas este Ato, embora único e contínuo, faz surgir todas as coisas: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez”. Portanto, o universo inteiro, pleno de suas imensas multiplicidades, na verdade não constitui nada senão o efeito contínuo daquele Ato “instantâneo”.

Porém, isso não deve significar que o universo foi criado “há muito tempo” e que agora permanece como um “efeito contínuo”. Em outras palavras, precisamos nos lembrar, mais uma vez, que o Princípio não reside no passado, e que, n’um certo sentido, “Deus cria o mundo e todas as coisas neste presente agora”, para colocar nas palavras do Mestre Eckhart. [15]

Mas não é preciso dizer que em geral nos esquecemos desse fato ontológico crucial. Admitindo ou não que o universo foi criado, de qualquer forma nós tomamos como certo que as entidades físicas ou corpóreas existem e operam simplesmente por si mesmas. Ou, na melhor das hipóteses, nos tornamos holísticos, e atribuímos auto-existência não a entidades individuais, e sim ao cosmo concebido como um todo. Mas eu afirmo que esta visão também está errada. O fato é que o cosmo, em sua imensidão quadridimensional, não é mais auto-subsistente do que um único elétron ou um grão de areia sequer.

Deus disse a Moisés: “Ego sum qui sum” (Êxodo 3:14). E isso significa que na realidade o “ser” pertence apenas a Deus. Enquanto se trata dos existentes cósmicos, descobrimos que eles estão em um estado de fluxo perpétuo, uma genesis ou um “vir a ser” sem fim, que poderia ser chamado mais propriamente de uma busca para ser, ao invés do ser em si mesmo. E, contudo, essas “entidades” existem: pois elas “participam do ser”, como dizem os platônicos. Ou como disse Santo Agostinho de forma muito bela: “são, por que procedem de Ti, mas não são, porque não são aquilo que Tu és.” [16].

Ainda, segue o fato de que nós geralmente nos prendemos à ilusão da auto-suficiência cósmica o máximo que podemos, e de que é necessário, como uma regra, um fenômeno preternatural de algum tipo para nos abalar para fora de nossa complacência ontológica costumeira. Ora, no nível da física, o colapso de um vetor de estado de fato constitui um evento preternatural; pois, como vimos, esse colapso exibe uma ação da natura naturans. O prodígio do colapso do vetor de estado está no fato de que de uma certa forma ele “detecta” a ação radial da natura naturans, e por isso, se preferir, “apanha” o próprio ato criativo. O ato cosmogenético, em outras palavras, pode de um certo modo ser observado “aqui e agora” através de uma transição do plano sub-existencial para o plano corpóreo, porque a transição – que é necessariamente instantânea – não pode ser atribuída a nenhuma causa secundária. O que encaramos aqui é um exemplo de causação “vertical”, o modo que age “fora” do tempo e que deriva diretamente do Centro metacósmico. Em uma palavra, testemunhamos “um ato de Deus”. Devemos, contudo, nos lembrar de que Deus age “uma só vez”, como o Mestre Eckhart ressalta; o que significa dizer que a multiplicidade pertence não à Causa transcendente, mas precisamente aos efeitos criados. Mais uma vez: Qui vivit in aeternum creavit omnia simul. E, assim, o que em um certo sentido testemunhamos não é simplesmente “um ato de Deus”, mas de fato “o Ato de Deus”: o único e indivisível Ato de criação. E, finalmente, aí está o milagre do colapso do vetor de estado. [17]



Notas

15. Meister Eckhart (C. de B. Evans, trad. Londres: Watkins, 1924), vol I, p. 209. Podemos acrescentar que o “presente agora” do Mestre Eckhart não é nada mais do que o nunc stans da Escolástica (“o agora que permanece”). De acordo com a doutrina metafísica tradicional, o tempo não é feito de “momentos presentes” – assim como a linha euclideana não é feita de pontos. Na realidade, há somente um “presente agora”, cujo tempo é na verdade uma “imagem em movimento”, como diz Platão. Neste assunto profundo e difícil, remeto especialmente às referências de Coomaraswamy e Nasr citadas na nota 10. Veja também Cosmos and Transcendence, op. cit., cap. 3, onde eu tratei dessa questão com alguma profundidade.

16. Confissões, 7:11.

17. Para prevenir uma possível má compreensão: não estou sugerindo, certamente, que o físico constitui o nihil “a partir do qual” Deus criou o mundo. O simples fato de que os sistemas físicos são definidos pela especificação (e, conseqüentemente, pressupõem o corpóreo) basta para deixar de lado essa tese.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XVI

Mais trechos traduzidos do sexto capítulo: VI – No Princípio


Surge a pergunta sobre se a singularidade inicial em si pode ser interpretada à luz da doutrina metafísica. Sabemos que este “ponto” não corresponde a nenhuma realidade espaço-temporal; ele, assim, representa um “buraco”, um “vazio” onde não há absolutamente nada – nada físico, de qualquer forma. Ora, com certeza tal “buraco” ou “vazio” é algo metafisicamente sugestivo. Ele remete ao śunya búdico e ao ex nihilo cristão [13], e especialmente a um verso do Tao Teh Ching: “Trinta raios convergem para o centro da roda, mas é o vazio entre eles que os torna útil.” Metafisicamente falando, poderíamos dizer talvez que a singularidade inicial de fato representa “o centro da roda”, “o vazio entre eles”? Consideremos a questão.

Ora, em primeiro lugar, a “roda” da qual fala Lao Tze – como a prima rota de Dante – corresponde ao nosso círculo simbólico, cuja circunferência representa o universo espaço-temporal. E por isso também “o centro da roda” deve corresponder ao Centro transcendente, também conhecido como “o Princípio”. Assim, nossa tese se resume desta forma: a singularidade inicial se refere na verdade ao Centro metacósmico e constitui, em um plano científico, um reflexo bona fide do Centro mesmo. [14]

Porém, que razões podemos aduzir em defesa dessa interpretação? Simplesmente esta: que a singularidade inicial se apresenta como um ponto “irremediavelmente transcendente” do qual aparentemente brotou o universo inteiro. Poderia alguém conceber uma caracterização mais precisa do Centro transcendente em termos científicos? É inegável que a física trata do cosmo; mas é também verdade que o cosmo aponta para além de si mesmo, o que significa dizer que de diversas formas ele reflete a Causa Primeira transcendente. No linguajar tradicional, o cosmo é uma teofania, um ícone, se preferir; e é por isso que a “boa física”, como eu disse antes, está invariavelmente “correta” de um ponto de vista simbólico ou metafísico – mesmo que o próprio físico possa com freqüência ser o último a reconhecer esse fato.


Notas


13. A provável objeção a ser levantada é que, em contraste ao śunya búdico, o nihil cristão (“a partir do qual” Deus criou o mundo) deva ser compreendido simplesmente como “nada” no sentido comum. Contudo, precisamos lembrar que, de acordo com a pontuação alternativa do verso do prólogo de S. João, em 1:4 se lê: “O que foi feito, n’Ele era a vida”. Ademais, Cornelius à Lapide nos assegura em seu Comentário ao Evangelho de São João que ambas as pontuações são legítimas (mesmo que elas evidentemente correspondam a diferentes pontos de vista). Portanto, parece que o nihil deve também admitir uma segunda interpretação, na verdade mais profunda do que a primeira. Seria lícito dizer que ela pode ser interpretada como um “nada”, que parece também ser muito próximo do sentido no śunya búdico.


14. De um ponto de vista um pouco diferente, poderíamos também dizer que a singularidade inicial marca o “umbigo” do universo; e não vamos esquecer que “umbigo”[navel em inglês] e “cubo da roda” [nave em inglês] derivam da mesma raiz, o que nos leva de volta ao “centro da roda”, “o vazio entre eles”. Os que estudam a antigüidade reconhecerão na singularidade inicial uma exemplificação do Janua Coeli, a “abertura” central do universo, também exemplificada na arquitetura sagrada pela chave da abóbada sobre um domo construído de forma tradicional. Ou, ainda, nos três tijolos (svayamatrinna) do altar do fogo védico – e, mais próximo de nós, mesmo na “chaminé” pela qual desce o Papai Noel, trazendo presentes! Além disso, todos esses simbolismos tradicionais, cujo significado metafísico foi em grande parte esquecido, remetem ao Centro.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XV

Tradução de trechos do sexto capítulo: VI – No Princípio



Uma das maiores realizações da física contemporânea é a descoberta de que o universo nem “sempre” existiu. Estou me referindo, é claro, à chamada teoria do Big Bang: a famosa doutrina que afirma (grosso modo) que o universo nasceu há cerca de quinze bilhões de anos em uma estupenda explosão.
Mas por que, em primeiro lugar, devemos nos preocupar com a teoria do Big Bang neste ponto? Ou para ser um pouco mais específico: o fato do universo não ter “sempre” existido tem alguma influência na teoria quântica e no seu enigma central, o colapso do vetor de estado? Eu sustento que sim, embora admita que a conexão esteja longe de ser óbvia.

(...)

Não é preciso, contudo, remetermo-nos à física mais recente para perceber que o universo não “começou” em algum ponto no tempo. O que, no fim das contas, significa “começar”? Falamos de um começo com referência a um ser vivo, a uma entidade social ou a um artefato, por exemplo, querendo dizer com isso que a entidade em questão veio a existir em algum tempo específico – não instantaneamente, é claro, mas de uma maneira mais ou menos “localizada”. Desta forma, dizer que algo “começou” em um dado tempo t só pode significar que existe um “pequeno” número positivo ε tal que, no tempo t - ε, a coisa em questão não existia, enquanto em t + ε ela existia. O que “pequeno” significa não pode, é claro, ser especificado de uma só vez; depende evidentemente do tipo de coisa que estamos falando, seja a formação de uma molécula, o nascimento de um ser vivo ou de uma nação, ou a formação de uma estrela. Por outro lado, em cada contexto particular, a ordem da magnitude do ε estipulado é muito bem compreendida, e pode variar de um microsegundo a um milhão de anos.
De todo modo, o conceito de começo implica assim uma referência ao passado: a um tempo no qual a coisa em questão ainda não existia. E esta é justamente a razão porque a noção não pode ser aplicada ao universo como um todo. Pois, com efeito, dizer que o universo “começou” é supor que havia um tempo em que o universo não existia. Mas isso é absurdo, visto que o tempo se refere a eventos, e portanto a algo que se dá dentro do universo. Nas palavras de Santo Agostinho: “Vejam eles que sem a criatura não pode haver tempo, e que parem de falar coisas sem sentido” [2]

Enquanto isso, parece que a maior parte dos defensores do Big Bang continua percebendo esse acontecimento estipulado como “o nascimento do universo”. Assim, esse “nascimento” é concebido como um evento – na verdade, muito semelhante à explosão de uma bombinha. Parecem não notar que esta noção implica, primeiro, a idéia de um espaço metacósmico, e segundo, a idéia de um tempo metacósmico, que, além disso, se une ao tempo cósmico no momento do Big Bang. Mas não é preciso dizer que esse espaço metacósmico e esse tempo metacósmico não existem em lugar nenhum, exceto na nossa imaginação; e, por conseqüência, o mesmo ocorre com o chamado Big Bang.

***

Entretanto, dificilmente podemos negar que os fatos científicos relacionados ao universo primitivo realmente nos fazem lembrar da idéia da criação. Quando um grande cientista pode discursar sobre “Os Três Primeiros Minutos” – sobre o que mais pensamos? Não é de se admirar, portanto, que muitos tenham passado a perceber a justificação da hipótese do Big Bang como a “prova positiva” de que o mundo foi na verdade criado por Deus há tantos bilhões de anos. Muitos sacerdotes compreensivelmente proclamaram essa crença, e mesmo uma figura conservadora e cautelosa como o Papa Pio XII disse algo parecido em um discurso diante da Pontífice Academia das Ciências em 1951. Ao mesmo tempo, pelo jeito também em razão dessa conexão aparentemente bíblica, os ateus e panteístas de várias estirpes ficaram visivelmente perturbados pela descoberta do Big Bang e não poucos se opuseram à teoria com unhas e dentes. Além disso, aos que com tanto gosto imaginaram que praticamente tudo possa ser explicado apenas pela “matéria”, deve ter sido um grande choque descobrir que a própria matéria passou a existir há alguns bilhões de anos através de uma explosão inescrutável. Como colocou o astrônomo Robert Jastrow: “Para o cientista que viveu com sua fé no poder da razão, a história termina como um pesadelo. Ele escalou as montanhas da ignorância; está a ponto de conquistar o mais alto pico; e assim que ele vence a última rocha, é recebido por um bando de teólogos que já estavam sentando lá há séculos.” [3]

Porém, uma dificuldade permanece após termos superados “a última rocha”: é preciso ainda entender o que exatamente os teólogos – especialmente os que “já estavam sentando lá há séculos” – têm a dizer da criação. Agora o ponto crucial é este: “Além de toda e qualquer dúvida, o mundo não foi feito no tempo, mas com o tempo” [4]. Por isso, o ato da criação não pode se localizar no tempo. Não podemos dizer, por exemplo, que o mundo foi criado quinze bilhões de anos atrás – ou, a propósito, seis mil anos atrás, como alguns crentes se habituaram a pensar. Nem podemos sequer dizer que o ato da criação aconteceu “antes que o mundo começasse” – porque, em primeiro lugar, o mundo, estritamente falando, não “começou” de forma alguma. Somos forçados a admitir que o fluxo do tempo não possui nem um começo temporal nem um fim temporal – o que significa que os verdadeiros limites do tempo não estão no tempo [5]. Assim, o contínuo temporal necessariamente possui a característica de um segmento ou intervalo aberto de linha, cujas extremidades foram excluídas. E isso significa que n’um certo sentido os gregos enfim estavam certos quando falavam do universo “sem fim”; mas os cristãos também acertaram quando insistiram que o mundo foi criado por Deus.

Está escrito que Deus criou “no princípio”; e não se pode negar que, desde os tempos bíblicos até os dias de hoje, tanto os crentes quanto os descrentes compreenderam essas palavras n’um sentido temporal. Nem essa forma de conceber a questão está totalmente errada; podemos dizer então que o texto serve como um mito ao expressar uma verdade difícil de uma forma adequadamente concreta. Mas durante todo esse tempo também houve quem interpretasse o “in principio” bíblico n’um sentido metafórico, o qual se encontra de fato “além de toda e qualquer dúvida”.

***

Passamos a entender que, estritamente falando, não há um “primeiro momento do tempo” – pois o verdadeiro começo reside “fora” do cosmos, e, portanto, além da seqüência temporal. O tempo “começa” na eternidade. E é desnecessário dizer que esse “começo” não se encontra ao alcance da ciência.

Mas há de fato um universo primitivo; e, no fim das contas, realmente não faz sentido falar dos “três primeiros minutos” – assim como não faz sentido falar da extensão de um intervalo aberto. E, ademais, esse universo primitivo é acessível ao físico. O cientista é capaz, em outras palavras, de investigar o universo retroativamente, direto na conflagração resplandescente da bola de fogo primordial; mas, ao fazê-lo, ele se depara com um limite invencível. Supondo que as equações da relatividade geral mantenham sua validez por toda essa expansão de gravidade quase infinita, tal limite toma a forma de uma singularidade inicial, cuja inevitabilidade foi demonstrada por Hawking e Penrose. Mas e se, além de um certo ponto, cai a teoria “clássica” – como ela de fato deve, visto que os efeitos quânticos são obrigados a entrar em jogo –, então o limite pode se manifestar de alguma outra forma. Poderia acontecer, por exemplo, do “problema do valor inicial” resultante não estar sendo bem colocado [6]; mas, de qualquer forma, se espera que o processo de extrapolação retroativa no tempo deva mais cedo ou mais tarde chegar a um ponto de parada[7]. Não que cheguemos eventualmente a um estado do universo além do qual não possamos prosseguir; pois todo estado atual evidentemente tem um passado e por isso pode ser traçado. Não há na realidade uma coisa como um estado primeiro ou inicial do universo. Assim, o que no fim limita a nossa extrapolação retroativa não é um estado inicial, mas um limite transcendente; e este limite é que é o Começo.

Porém, é claro, não n’um sentido temporal. O universo na verdade não possui começo temporal – não um começo no sentido comum – como eu disse. Ainda assim, ele possui um Começo – um começo ontológico, pode-se dizer. E este Começo não está no passado; pois o que está no passado está ipso facto situado dentro da seqüência temporal. Nem mesmo se pode dizer que o Começo se encontra mais próximo do universo primordial do que o presente, pois, considerando que ele não reside dentro do contínuo espaço-temporal, o Começo não é na verdade separado de nenhum ponto por um intervalo espacial ou temporal, seja longo ou curto. Assim, ele é, de uma certa forma, “presente” a todo “aqui” e “agora” empíricos – mas não em um sentido empírico, é claro.

O Começo pode então ser concebido como o centro de um círculo simbólico, cuja circunferência represente o universo espaço-temporal em sua totalidade quadridimensional. Os raios assim figuram o que se pode chamar da direção “vertical”, que corresponde não ao espaço-temporal, mas às relações ontológicas. Eles representam por isso uma “dimensão” negligenciada por quem trata o mundo espaço-temporal como a soma total da realidade. Obviamente, não há espaço para os “raios verticais” na imagem reducionista do mundo; porém, da mesma maneira, uma “geometria” desse tipo pode realmente ser acolhida assim que se tenha abandonado a premissa reducionista. Então, podemos – com surpreendente facilidade! – conceber um Centro universal “ao redor do qual gira a roda primordial” (punta dello stelo a cui la prima rota va dintorno), para colocar nas palavras de Dante [8]. E, além disso, podemos compreender que mesmo que o Centro não esteja em lugar algum do espaço ou do tempo, ele ainda assim é ubíquo: ele está “no centro de todo onde e todo quando” [9], para citar mais uma vez Dante.

Essa é, em resumo, a “geometria” do verdadeiro Começo, como ela de fato foi imaginada através dos tempos [10]. E notemos, sem delonga, que esta doutrina perene desqualifica a perspectiva evolucionista: a estimada noção de que o mundo foi criado “há muito tempo” (se é que se admite que ele tenha sido sequer criado) e desde então tem “evoluído” por si mesmo. Pois à luz da doutrina metafísica parece que o Começo “age” não causando um estado inicial – que, então, supostamente faz surgir todo o resto –, mas por um tipo de “causação vertical” que faz existirem todas as coisas em um único instante, por assim dizer, concordando com o verso bíblico: “Aquele que vive eternamente criou todas as coisas em sua totalidade” (Eclo, 18:1). É verdade, claro, que, empiricamente falando, as coisas começam a existir em tempos distintos; mas isso não significa que elas sejam criadas em tempos distintos – pois de fato a criação não ocorre “no tempo”. E, contudo, elas são criadas: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada se fez”, como afirma S. João. E podemos acrescentar que, de acordo com a pontuação que agora se tornou comum (e que coloca o “quod factum est” ao final do verso 3 ao invés de no início do verso 4) [11], em João 1:3 se lê na verdade: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez”. O “quod factum est” pode assim ser interpretado como se referindo ao que foi realmente feito, implicando que nem toda “criação” é do mesmo nível. Há, por exemplo, a “criação” humana que se predica do que Deus criou. Podemos dizer que além da “causação vertical”, que age “ao longo dos raios” e “instantaneamente”, há também outros vários modos de “causação vertical”, que agem “tangentemente” ou “ao longo da circunferência” e que cumprem um papel secundário. Portanto, a preeminência do Princípio funda-se não sobre a prioridade temporal, mas sobre a prioridade ontológica.


Notas

2. Confissões, 11:40.

3. God and the Astronomers (New York: Warner, 1978), p. 3.

4. Santo Agostinho, De civita Dei, 11.6. Sob o risco de dizer o óbvio, deixe-me ressaltar que esta afirmativa não é mais “agostiniana” do que “tomista”; pois, de fato, o Doutor Angélico disse algo muito parecido: “Deus fez no Ser a criação e o tempo simultaneamente” (Summa Contra Gentiles, II, 35:6)

5. Discuti esta questão um pouco mais detalhadamente em Cosmos and Transcendence (La Salle, IL: Sherwood Sugden, 1984), pp. 60-65.

6. Referimo-nos aqui a um problema de valor inicial “retroativo”: dado um estado em algum tempo “inicial” t0, o problema é determinar o estado para t < t0. Além disso, um problema de valor inicial é “bem colocado” se ele admite uma única solução. E é claro que isso não ocorre sempre.

7. Atualmente, há esforços para se criar um modelo “fechado” (e por isso livre da singularidade) do universo, e Stephen Hawking, por exemplo, tem se ocupado intensivamente na busca desse objetivo. Certamente concordamos com ele que tal modelo – se se provasse o seu sucesso – acarretaria “profundas implicações no papel de Deus como o Criador” (A Brief History of Time, Bantam Books, 1988, p. 174). Mas é por esta mesma razão que nós suspeitamos que a empreitada jamais terá sucesso. Pode-se dizer na metafísica que todo modelo cosmológico viável precisa exibir algo semelhante a uma fronteira ou singularidade. Pois ocorre do universo espaço-temporal não ser fechado ou contido em si mesmo, e este fato não pode deixar de se manifestar mesmo em um plano científico. Parece que a boa física é, com efeito, invariavelmente “correta” de um ponto de vista simbólico ou metafísico.

8. Paradiso, 13:11.

9. Ibid, 29:12.

10. Veja especialmente Ananda Coomaraswamy, Time and Eternity (Delhi: Munishiram, 1988), assim como a palestra sobre a “Eternidade e a ordem temporal” nas Palestras Gifford por Seyyed Hossein Nasr, republicadas com o título de Knowledge and the Sacred (Albany, NY: SUNY, 1989). Uma extensa pesquisa sobre o “tempo e a eternidade” nas tradições grega e judaico-cristã pode ser encontrada em Richard Sorabji, Time, Creation and the Continuum (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1983), apresentada, porém, pelas lentes da filosofia analítica contemporânea. Devemos mencionar também Paul Helm, Eternal God (Oxford University Press, 1988), um trabalho representando o mesmo ponto de vista analítico, que rejeita algumas das costumeiras objeções à idéia de intemporalidade.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XII

Tradução de trechos do quinto capítulo: V – Sobre se “Deus joga dados”


Sabemos que os sistemas da mecânica quântica são indeterminados. Enquanto se trata das suas previsões, a mecânica quântica é portanto uma teoria inerentemente probabilística ou estatística – isto está muito claro. O que não está de todo claro, por outro lado, é se a teoria é completa, isto é, fundamental. É concebível que a mecânica quântica possa estar lidando com certos epifenômenos estocásticos gerados por um sistema subjacente de um tipo determinístico. Isso é mais ou menos o que Einstein pensava e o que os que acreditam em “variáveis ocultas” pensam até hoje, em desafio à ortodoxia de Copenhagen. E assim segue o célebre debate entre Einstein e Bohr, e talvez ele siga até que o problema central tenha sido resolvido: ou seja, a questão sobre se o universo é determinístico ou não.

Pra começar, eu gostaria de ressaltar que na verdade o problema não pode ser resolvido em um plano estritamente científico ou “técnico”. A própria duração do debate Bohr-Einstein por si só aponta para isso; pois, se se tratasse apenas de um problema de física, iríamos pensar que os dois físicos mais destacados do século poderiam entre si ter resolvido a questão dentro de um período razoável de tempo. Mas eles não a resolveram; e Bohr, por exemplo, aparentemente continuou ruminando o problema até o dia da sua morte [1]. E, porém, o que é melhor ainda, e que quase encerra a discussão, é o fato de existirem teorias rigorosamente determinísticas que levam exatamente às mesmas previsões da mecânica quântica. São as chamadas teorias das variáveis ocultas, originalmente conjecturadas por de Broglie e construídas pela primeira vez por David Bohm em 1952. É claro que permanece o indeterminismo empírico: só que agora se presume que ele surge não porque o próprio universo seja indeterminístico, mas porque o experimentador é a princípio incapaz de preparar um sistema físico no qual as “variáveis ocultas” estejam sujeitas às condições iniciais prescritas. Portanto, de um ponto de vista estritamente científico, parece que temos uma escolha nessa questão. Podemos optar por uma visão determinística ou por uma visão indeterminística da realidade, por um modelo neo-clássico [2] ou quântico – é provável que seja mais uma questão de gosto. E os gostos diferem. Há cientistas do primeiro escalão que não vêem nada de incongruente na noção da acausalidade fundamental – uma visão epitomizada por John von Neumann nestas palavras: “Não há atualmente nenhum motivo ou razão para se falar de causalidade na natureza” [3]; e ainda há outros, começando por Einstein, que acham impensável que “Deus jogue dados”.

O que, então, devemos dizer? Se a questão não pode ser resolvida n’uma base científica, por que meios – além do “gosto” pessoal – ela pode ser resolvida?

O universo é determinístico ou não: esta é a questão. Não podemos duvidar, é claro, que prevalece um certo determinismo no plano empírico. Afinal de contas, somos cercados por fenômenos – desde o movimento dos planetas até o funcionamento dos incontáveis aparelhos construídos pelo homem – capazes de serem descritos e previstos como quisermos pelos métodos da física clássica. E mesmo no domínio quântico, como sabemos, ocorre da evolução dos sistemas físicos ser rigorosamente governada pela equação de Schrödinger – até o fatídico momento do colapso do vetor de estado. Neste ponto, porém, o determinismo (ou, de maneira equivalente, a causalidade) parece cair. E, no entanto, mesmo esta queda (real ou aparente, conforme o caso) não possui em geral um efeito mensurável no nível corpóreo, onde lidamos necessariamente com médias estatísticas, estendidas a conjuntos atômicos estupendamente grandes. Assim, é na verdade a chamada lei dos grandes números que explica o determinismo clássico. E é por isso que von Neumann podia dizer que “Não há atualmente nenhum motivo ou razão para se falar de causalidade na natureza”. Nesta perspectiva, o determinismo clássico reduz-se a um mero epifenômeno, enquanto no nível fundamental, como concebido atualmente, a causalidade desmorona.

Entretanto, precisamos nos lembrar que também existem fenômenos corpóreos (envolvendo conjuntos subcorpóreos tão “macroscópicos” quanto se poderia querer) nos quais os efeitos do indeterminismo quântico não são mascarados pelos epifenômenos estatísticos, mas ficam à vista, por assim dizer – o que explica no fim das contas porque esses efeitos puderam ser detectados em primeiro lugar. É isso o que acontece, por exemplo, quando um contador Geiger é colocado próximo a uma fonte radioativa. O decaimento dos núcleos – que, de acordo com a mecânica quântica, constitui um processo indeterminado – dispara então uma seqüência correspondente de eventos discretos no nível corpóreo. É claro que ainda é concebível poder haver um “mecanismo oculto” dentro do núcleo que determina o momento da desintegração – e, por conseguinte, a seqüência empírica – em concordância com alguma lei matemática, e é de fato isso o que sustenta a teoria das variáveis ocultas. A verdadeira questão, contudo, é se somos obrigados a supor, em fundamentos apriorísticos, que tal mecanismo deva existir.

Uma outra observação à guisa de esclarecer o problema: o conceito de determinismo não coincide de forma alguma com a noção da previsibilidade. No fim das contas, mesmo o mais ferrenho defensor do determinismo deve com certeza reconhecer que nem tudo no mundo pode realmente ser previsto. O próprio Laplace – modelo ideal dos deterministas – tão-somente sustentava que o futuro do universo poderia a princípio ser calculado apenas se fosse conhecida a posição e o momento exatos de cada partícula; mas não é preciso dizer que nenhum cientista jamais foi louco o suficiente para supor que tal conhecimento das “condições iniciais” pudesse realmente ser descoberto por meios científicos, o que realmente se pudesse fazer o cálculo necessário assim que os dados fossem obtidos. É verdade, sem dúvida, que um fenômeno é previsível somente enquanto é determinado; mas o fenômeno pode muito bem ser determinado sem ser previsto em um sentido pragmático ou empírico – há limites, no fim das contas, ao que nós humanos podemos fazer.

“Deus joga dados”? Esta parece ser a pergunta. E tudo indica que Einstein a colocou corretamente; pois a própria expressão sugere o que agora já deve ter se tornado bem evidente: a saber, que na verdade o problema não é científico, mas irremediavelmente metafísico.


Notas

1. Na noite anterior à sua morte, Bohr desenhou uma figura em seu quadro-negro. Ela representava a estrutura experimental do “contra-exemplo” mais intrincado de Einstein.

2. Porém, o que precisa ser abandonada é a noção clássica de localidade; isso é o que John Stuart Bell estabeleceu como um teorema da mecânica quântica em 1964, e o que desde então se verificou em certos experimentos sensíveis. Sobre este problema básico, a física moderna deu um veredito definitivo. Diferente do determinismo rigoroso, o princípio clássica da localidade não mais constitui uma opção viável. E podemos acrescentar que, sobre este problema, Einstein não estava apenas em desacordo com Bohr, como completamente equivocado. Foi contudo o próprio Einstein quem iluminou a trilha que eventualmente levou à prova da não-localidade. Em outras palavras, o artigo Einstein-Podolsky-Rosen realizou o oposto do que se pretendia; ao invés de provar a incompletude da teoria quântica (um problema ainda aberto, para dizer o mínimo), ele levou à refutação do princípio da localidade, e por isso à queda da Weltansschauung clássica. Pois de fato o modelo “neoclássico” de que falamos (i.e., a teoria de de Broglie-Bohm) está muito distante da imagem clássica, apesar do seu aspecto determinista. E isso talvez na verdade explique a fria recepção do trabalho de Bohm por parte de Einstein.

3. Ao qual von Neumann acrescenta: “…porque nenhum experimento indica a sua presença, já que os macroscópicos são a princípio inadequados, e a única teoria conhecida compatível com nossas experiências relativa aos processos elementares, a mecânica quântica, a contradiz”. (Mathematical Foundations of Quantum Mechanics, Princeton University Press, 1955, p. 328). Sabemos hoje que, em relação a este último ponto, von Neumann superestimou seriamente o seu caso; suas deduções matemáticas não descartam a possibilidade da teoria das variáveis ocultas, como von Neumann pensava. Ocorre na verdade que o célebre “teorema de von Neumann”, que por muito tempo dominou o pensamento científico nesta questão, é um tanto irrelevante. Veja especialmente J. S. Bell, “On the Impossible Pilot Wave,” Foundation of Physics, vol. 12 (1982), pp. 989-99.