segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Sócrates de Copleston, parte II

Tradução do capítulo XIV do Livro I de A History of Philosophy, de Frederick Copleston.


2. O problema de Sócrates  

O problema de Sócrates é o problema de se determinar exatamente qual era o seu ensinamento filosófico. O caráter das fontes à nossa disposição – as obras socráticas de Xenofonte (o Memorabilia e o Simpósio), os diálogos de Platão, as várias declarações de Aristóteles, As Nuvens de Aristófanes – tornam este um difícil problema. Por exemplo, se fôssemos confiar apenas em Xenofonte, teríamos a impressão de um homem cujo maior interesse era criar bons homens e cidadãos, mas que não se preocupava com problemas de lógica e metafísica – um popular professor de ética. Se, por outro lado, baseássemos nossa concepção de Sócrates nos diálogos platônicos como um todo, teríamos a impressão de um metafísico da mais alta ordem, um homem que não se ocupou com questões da conduta diária, mas que estabeleceu as bases de uma filosofia transcendental, distinta por sua doutrina de um mundo metafísico das Formas. As declarações de Aristóteles, por outro lado (se feita a sua natural interpretação), dão a entender que, enquanto Sócrates não era indiferente à teoria, ele próprio não ensinou a doutrina das Formas ou Idéias subsistentes, que é característica do platonismo.

A visão comum foi de que, embora o retrato de Xenofonte seja por demais “ordinário” e “trivial”, devido principalmente à falta de aptidão e interesse filosóficos de Xenofonte (de fato foi defendido, embora pareça improvável, que Xenofonte deliberadamente tentou fazer Sócrates aparentar ser mais “ordinário” do que ele realmente era e do que ele sabia que ele era, por razões apologéticas), não podemos rejeitar o testemunho de Aristóteles, e somos portanto forçados a concluir que Platão, exceto nas primeiras obras socráticas, p.ex. na Apologia, coloca suas próprias doutrinas na boca de Sócrates. Esta visão tem a grande vantagem de que o Sócrates xenofôntico e o platônico não são postos em flagrante oposição e inconsistência entre si (pois as deficiências da representação de Xenofonte podem ser explicadas como um resultado do próprio caráter de Xenofonte e de seus interesses predominantes), enquanto o testemunho claro de Aristóteles não é jogado fora. Deste modo, forma-se um retrato mais ou menos consistente de Sócrates, e não é cometido nenhum abuso injustificado (é o que sustentariam os defensores da teoria) com qualquer uma das fontes.

Esta visão, contudo, foi contestada. Karl Joel, por exemplo, baseando sua concepção de Sócrates no testemunho de Aristóteles, sustenta que Sócrates foi um intelectualista ou racionalista, representando o tipo ático, e que o Sócrates xenofôntico, um Willensethiker, representando o tipo espartano, não é histórico. Portanto, de acordo com Joel, Xenofonte deu uma coloração dórica a Sócrates, não o apresentando de forma apropriada.[19]

Döring, ao contrário, sustentou que devemos olhar para Xenofonte se quisermos ter a nossa figura histórica de Sócrates. O testemunho de Aristóteles simplesmente inclui o julgamento sumário da Academia Antiga sobre a importância filosófica de Sócrates, enquanto Platão usou Sócrates como um prego para pendurar as suas próprias doutrinas filosóficas [20]. Outra visão foi propagada neste país [Inglaterra] por Burnet e Taylor. Segundo eles, o Sócrates histórico é o Sócrates platônico [21]. Platão sem dúvida elaborou o pensamento de Sócrates, mas, ainda assim, o ensinamento filosófico posto em sua boca nos diálogos representa substancialmente o verdadeiro ensinamento de Sócrates. Se isto estiver correto, então o próprio Sócrates seria responsável pela teoria metafísica das Formas ou Idéias, e a declaração de Aristóteles (de que Sócrates não “separava” as Formas) deveria ou ser rejeitada, como resultante de ignorância, ou justificada de algum modo. É muito pouco provável, dizem Burnet e Taylor, que Platão teria colocado suas próprias teorias na boca de Sócrates se este jamais as tivesse defendido, quando ainda estavam vivas as pessoas que realmente haviam conhecido Sócrates e o que ele efetivamente ensinara. Além disso, eles apontam o fato de que em alguns dos diálogos posteriores de Platão, Sócrates não tem mais um papel central, enquanto nas Leis ele é deixado totalmente de fora – restando a conclusão de que, onde Sócrates tem o papel central, o que ele fornece são suas próprias idéias, e não simplesmente as de Platão, enquanto nos diálogos posteriores Platão desenvolve visões independentes (ao menos independentes de Sócrates), e assim se permite que Sócrates seja deixado de lado. Este é sem dúvida um forte argumento, do mesmo modo que é também o fato de que em um diálogo “inicial”, como o do Fédon, que lida com a morte de Sócrates, a teoria das Formas ocupe um lugar proeminente. Mas se o Sócrates platônico é o Sócrates histórico, devemos logicamente dizer que no Timeu, por exemplo, Platão coloca na boca do principal locutor opiniões das quais ele, Platão, não tem responsabilidade alguma, já que, se Sócrates não representa o próprio Platão, não há nenhuma razão convincente para que o Timeu também o faça. A. E. Taylor de fato não hesita em adotar essa posição extremada, ainda que consistente; mas não só é prima facie extremamente improvável que assim possamos libertar Platão de toda responsabilidade por quase tudo o que ele diz nos diálogos, como também, quanto ao Timeu, se a opinião de Taylor for verdadeira, de que modo podemos explicar que este fato notável foi se tornar manifesto pela primeira vez no século XX d.C? [22] Ainda, uma sustentação consistente da visão de Burnet-Taylor do Sócrates platônico envolve a imputação a Sócrates de elaborações, refinamentos e explicações da Teoria das Idéias que muito improvavelmente o Sócrates histórico realmente desenvolveu, e que levariam a ignorar completamente o testemunho de Aristóteles.

É verdade que muito da crítica levantada contra a Teoria das Idéias por Aristóteles na Metafísica é dirigida contra a forma matemática da teoria sustentada por Platão em suas aulas na Academia, e que em determinadas particularidades há uma curiosa negligência a respeito do que Platão diz nos diálogos, um fato que parece indicar que Aristóteles apenas reconhecia como platônica a teoria não publicada, desenvolvida na Academia; mas certamente não seria adequado dizer que havia uma completa dicotomia entre a versão da teoria que dá Aristóteles (seja justa ou injustamente) e a teoria em desenvolvimento nos diálogos. Ademais, o próprio fato de que a teoria passa por uma evolução, modificação e refinamento nos diálogos implicaria que ela representa, ao menos em parte, as próprias reflexões de Platão sobre sua posição. Escritores posteriores da Antigüidade certamente acreditavam que podemos buscar nos diálogos a própria filosofia de Platão, embora eles divergissem quanto à relação dos diálogos com o ensinamento de Sócrates, os primeiros entre aqueles acreditando que Platão introduziu muito do seu próprio pensamento nos diálogos. Siriano contradiz Aristóteles, mas o professor Field observa que a sua razão parece ser “seu próprio sentimento sobre o que era apropriado na relação entre professor e discípulo” [23].

Um argumento em favor da hipótese Burnet-Taylor se encontra na passagem da segunda Carta, onde Platão afirma que o que ele disse na obra não é nada senão Sócrates “embelezado e rejuvenecido” [24]. Contudo, em primeiro lugar, a passagem - ou mesmo toda a carta - não é seguramente genuína, ao passo que, em segundo lugar, ela poderia ser perfeitamente explicada como significando que os diálogos dão o que Platão considerava ser a superestrutura metafísica legitimamente elaborada por ele mesmo com base no que Sócrates de fato dissera. (Field sugere que ela pode se referir à aplicação do método e do espírito socrático nos problemas “modernos”.) Pois ninguém seria tão tolo em sustentar que os diálogos não contêm nada do Sócrates histórico. É óbvio que os primeiros diálogos naturalmente tomariam como seu ponto de partida o ensinamento do Sócrates histórico, e se Platão desenvolveu as teorias epistemológicas e ontológicas dos diálogos posteriores através da reflexão sobre esse ensinamento, ele poderia legitimamente considerar os resultados atingidos como um desenvolvimento e uma aplicação justificável do ensinamento e método de Sócrates. As suas palavras na Carta dariam força à sua convicção de que, enquanto a Teoria das Idéias elaborada nos diálogos podia, sem nenhum abuso injustificado, ser tratada como uma continuação e um desenvolvimento do ensinamento socrático, isso não seria igualmente verdadeiro com respeito à forma matemática da teoria dada na Academia.

É claro que seria ridículo sugerir que uma visão patrocinada por especialistas como o professor Taylor e o professor Burnet pudesse ser facilmente rejeitada, e fazer qualquer sugestão deste tipo está muito longe da intenção do presente escritor; mas em um livro geral sobre a filosofia grega é impossível tratar a questão com alguma extensão considerável ou dar à teoria Burnet-Taylor a consideração completa e minuciosa que ela merece. De todo modo, eu devo expressar a minha concordância com o que disse o sr. Hackforth, por exemplo, [25] a respeito da falta de justificativas em se ignorar o testemunho de Aristóteles de que Sócrates não separava as Formas. Aristóteles havia estado por vinte anos na Academia e, interessado como ele era na história da filosofia, dificilmente poderia ter deixado de avaliar a origem de uma doutrina platônica de tal importância como a teoria das Formas. Some a isso o fato de que os fragmentos sobreviventes dos Diálogos de Ésquines não nos dão razão alguma para divergir da visão de Aristóteles, e diz-se que Ésquines deu o mais preciso retrato de Sócrates. Por essas razões, o melhor parece ser aceitar o testemunho de Aristóteles, e, enquanto se admite que o Sócrates xenofôntico não é o Sócrates completo, sustentar a visão tradicional, a de que Platão de fato pôs suas próprias teorias na boca do mestre a quem tanto reverenciou. Portanto, a breve explicação a ser dada aqui sobre a atividade filosófica de Sócrates baseia-se na visão tradicional. Aqueles que sustentam a teoria de Burnet e Taylor com certeza diriam que desse jeito se comete uma injustiça com Platão; mas por acaso a situação melhoraria ao cometermos uma injustiça com Aristóteles? Se este não tivesse mantido relações pessoais com Platão e seus discípulos por um longo período de tempo, poderíamos ter admitido a possibilidade de um engano de sua parte; mas em vista dos seus vinte anos na Academia, esse engano parece fora de questão. No entanto, é improvável que devamos algum dia adquirir uma certeza absoluta sobre o retrato historicamente preciso de Sócrates, e seria muito imprudente revogar como indignas de consideração todas as concepções com exceção da nossa própria. Podemos apenas afirmar as nossas razões para aceitar um retrato de Sócrates ao invés de outro, e deixar por isso mesmo.

(Lançamos mão de Xenofonte na breve explicação sobre o ensinamento de Sócrates que segue: não podemos acreditar que Xenofonte foi um inepto ou um mentiroso. É perfeitamente verdadeiro o fato de que, ao mesmo tempo em que é difícil – às vezes sem dúvida impossível – distinguir entre Platão e Sócrates, “é quase tão difícil quanto distinguir entre Sócrates e Xenofonte”. Pois o Memorabilia é uma obra de arte tanto quanto qualquer diálogo platônico, embora o estilo seja tão diferente quanto Xenofonte era de Platão” [26]. Mas, como aponta o sr. Lindsay, Xenofonte escreveu muito mais do que o Memorabilia, e uma contemplação sobre os seus textos em geral pode muitas vezes nos mostrar o que é Xenofonte, ainda que nem sempre mostre o que é Sócrates. O Memorabilia nos apresenta a impressão que Sócrates causou em Xenofonte, a qual cremos em grande parte confiável, mesmo que seja sempre bom lembrar o velho adágio escolástico, Quidquid recipitur, secundum modum recipientis recipitur.)



Notas


19. Der echte und der Xenophontische Sokrates, Berlin, 1893, 1901. 


20. Die Lehre des Sokrates als sozialesreform system. Neuer Versuch sur Lösung des Problems der sokratischen Philosophie. München, 1895.


21. “Enquanto é bem impossível considerar o Sócrates de Aristófanes e o Sócrates de Xenofonte como a mesma pessoa, não há dificuldade alguma em considerar ambos como imagens distorcidas do Sócrates que conhecemos através de Platão. O primeiro é legitimamente distorcido para efeito cômico, o segundo não tão legitimamente, por razões apologéticas”. Burnet, G.P., I, p. 149.


22. Cf. pp. 245-7 deste livro; v. também a Cosmologia de Platão de Cornford, onde ele discute a teoria do professor Taylor.


23. Platão e seus Contemporâneos, p. 228, Methuen, 1930. Cf. o sumário de Field da evidência sobre a questão socrática, pp. 61-3.


24. 314c, καλού και νέου γεγονότος.


25. Cf. o artigo de R. Hackforth sobre Sócrates sobre na Philosophy de julho de 1933.


26. A. D. Lindsay na Introdução aos Discursos Socráticos (Everyman), p. viii.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Sócrates de Copleston, parte I

Tradução do capítulo XIV do Livro I de A History of Philosophy, de Frederick Copleston.



1. O início da vida de Sócrates 

A morte de Sócrates deu-se no ano de 399 a.C., e, como Platão nos conta que Sócrates tinha setenta anos de idade ou um pouco mais do que isso na hora de sua morte, ele deve ter nascido perto de 470 a.C. [1]. Ele era o filho de Sofronisco e Fenarete, da tribo Antióquia e do deme de Alopece. Alguns disseram que seu pai era um escultor [2], mas A. E. Taylor acha, com Burnet, que a história foi um mal-entendido surgido de uma referência jocosa no Eutifron a Dédalo como o ancestral de Sócrates [3]. De qualquer modo, Sócrates não parece ter ele próprio seguido o comércio do seu pai, se esse era o comércio de seu pai, e o grupo das Graças na Acrópole que depois foi exibido como obra de Sócrates é atribuído pelos arqueólogos a um escultor anterior [4]. Sócrates não pode, contudo, ter vindo de uma família muito pobre, já que o encontramos mais tarde servindo com um hoplita completamente equipado, e ele deve ter recebido um patrimônio suficiente para se permitir ocupar tal cargo. Fenarete, a mãe de Sócrates, é descrita no Teeteto [5] como uma parteira, mas, mesmo que verdadeiro, isso não implicaria que ela fosse uma parteira profissional no sentido moderno, como aponta Taylor [6]. Assim, o início da vida de Sócrates ocorreu no grande auge do esplendor ateniense. Os persas haviam sido derrotados em Platéia em 479, e Ésquilo produzira os Os Persas em 472: Sófocles e Eurípedes eram ainda garotos [7]. Além dísso, Atenas já havia estabelecido a base de seu império marítimo.

No Simpósio de Platão, Alcebíades descreve Sócrates como semelhante a um sátiro ou um sileno, [8] e Aristófanes dizia que ele pavonava-se como uma ave aquática, e ridicularizava o seu costume de revirar os olhos [9]. Mas também sabemos que ele era dotado de uma particular robustez corporal e capacidade de resistência. Como um homem, do inverno ao verão ele vestia a mesma vestimenta e mantinha o seu hábito de andar de pés descalços, mesmo em uma campanha de inverno. Embora muito abstêmio de comida e bebida, ele podia beber uma grande quantidade sem ficar nem um pouco pior por conta disso. A partir da sua juventude ele passou a receber mensagens proibitivas e avisos de sua misteriosa ”voz” ou “sinal”, ou daimon. O Simpósio nos conta sobre seus prolongados acessos de abstração, um deles tendo demorado todo o dia e toda a noite – e isso em meio a uma campanha militar. O professor Taylor prefere interpretar essas abstrações como êxtases ou arrebatamentos, mas parece mais provável que eles fossem prolongados acessos de abstração causados por uma intensa concentração mental sobre algum problema, um fenômeno conhecido no caso de alguns outros pensadores, mesmo que não em tão larga escala. A própria extensão do “êxtase” mencionado no Simpósio parece ir contra ele ser uma verdadeiro arrebatamento no sentido místico-religioso [10], ainda que um acesso de abstração tão prolongado fosse também excepcional.

Quando Sócrates estava no início da casa dos vinte anos, o pensamento, como já vimos, tendeu a sair das especulações cosmológicas dos jônicos para se dirigir ao próprio homem, mas parece que Sócrates começou estudando as teorias cosmológicas do Oriente e do Ocidente nas filosofias de Arquelau, Diógenes de Apolônia, Empédocles e outros. Teofrasto afirma que Sócrates foi na verdade um membro da escola de Arquelau, o sucessor de Anaxágoras de Atenas [11]. De qualquer forma, Sócrates certamente teve uma decepção com Anaxágoras. Perplexo com a discordância das várias teorias filosóficas, Sócrates recebeu uma luz repentina da passagem onde Anaxágoras falava da Mente como sendo a causa de toda lei e ordem natural. Encantado com a passagem, começou a estudar Anaxágoras na esperança de que este explicaria como a Mente opera no universo, ordenando todas as coisas para o melhor delas. O que na verdade ele encontrou foi que Anaxágoras introduziu a Mente apenas para dar princípio ao movimento do vórtice. Essa decepção colocou Sócrates em sua própria linha de investigação, abandonando a filosofia natural que parecia não levar a lugar nenhum, exceto à confusão e a opiniões contrárias. [12]

A. E. Taylor conjectura que, com a morte de Arquelau, Sócrates foi, para todos os efeitos, o seu sucessor [13]. Ele tenta defender este argumento com a ajuda da peça de Aristófanes, As Nuvens, onde Sócrates e seus companheiros do pensatório ou φροντιστήριον são representados como viciados nas ciências naturais e como defensores da doutrina do ar de Diógenes de Apolônia [14]. Portanto, a retratação de Sócrates de que ele nunca teve “pupilos” [15], se a conjectura de Taylor estiver correta, significaria que ele não havia tido nenhum pupilo pago. Ele tivera ταροι, mas nunca μαθηταί. Contra isto se pode insistir que na Apologia Sócrates afirma expressamente: “Mas a verdade simples e clara é, ó, atenienses, de que eu nada tenho a ver com especulações físicas” [16]. É verdade que na época em que Sócrates foi retratado falando na Apologia ele já havia há muito tempo abandonado a especulação cosmológica, e que suas palavras não implicam necessariamente que ele nunca se ocupou com tais especulações; na verdade, sabemos por um fato que ele se ocupou sim; mas parece, para o presente escritor, que todo o tom da passagem vai contra a idéia de que Sócrates fora alguma vez o professado líder de uma escola dedicada a esse tipo de especulação. O que se diz na Apologia certamente não prova, em sentido estrito, que Sócrates não foi o líder de tal escola antes de sua “conversão”, mas parece que a interpretação natural seria a de que ele nunca ocupou tal posição.

A “conversão” de Sócrates, que engendrou a sua mudança definitiva para o irônico filósofo moral, parece ter sido causada pelo famoso incidente no Oráculo de Delfos. Querofonte, um amigo devoto de Sócrates, perguntou ao Oráculo se havia algum homem vivo mais sábio do que Sócrates e recebeu a resposta “Não”. Isso fez com que Sócrates ficasse a pensar, e ele veio à conclusão de que Deus quis dizer que ele era o homem mais sábio porque ele reconhecia a sua própria ignorância. Ele veio então a conceber a sua missão como a busca pela verdade estável e segura, pela verdadeira sabedoria, e a mobilizar a ajuda de qualquer homem que consentisse em ouvi-lo [17]. Por mais estranha que possa parecer a história do Oráculo, ela provavelmente aconteceu de verdade, já que é improvável que Platão colocasse uma mera invenção na boca de Sócrates em um diálogo que obviamente tem o propósito de dar uma explicação histórica sobre o julgamento do filósofo, especialmente porque a Apologia é de uma antiga data, e muitos que conheciam os fatos estavam ainda vivos.

O casamento de Sócrates com Xantipa é mais conhecido pelas histórias sobre o caráter rabugento dela, o que pode ou não ser verdadeiro. Com certeza elas dificilmente são confirmadas pela figura da esposa de Sócrates dada no Fédon. O casamento provavelmente ocorreu em alguma época nos primeiros dez anos da Guerra do Peloponeso. Nesta guerra, Sócrates distinguiu-se por sua bravura no cerco de Potidéia, em 431/30, e novamente na derrota dos atenienses para os beócios em 424. Ele estava presente também na ação do lado de fora de Anfípolis em 422. [18]



Notas

1. Apologia, 17d.

2. Cf. Diógenes Laércio. (Assim, Praechter diz claramente: Der Vater des Sokrates war Bildhauer, p. 132)

3. Eutífron, 10c.

4. Diógenes Laércio observa que “Alguns dizem que os gregos na Acrópole são obra sua”.

5. Teeteto, 149a.

6. Taylor, Sócrates, p. 38.

7. “Todos as grandes construções e obras de arte com as quais Atenas estava enriquecida na era de Péricles, os Muros Longos que ligavam a cidade ao porto de Pireu, o Partenon, os afrescos de Polignoto, foram iniciadas e terminadas sob os seus olhos.”

8. Simpósio, 215b3 ff.

9. As Nuvens, 362 (cf. Simpósio, 221).

10. É verdade, contudo, que a história do misticismo realmente registra casos de prolongados estados extáticos. Cf. Poulsin, Grâces d’ oraison, p. 256.

11. Opiniões dos Físicos., fr. 4.

12. Fédon, 97-9.

13. Sócrates, p. 67.

14. As Nuvens, 94.

15. Apologia, 19.

16. Apologia, 19.

17. Apologia, 20 ff.

18. Apologia, 28e. Burnet sugere que possa se referir ao combate na fundação de Anfípolis (cerca de quinze anos antes).