sexta-feira, 30 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte VI (final)

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html  
 
§ 7.1 Os Cinco Setes
Esse é o contexto no qual a “representação da nossa Igreja” (figura 2) deve ser considerada. A sua semelhança inicial com um diagrama astronômico não precisa de maior explicação; ele pode ser lido prontamente como uma rota tabular para o uso devocional, derivado de uma longa e complexa tradição da exposição esquemática, da qual os diagramas científicos formavam só uma parte. Certos aspectos dessa figura sugerem que ela transmite uma versão menos do que perfeita da concepção original. Por exemplo, ela incorpora, entre outras idéias, a da ascensão centrípeta do pecado à salvação; mas enquanto a periferia é dedicada aos Vícios, e uma inscrição indo da circunferência ao centro lê “escolha o mais próximo de Deus”, o meio do diagrama é ocupado não pela divindade, mas por uma roseta inconseqüente. Será útil, portanto, confrontá-lo com duas outras versões da mesma imagem, menos bem preservadas, mas que provavelmente reproduzem o original de maneira mais completa. Uma delas é um desenho francês do começo do século XIII, agora em Oxford (figura 24); a outra é uma obra francesa um pouco anterior cujo paradeiro atual é desconhecido (figura 25).[83] A figura 2 é do MS Royal 14 B IX na British Library: um rolo contendo a Arbor historiae de Pedro de Poitiers com essa figura anexada como um colofão. O estilo das ilustrações no Royal MS foi associado com o famoso scriptorium de St Albans, mas isso não é endossado pela evidência paleográfica, e a hegemonia de St Albans nesse tipo de desenho aquarelado provavelmente foi superestimada. [84] Contudo, o rolo não parece ser trabalho inglês, provavelmente datado dos anos 1270.

O diagrama contém dois componentes principais: uma composição circular encerrando um grande número de círculos menores, concêntricos e aleatoriamente distribuídos, articulados pelos raios; e um fundamento retangular no qual se encontra o círculo. O retângulo consiste quase que somente de texto e é definido por inscrições horizontais e verticais em tinta vermelha; ele está mais claramente delineado em outras versões do desenho (figura 24). A parte circular dispõe sistematicamente os Vícios, a Oração do Pai Nosso, os Dons do Espírito Santo, as Virtudes e as Beatitudes, como uma seqüência ascendente. A parte central do setor superior torna isso claro com uma analogia médica: os Vícios são doenças (languores) debilitantes, o Homem é o inválido, Deus é o médico; as Petições da Oração do Pai Nosso são os suspiros do paciente, os Dons do Espírito Santo são o remédio (antidota), as Virtudes são a saúde, e as Beatitudes são as alegrias dos bem-aventurados. No topo da figura, como o início dessa seqüência, está uma personificação do Orgulho, a origem de todo mal. Nos exemplos franceses ilustrados aqui, ela é uma figura apropriadamente proeminente; mas no Royal MS, ela é do mesmo tamanho das outras figuras em medalhões ao redor da circunferência do círculo, que representam, em cenas gráficas de gênero, sete outros Vícios. Cada um destes é fragmentado estematicamente em seus componentes nas figuras 24 e 25, e de forma meramente verbal no Royal MS. Os três conjuntos seguintes de septenários (as Petições da Oração do Pai Nosso, os Dons e as Virtudes) são analisados de forma similar, e, nas figuras 24 e 25, acompanhados por um comentário em prosa; no Royal MS, esse texto aparece abaixo do diagrama. Assim, o primeiro setor à esquerda do Orgulho contém um medalhão que ilustra o pecado da Luxúria (luxuria), analisado em impetuosidade, inconstância e oito outras más qualidades; a Petição “santificado seja o Teu nome” é explicada em “através das ações, através da compreensão, através da demonstração exterior, através da perseverança”; o Dom da Sabedoria se divide em “a partir da experiência” (a sapore), e “a partir da habilidade” (a sapere); a Virtude da Paz é “do coração” ou “da eternidade”, e a seqüência conclui com as palavras essenciais da Beatitude indivisível apropriada à Virtude: “abençoados sejam os pacificadores porque eles serão chamados de filhos de Deus”. [85]

Observaremos que, se é para as Petições da Oração do Pai Nosso aparecerem na sua seqüência correta, o diagrama deve ser lido no sentido anti-horário; contudo, os Dons do Espírito Santo e as Beatitudes com as suas Virtudes associadas só assumem sua ordem canônica na leitura em um sentido horário. Nos escritos exegéticos sobre a Oração do Pai Nosso, esses últimos três tópicos são às vezes apresentados na forma inversa, se o autor sentisse que isso resultaria em um conjunto de paralelos mais esclarecedor; em contrapartida, e em grande parte de forma não convencional, o Pai Nosso era discutido de trás pra frente.[86] É uma das vantagens da exposição diagramática evitar essa necessidade de fazer violência à seqüência de idéias: ela pode ser lida em qualquer direção.

Fora da rota no Royal MS estão quatro medalhões mostrando diferentes aspectos de Cristo: incriado, incarnado, ressurecto e como um juiz. Estes são ligados para formar um quadrado por meio de textos em tinta vermelha que fazem um paralelo entre as quatro Eras do Mundo e os festivais do ano litúrgico. Uma versão mais clara do que se pretende aí é vista na figura 24 e, até onde permite o corte bruto, na figura 25. A figura retangular não é um simples quadrado, mas uma faixa angular discontínua com começo e fim. O primeiro medalhão mostra apropridamente Adão, o segundo, Moisés, e depois vem a Incarnação, a Ressurreição e o Juízo Final; essas são figuras ou eventos históricos que demarcam as quatro Eras descritas no texto. Os quadrantes entre o círculo e o quadrado no Royal MS contêm textos sobre os Dons do Espírito Santo; abaixo da figura há um longo texto em duas colunas, que primeiro recapitula a parte cronológica do esquema e depois fornece uma série de comentários sobre o Pai Nosso. Esses textos também aparecem na parte de dentro e acima da rota nas figuras 24 e 25.[87] Eles não são conhecidos a partir de nenhuma outra fonte, e foram provavelmente compostos para acompanhar a figura.

Normalmente se diz que o desenho ilustra ou deriva-se do tratado De quinque septenis de Hugo de S Vitor.[88] A obra de Hugo lida com os mesmos assuntos que a rota e utilize a analogia médica, mas há discrepâncias significativas entre o tratado e a imagem: Hugo discute apenas sete Vícios, os paralelos entre os vários septenários não se correspondem,e o material histórico é omitido. Diversos outros exemplos do desenho são, como a versão no Royal MS, pendentes à Arbor historiae, e é possível que a figura e os textos sejam obra de Pedro de Poitiers.[89] Enquanto o documento vitoriano sem dúvida deu sua contribuição, a rota dos Cinco Setes só pode ser totalmente compreendida como uma criação original, autônoma: não uma ilustração para uma obra de literatura, mas um exemplo sofisticado da tradição da exegese visual por meio do desenho geométrico. Usar a frase “geometria da mente” em conexão com essa tradição talvez lhe empreste conotações da Matemática e da Psicologia injustificáveis; e ninguém nunca alegou que esses esquemas representassem, sob qualquer sentido, a forma pela qual o cérebro funciona. [90] Mas eles oferecem um comentário ímpar sobre o raciocínio, os processos mentais e os modos de percepção intelectual da Idade Média.


Notas

83. Para esses dois MSS, veja A C de la Mare Catalogue of the Collection of Medieval Manuscripts Bequeathed to the Bodleian Library, Oxford, by James P R Lyell Oxford 1971, pp. 254–56; Settimana del libro antico e raro (catálogo de exibição da IV Fiera internazionale del libro, Istituto Italiano del Libro) Florença 1932, pp. 4–6, figura 2.

84. G F Warner e J P Gilson British Museum. Catalogue of the Western Manuscripts in the Old Royal and King’s Collections ii, London 1921, p. 127. Os autores comparam os desenhos e iniciais com aquelas no saltério de Saint Albans, MS Roy 2 B VI; a sua data para o MS Roy 14 B IX (início do século XIV) parece muito tardia.

85. O desenvolvimento do tratamento exegético desses temas é descrito in O Lottin “La doctrine d’Anselme de Laon sur les dons du Saint-Espritet son influence” Recherches de théologie ancienne et médiévale xxiv, 1957, pp. 267–95. A divisio dos Vícios é uma elaboração daquela proposta in S Gregory, Moralia in Job xxxi, 45; PL 76, 621. As análises dos outros tópicos não têm precedentes.

86. S Bernard Expositio in orationem dominicam PL 184, 811–818.

87. Para os incipits, veja de la Mare, op cit nota 83 acima. Um tema histórico parecido é descrito no prólogo à Legenda Aurea de Jacobus de Voragine.

88. R Baron Hugues de Saint-Victor. Six opuscules spirituels. (Sources chrétiennes clv), Paris 1969, pp. 100–19 (texto e tradução francesa); PL 175, 405–410.

89. De la Mare, op cit nota 83 acima, sugere que possa ser a arbores virtutum et vitiorum citada na nota 54rotae e árvores são combinadas: cf o círculo-cum-árvore urinário ilustrado in Calcoen, op cit nota 21 acima, pl III. Pode ser significante também que a mais antiga cópia existente da Arbor historiae contenha a rota dos Cinco Setes; Monroe, op cit nota 36 acima, p. 95. Em todo o caso, a rota corresponde bem com a técnica expositória de Pedro como evidenciado pela Arbor historiae e do que é conhecido sobre os seus métodos de ensino; veja Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 98f. acima. A identificação é atrativa, e há exemplos onde as

90. Para ilustrações que de fato tentam retratar a função cerebral, veja E Clarke and K Dewhurst An Illustrated History of Brain Function Oxford 1972, especially pp. 29–39.

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