terça-feira, 4 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte I

Tradução do trecho inicial do primeiro capítulo: I. Redescobrindo o Mundo Corpóreo


As dificuldades e certamente as perplexidades que nos afligem no momento em que tentamos construir um sentido filosófico a partir das descobertas da teoria quântica são causadas não só pela complexidade e sutileza do mundo micro, mas, antes de tudo, por uma adesão a algumas falsas premissas metafísicas que têm ocupado o posto de domínio intelectual desde a época de René Descartes.

Que premissas são essas? Para começar, há a concepção cartesiana de um mundo externo constituído exclusivamente das chamadas res extensa ou “entidades extensas”, as quais se assume serem desprovidas de todos os atributos qualitativos ou “secundários”, como a cor, por exemplo. Todo o resto é relegado, de acordo com essa filosofia, às res cogitans, ou “entidades pensantes”, cujo ato constitutivo, por assim dizer, não é a extensão, mas o pensamento. Assim, de acordo com Descartes, qualquer coisa no universo que não seja res extensa é, por isso, como diríamos, “um objeto do pensamento”, ou, em outras palavras, uma coisa que não possui existência fora de uma res cogitans particular ou fora da mente.

É certo que a dicotomia tem a sua utilidade; pois de fato, ao relegar os chamados atributos secundários para o segundo compartimento cartesiano, realizou-se de um só golpe uma incalculável simplificação do primeiro. O que resta, na verdade, é precisamente o tipo de “mundo externo” que a física matemática poderia em princípio compreender “sem nenhum resíduo”. Há, contudo, um preço a ser pago: pois, uma vez dividido o real em dois, aparentemente ninguém sabe como colocar as peças de volta. Como, particularmente, a res cogitans adquire conhecimento da res extensa? Pela percepção, com certeza; mas, então, o que é isso que percebemos? Ora, nos dias pré-cartesianos em geral era pensado – tanto pelo filósofo quanto pelo não-filósofo – que no ato da percepção visual, por exemplo, nós de fato “olhamos para sobre o mundo exterior”. Não é assim que acontece, declara René Descartes; e o faz com razão, uma vez aceita a dicotomia cartesiana. Pois se o que eu realmente percebo é, digamos, um objeto vermelho, então ele deve ipso facto pertencer à res cogitans, pela simples razão de que a res extensa não possui cor alguma. Assim, indo de acordo com os seus pressupostos iniciais, não foi por escolha, mas por força de necessidade lógica que Descartes viu-se levado a postular o que desde então ficou conhecido como “bifurcação”: isto é, a tese de que o objeto perceptivo pertence exclusivamente à res cogitans, ou de que, em outras palavras, qualquer coisa que realmente percebemos é privada e subjetiva. Em crassa oposição à crença comum, o cartesianismo insiste que não “olhamos para sobre o mundo externo”; de acordo com esta filosofia, nós na realidade estamos presos, cada um em seu mundo privado, e o que nós normalmente tomamos como uma parte do universo externo é na verdade apenas um fantasma, um objeto mental – como um sonho – cuja existência não vai além do ato perceptivo.

Mas essa posição é precária, para dizer o mínimo; pois se o ato da percepção na verdade não cobre o abismo entre os mundos interno e externo – entre o res cogitans e o res extensa – como então esse abismo é transposto? Como, em outras palavras, é possível conhecer as coisas externas, ou mesmo conhecer que elas existem como um mundo externo, em primeiro lugar? O próprio Descartes, como se recordará, teve grande dificuldade em superar as suas célebres dúvidas, e só pôde fazê-lo através de um tortuoso argumento que poucos hoje em dia achariam convicente. Não é estranho que os práticos e críticos cientistas tenham tão prontamente e por tão longo tempo defendido uma doutrina racionalista que põe em dúvida a própria possibilidade do conhecimento empírico?

Mas, por outro lado, se alguém ignorar este impasse epistemológico – ou se fingir que ele foi resolvido –, então é capaz de se satisfazer com o benefício aparente que o cartesianismo de fato oferece: pois como eu já destaquei, a simplificação do mundo externo que resulta da bifurcação torna pensável uma física matemática de alcance ilimitado. Mas a questão, de qualquer forma, não é se a bifurcação é vantajosa em algum sentido, mas simplesmente se ela é verdadeira e realmente sustentável. E esse é o problema que precisa ser resolvido em primeiro lugar; todas as outras questões que pertencem à interpretação da física são obviamente uma conseqüência disso, e, portanto, devem esperar a sua vez.

Antes da ciência, antes da filosofia, antes de toda investigação racional, o mundo existe e é em parte conhecido. Ele existe não necessariamente no sentido específico no qual alguns cientistas ou filósofos possam ter imaginado que exista ou não, mas precisamente como algo que pode e deve vez ou outra se apresentar à nossa investigação. Além disso, ele deve se apresentar por um tipo de necessidade lógica, já que pertence à própria concepção de um mundo a ser conhecido parcialmente – da mesma forma que pertence à natureza de um círculo encerrar alguma região do plano. Ou, pra colocar de outra forma: se o mundo não fosse conhecido em parte, ele ipso facto deixaria de ser o mundo – o “nosso” mundo, de qualquer maneira. Logo, em um sentido – que pode, mesmo assim, ser facilmente mal compreendido! – o mundo existe “para nós”; está aí “para a nossa investigação”, como eu disse.

Ora, essa investigação com certeza é realizada através dos nossos sentidos, através da percepção; só que desde o início é preciso entender que percepção não é sensação pura e simples, o que é o mesmo que dizer que ela não é só uma recepção passiva de imagens ou um ato desprovido de inteligência humana. Mas, independente de como o ato é consumado, segue o fato de que nós percebemos as coisas que nos cercam; com a permissão das circunstâncias, nós podemos ver, tocar, ouvir, degustar e cheirar as coisas, como todo mundo sabe muito bem. É, portanto, inútil e perfeitamente vazio falar do mundo como algo que é em princípio impercebido e imperceptível; e, mais, isso é uma ofensa contra a linguagem – como dizer que o oceano é seco, ou que uma floresta é vazia. Pois o mundo é manifestamente concebido como o lugar das coisas perceptíveis; ele consiste de coisas que, embora possam não ser agora atualmente percebidas, poderiam entretanto ser percebidas sob condições apropriadas: este é o cerne da questão. Por exemplo, eu agora percebo a minha escrivaninha (através dos sentidos da visão e do tato); e quando eu deixo o meu escritório, eu não irei mais percebê-la; mas o ponto, claro, é que, ao retornar, eu posso novamente percebê-la. Como o bispo Berkeley bem observou, dizer que um objeto corpóreo existe é dizer não que ele é percebido, mas que ele pode e será percebido sob circunstâncias apropriadas.

É esta verdade vital e muito esquecida que permeia a sua máxima merecidamente celébre: “Esse est percipi” (“Ser é ser percebido”), não obstante a possibilidade desta afirmação altamente elíptica realmente ser interpretada no sentido de um idealismo espúrio. Além disso, esse perigo – do qual o próprio bispo irlandês caiu vítima [1] – surge principalmente em razão do percipi na fórmula de Berkeley poder facilmente ser mal compreendido. Como eu já salientei, pode a percepção ser interpretada erroneamente como uma mera sensação; e foi essencialmente assim que a maioria dos filósofos a interpretou, desde a época de John Locke até o século XX, quando aconteceu desta visão bruta e insuficiente ser sujeita ao escrutínio e descartada pelas principais escolas.


1. Eu discuto as filosofias de Descartes, Berkeley e Kant a propósito da bifurcação em Cosmos and Transcendence (La Salle, IL: Sherwood Sugden & Co., 1984), ch. 2.

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