quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Sócrates de Copleston, parte I

Tradução do capítulo XIV do Livro I de A History of Philosophy, de Frederick Copleston.



1. O início da vida de Sócrates 

A morte de Sócrates deu-se no ano de 399 a.C., e, como Platão nos conta que Sócrates tinha setenta anos de idade ou um pouco mais do que isso na hora de sua morte, ele deve ter nascido perto de 470 a.C. [1]. Ele era o filho de Sofronisco e Fenarete, da tribo Antióquia e do deme de Alopece. Alguns disseram que seu pai era um escultor [2], mas A. E. Taylor acha, com Burnet, que a história foi um mal-entendido surgido de uma referência jocosa no Eutifron a Dédalo como o ancestral de Sócrates [3]. De qualquer modo, Sócrates não parece ter ele próprio seguido o comércio do seu pai, se esse era o comércio de seu pai, e o grupo das Graças na Acrópole que depois foi exibido como obra de Sócrates é atribuído pelos arqueólogos a um escultor anterior [4]. Sócrates não pode, contudo, ter vindo de uma família muito pobre, já que o encontramos mais tarde servindo com um hoplita completamente equipado, e ele deve ter recebido um patrimônio suficiente para se permitir ocupar tal cargo. Fenarete, a mãe de Sócrates, é descrita no Teeteto [5] como uma parteira, mas, mesmo que verdadeiro, isso não implicaria que ela fosse uma parteira profissional no sentido moderno, como aponta Taylor [6]. Assim, o início da vida de Sócrates ocorreu no grande auge do esplendor ateniense. Os persas haviam sido derrotados em Platéia em 479, e Ésquilo produzira os Os Persas em 472: Sófocles e Eurípedes eram ainda garotos [7]. Além dísso, Atenas já havia estabelecido a base de seu império marítimo.

No Simpósio de Platão, Alcebíades descreve Sócrates como semelhante a um sátiro ou um sileno, [8] e Aristófanes dizia que ele pavonava-se como uma ave aquática, e ridicularizava o seu costume de revirar os olhos [9]. Mas também sabemos que ele era dotado de uma particular robustez corporal e capacidade de resistência. Como um homem, do inverno ao verão ele vestia a mesma vestimenta e mantinha o seu hábito de andar de pés descalços, mesmo em uma campanha de inverno. Embora muito abstêmio de comida e bebida, ele podia beber uma grande quantidade sem ficar nem um pouco pior por conta disso. A partir da sua juventude ele passou a receber mensagens proibitivas e avisos de sua misteriosa ”voz” ou “sinal”, ou daimon. O Simpósio nos conta sobre seus prolongados acessos de abstração, um deles tendo demorado todo o dia e toda a noite – e isso em meio a uma campanha militar. O professor Taylor prefere interpretar essas abstrações como êxtases ou arrebatamentos, mas parece mais provável que eles fossem prolongados acessos de abstração causados por uma intensa concentração mental sobre algum problema, um fenômeno conhecido no caso de alguns outros pensadores, mesmo que não em tão larga escala. A própria extensão do “êxtase” mencionado no Simpósio parece ir contra ele ser uma verdadeiro arrebatamento no sentido místico-religioso [10], ainda que um acesso de abstração tão prolongado fosse também excepcional.

Quando Sócrates estava no início da casa dos vinte anos, o pensamento, como já vimos, tendeu a sair das especulações cosmológicas dos jônicos para se dirigir ao próprio homem, mas parece que Sócrates começou estudando as teorias cosmológicas do Oriente e do Ocidente nas filosofias de Arquelau, Diógenes de Apolônia, Empédocles e outros. Teofrasto afirma que Sócrates foi na verdade um membro da escola de Arquelau, o sucessor de Anaxágoras de Atenas [11]. De qualquer forma, Sócrates certamente teve uma decepção com Anaxágoras. Perplexo com a discordância das várias teorias filosóficas, Sócrates recebeu uma luz repentina da passagem onde Anaxágoras falava da Mente como sendo a causa de toda lei e ordem natural. Encantado com a passagem, começou a estudar Anaxágoras na esperança de que este explicaria como a Mente opera no universo, ordenando todas as coisas para o melhor delas. O que na verdade ele encontrou foi que Anaxágoras introduziu a Mente apenas para dar princípio ao movimento do vórtice. Essa decepção colocou Sócrates em sua própria linha de investigação, abandonando a filosofia natural que parecia não levar a lugar nenhum, exceto à confusão e a opiniões contrárias. [12]

A. E. Taylor conjectura que, com a morte de Arquelau, Sócrates foi, para todos os efeitos, o seu sucessor [13]. Ele tenta defender este argumento com a ajuda da peça de Aristófanes, As Nuvens, onde Sócrates e seus companheiros do pensatório ou φροντιστήριον são representados como viciados nas ciências naturais e como defensores da doutrina do ar de Diógenes de Apolônia [14]. Portanto, a retratação de Sócrates de que ele nunca teve “pupilos” [15], se a conjectura de Taylor estiver correta, significaria que ele não havia tido nenhum pupilo pago. Ele tivera ταροι, mas nunca μαθηταί. Contra isto se pode insistir que na Apologia Sócrates afirma expressamente: “Mas a verdade simples e clara é, ó, atenienses, de que eu nada tenho a ver com especulações físicas” [16]. É verdade que na época em que Sócrates foi retratado falando na Apologia ele já havia há muito tempo abandonado a especulação cosmológica, e que suas palavras não implicam necessariamente que ele nunca se ocupou com tais especulações; na verdade, sabemos por um fato que ele se ocupou sim; mas parece, para o presente escritor, que todo o tom da passagem vai contra a idéia de que Sócrates fora alguma vez o professado líder de uma escola dedicada a esse tipo de especulação. O que se diz na Apologia certamente não prova, em sentido estrito, que Sócrates não foi o líder de tal escola antes de sua “conversão”, mas parece que a interpretação natural seria a de que ele nunca ocupou tal posição.

A “conversão” de Sócrates, que engendrou a sua mudança definitiva para o irônico filósofo moral, parece ter sido causada pelo famoso incidente no Oráculo de Delfos. Querofonte, um amigo devoto de Sócrates, perguntou ao Oráculo se havia algum homem vivo mais sábio do que Sócrates e recebeu a resposta “Não”. Isso fez com que Sócrates ficasse a pensar, e ele veio à conclusão de que Deus quis dizer que ele era o homem mais sábio porque ele reconhecia a sua própria ignorância. Ele veio então a conceber a sua missão como a busca pela verdade estável e segura, pela verdadeira sabedoria, e a mobilizar a ajuda de qualquer homem que consentisse em ouvi-lo [17]. Por mais estranha que possa parecer a história do Oráculo, ela provavelmente aconteceu de verdade, já que é improvável que Platão colocasse uma mera invenção na boca de Sócrates em um diálogo que obviamente tem o propósito de dar uma explicação histórica sobre o julgamento do filósofo, especialmente porque a Apologia é de uma antiga data, e muitos que conheciam os fatos estavam ainda vivos.

O casamento de Sócrates com Xantipa é mais conhecido pelas histórias sobre o caráter rabugento dela, o que pode ou não ser verdadeiro. Com certeza elas dificilmente são confirmadas pela figura da esposa de Sócrates dada no Fédon. O casamento provavelmente ocorreu em alguma época nos primeiros dez anos da Guerra do Peloponeso. Nesta guerra, Sócrates distinguiu-se por sua bravura no cerco de Potidéia, em 431/30, e novamente na derrota dos atenienses para os beócios em 424. Ele estava presente também na ação do lado de fora de Anfípolis em 422. [18]



Notas

1. Apologia, 17d.

2. Cf. Diógenes Laércio. (Assim, Praechter diz claramente: Der Vater des Sokrates war Bildhauer, p. 132)

3. Eutífron, 10c.

4. Diógenes Laércio observa que “Alguns dizem que os gregos na Acrópole são obra sua”.

5. Teeteto, 149a.

6. Taylor, Sócrates, p. 38.

7. “Todos as grandes construções e obras de arte com as quais Atenas estava enriquecida na era de Péricles, os Muros Longos que ligavam a cidade ao porto de Pireu, o Partenon, os afrescos de Polignoto, foram iniciadas e terminadas sob os seus olhos.”

8. Simpósio, 215b3 ff.

9. As Nuvens, 362 (cf. Simpósio, 221).

10. É verdade, contudo, que a história do misticismo realmente registra casos de prolongados estados extáticos. Cf. Poulsin, Grâces d’ oraison, p. 256.

11. Opiniões dos Físicos., fr. 4.

12. Fédon, 97-9.

13. Sócrates, p. 67.

14. As Nuvens, 94.

15. Apologia, 19.

16. Apologia, 19.

17. Apologia, 20 ff.

18. Apologia, 28e. Burnet sugere que possa se referir ao combate na fundação de Anfípolis (cerca de quinze anos antes).

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