sexta-feira, 9 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte IV

Quarta e última parte da tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf



IV. O sistema nervoso central


As dificuldades na filosofia natural do prof. Monod se tornam cada vez mais insolúveis conforme subimos pelo processo evolutivo até a “fronteira” superior do atual conhecimento biológico. Por um lado, o prof. Monod admite que “o papel cumprido pelas atuações teleonômicas na orientação da seleção torna-se cada vez maior quanto mais alto for o nível de organização e, conseqüentemente, da autonomia do organismo com relação ao seu meio ambiente” (p. 121). Essa autonomia mostra-se através de uma capacidade de “escolha” de um determinado tipo de comportamento, ou através de um “desejo”, que cria novas direções no processo evolutivo (9). Por outro lado, contudo, essa capacidade de escolha, a ação desse desejo, não implica, segundo o autor, n’uma diferença “qualitativa” com relação aos níveis inferiores dos seres vivos. Tudo é explicado (ou, pelo menos, explicável em teoria) por uma complicação meramente quantitativa do mecanismo de interações elementares. Em outras palavras, a “lógica” que controla o comportamento dos seres vivos, em todos os seus níveis, é uma lógica unívoca, não analógica.

Essa contradição entre “escolha” e “novidade”, que aparece no processo evolutivo e na uniformidade do “mecanismo”, torna-se particularmente evidente no nível do homem. Segundo o prof. Monod, a inegável correlação entre a evolução privilegiada do sistema nervoso no homem e o desenvolvimento da linguagem simbólica deve ser interpretada no sentido de que este último é “não só o produto, mas uma das condições iniciais dessa evolução” (p. 124). Monod esclarece sua afirmação com as seguintes asserções: “aparecendo muito cedo em nossa linha, a comunicação simbólica mais rudimentar, por meio das suas possibilidades radicalmente novas, foi uma dessas ‘escolhas’ iniciais cruciais que decidiram o futuro da espécie ao fazer surgir uma nova pressão seletiva. Essa seleção favoreceu o desenvolvimento da habilidade lingüística e assim do órgão que servia a ela, o cérebro” (p. 124-5). Mas tal asserção não decide o ponto central da questão: como pode ser explicada essa escolha, que abre novas direções no caminho da evolução? Escolha de quem, e por qual motivo? A pergunta parece ser legítima, já que o prof. Monod busca explicar a enorme riqueza do pensamento humano através da analogia com máquinas cibernéticas, e por isso, finalmente, nos termos da físico-química. Mesmo o colaborador do prof. Monod, F. Jacob, confirma a legitimidade da nossa pergunta, quando escreve: “Descrever nos termos da física e da química um movimento de consciência, de sentimento, é um problema totalmente diferente. Nada assegura esperança alguma de que nós um dia teremos sucesso – não só por causa da complexidade, mas também porque é sabido, conforme Gödel, que um sistema lógico não pode bastar à sua própria descrição” (10).

Concluindo, o pensamento de Monod parece oscilar entre duas classes de afirmações distintas. Uma inclui todos os enunciados em favor da objetividade do “projeto teleonômico”: “... o organismo efetivamente transcende as leis físicas – mesmo que obedecendo-os – assim alcançando de uma só vez a busca e a realização do seu próprio fim” (p. 81). A outra pretende contrabalancear as afirmações anteriores, resolvendo no fim das contas (como já vimos) a espontaneidade das reações teleonômicas na invariância determinística do mecanismo replicativo e a homogeneidade das reações elementares. “Nada assegura a suposição de que as reações básicas sejam de diferentes naturezas nos diferentes níveis de integração” (p. 140).

Contudo, como já tentamos mostrar, a invariância parece implicar necessariamente a teleonomia. Além disso, o mero fato de que as reações elementares são as mesmas em todos os níveis de integração não nos permite concluir imediatamente em favor de uma diferença puramente quantitativa entre os diferentes níveis de seres vivos, ou mesmo – mais radicalmente – entre os diferentes níveis de organização da matéria. O fato de que o funcionamento do sistema nervoso central seja fundado em mecanismos que podem ser inteiramente analisados pela bioquímica não significa necessariamente que a atividade intelectual do homem seja redutível aos resultados automáticos de um aparelho cibernético, embora de uma enorme complexidade. Enquanto segue a mesma teoria sintética de Monod, nesse ponto G.G. Simpson mostra muito mais cautela: “A vida – ele escreve – é materialística na natureza, mas ela tem em si propriedades únicas que residem na sua organização, não em seus materiais ou sua mecânica” (11). A estrutura e o mecanismo são sem dúvida uma condição necessária para a vida. Mas são também a sua causa? A pergunta sem dúvida se torna ainda mais perspicaz quando consideramos as mais superiores manifestações do fenômeno da vida.



V. A ideologia de Monod


A razão fundamental das “contradições” que parecem existir no pensamento do prof. Monod deve ser buscada, nós acreditamos, não no nível das afirmações verdadeiramente científicas, mas no das deduções que ele pensa poder fazer partindo dos resultados da biologia moderna. Como já destacamos, essas deduções são apoiadas por postulados que vão além do puro domínio da ciência, pertencendo mais ao das “generalizações ideológicas” (12). É sobre este último ponto que gostaríamos de refletir agora.

Enquando fala do problema que surge da presença da teleonomia nos seres vivos, Monod escreve: “É a própria existência desse fim, de uma só vez buscado e atingido pelo aparelho teleonômico, que é o ‘milagre’. Milagre? Não, o problema real se encontra em um outro nível, mais profundo do que o do fenômeno” (p.30). Esta admissão é extremamente significativa. O próprio prof. Monod admite que a solução do problema da teleonomia deve ser procurada em um nível mais profundo do que o do fenômeno, das leis biológicas; isto é, no nível da reflexão intelectual. Como já vimos, a reflexão intelectual, como é proposta pelo prof. Monod, tem seu fundamento epistemológico no postulado da objetividade, que nos proíbe de considerar a teleonomia como uma propriedade original, independente. Contudo, uma coisa é afirmar que a metodologia científica é baseada em um postulado tal como esse (13); outra é alegar que a teleonomia deva ser excluída como um fato independente da realidade dos fenômenos naturais. Esta segunda afirmação vai muito além da anterior, implicando (como implica) que o conhecimento científico, com o seu “postulado da objetividade”, é o único conhecimento verdadeiro.

Aqui somos confrontados com um enunciado que não é mais científico, mas filosófico (ou ideológico, como Monod preferiria chamar). Conforme bem se sabe, essa é a afirmação clássica do “cientificismo” (14). E devemos admitir que raramente surgiu, especialmente nos últimos anos, uma posição de “cientificismo” tão radical e descompromissada.

Mas como é possível justificar, no nível da “ideologia”, a adoção do postulado da objetividade como o único fundamento do verdadeiro conhecimento? O próprio Monod, como já observamos, sente a dificuldade de tal problema quando ele admite que a escolha do postulado vai além do domínio do conhecimento, sendo, como é, o seu fundamento. Contudo, a alegação do autor de que esse é um problema de “escolha ética” é realmente satisfatória? Na verdade, como pode uma escolha puramente ética ser “a condição axiomática da autenticidade para todo discurso e toda ação” (p. 164)? Visto que uma escolha ética desse tipo não é o resultado de uma decisão meramente arbitrária, mas “apresentada como um valor transcendental, um conhecimento verdadeiro, não para o uso do homem, mas para que o homem sirva” (p. 165), e à qual só deve ser atribuído o caráter de verdade e autenticidade, parece ser possível apenas uma conclusão: isto é, a “ética do conhecimento” de Monod implica por sua vez um ato de fé – quer dizer, a fé de que apenas o conhecimento científico pode nos dar a verdade (e mesmo uma autêntica praxis política).

Um ato de fé, contudo, sendo um ato extra-racional, não pode ser racionalmente justificado, nem pode por isso ser a base de uma resposta racional aos problemas trazidos pelo fenômeno da vida. Na verdade, já notamos que a alegada clareza cartesiana das deduções do prof. Monod, longe de responder as interrogativas, deixa-as completamente em aberto. Esse é, como vimos, o caso do problema das conexões entre a invariância e a teleonomia, e mais ainda o do sentido e função que devem ser dados à necessidade e ao acaso na natureza, ou o da distinção entre “espírito” e matéria no nível do homem.

Encarando o “mistério” que resta depois de tudo, nos encontramos com a interrogação dos homens de todos os tempos, e com a possibilidade de dois tipos de respostas: a que vê nos processos naturais, em todos os níveis, a manifestação de uma “ordem” ou “projeto” cósmico; a outra que alega resolver toda a teleonomia do universo na ação do puro acaso e da necessidade cega. Qual das duas está certa? Se não queremos reduzir tal problema à oposição de dois diferentes tipos de “atos de fé” (ou de “éticas do conhecimento”), as quais nenhuma pode ser racionalmente justificada, devemos ter a coragem de perguntar a nós mesmos se além do conhecimento científico não existiria possivelmente uma ulterior forma de conhecimento, a da filosofia, em cujo nível poderia se buscar a solução dos “problemas-limite” do conhecimento humano: o problema da existência do universo, com suas propriedades físico-químicas; o problema do surgimento da vida; e, finalmente, o problema da existência do pensamento humano. Esses problemas enormemente difíceis e complexos não podem ser resolvidos dentro do plano do “cientificismo” do prof. Monod. O autor de “O Acaso e a Necessidade” sem dúvida rejeita tal “projeto filosófico” por ser desprovido de qualquer sentido. Por mais paradoxal que pareça, na “filosofia natural” do prof. Monod, não há lugar para a filosofia, mas apenas para a ciência, a sua alegada objetividade perfeita e sua dialética de determinismo e acaso. O acaso parece ser a última palavra a respeito de todos os problemas-limite que mencionamos. “O homem enfim sabe que está sozinho na imensidão insensível do universo, da qual ele surgiu apenas por acaso. Nem o seu destino nem o seu dever foram escritos” (p. 167). E, contudo, mesmo o prof. Monod parece não estar totalmente satisfeito com a sua resposta, já que ele imediatamente acrescenta: “O reino acima ou a escuridão abaixo: é uma escolha dele”.

Não é esse todo o problema que temos pela frente? Qual é o “reino”? Qual é a “escuridão”? Apesar de todos os seus grandes méritos, “O Acaso e a Necessidade” não parece a nós dar uma resposta satisfatória para tal interrogação. Não poderíamos dizer, talvez, que essa incapacidade resulta dos limites da filosofia democritiana, que o prof. Monod quis sustentar com uma coerência tão inflexível? Isso nos faz lembrar das famosas palavras de Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia” (15).



Notas

9. Escreve Monod (p. 122): “Na evolução de certos grupos observamos uma tendência geral, mantida por milhões de anos, em direção ao desenvolvimento aparentemente orientado de certos órgãos; este fato mostra como a escolha inicial de um determinado tipo de comportamento... coloca a espécie no caminho para um contínuo aperfeiçoamento das estruturas e atuações que sustentam esse comportamento”. E um pouco depois: “É portanto correto dizer que o impulso sexual – ou melhor ainda, o desejo – criou as condições sob as quais muitas plumagens magníficas foram selecionadas”.

10. F. Jacob, “La logique du vivant”, Gallimard, 1970, p. 337. O próprio Monod está ciente da dificuldade, quando escreve: “Um lógico pode lembrar o biólogo que os seus esforços em ‘entender’ o completo funcionamento do cérebro humano estão fadados ao fracasso, visto que nenhum sistema lógico pode produzir uma descrição integral de sua própria estrutura” (p. 137). Mas quando ele tenta se livrar da dificuldade, observando que “esse aviso seria um tanto inapropriado, considerando-se o quão distante estamos ainda da fronteira absoluta do conhecimento” (ibid.), inevitavelmente surge a pergunta: o que se quer dizer aqui por “fronteira absoluta” (“frontière absolue”)? Se o fenômeno do conhecimento (especialmente a auto-consciência) fosse um fenômeno-limite, um limite absoluto, isso pareceria implicar que a uma explicação pura nos termos físico-químicos, por mais que se aprofundasse, permanecerá para sempre do lado de cá daquele limite. Isto estaria de acordo, achamos, com o significado do teorema de Gödel. Se, ao contrário, como parece ser mais provável, por “fronteira absoluta” Monod quer dizer uma fronteira absolutamente impossível de atravessar no presente estado do nosso conhecimento, mas transponível em teoria (assim que a lógica da cibernética bio-molecular for finalmente compreendida), então a dificuldade levantada pelo prof. Jacob manteria a sua força.

11. G. C. Simpson, “The meaning of Evolution”, Yale Univ. Press, 1950, pp. 291-292.

12. O prof. Monod afirma que o “postulado da objetividade” pretence ao campo da ciência, não das generalizações ideológicas, que são o resultado de um esforço maior de reflexão. Mas nós achamos ter mostrado suficientemente que, se há uma posição “ideológica” clara nos pensamentos de Monod, ela deve ser encontrada antes de tudo no nivel epistemológico do “postulado da objetividade”, como compreendido e utilizado pelo biólogo francês.

13. Acreditamos que talvez nem todos os cientistas contemporâneos concordem neste ponto.

14. Mais exatamente, do “cientificismo” do último século, do qual muitos biólogos contemporâneos (como Monod) parecem estar muito mais próximos do que a maioria dos físicos. Veja, por exemplo, W. Heisenberg, em “Physics and Beyond”, Harper and Row, 1971.

15. Shakespeare, Hamlet, Ato I.

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