sexta-feira, 30 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte VI (final)

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html  
 
§ 7.1 Os Cinco Setes
Esse é o contexto no qual a “representação da nossa Igreja” (figura 2) deve ser considerada. A sua semelhança inicial com um diagrama astronômico não precisa de maior explicação; ele pode ser lido prontamente como uma rota tabular para o uso devocional, derivado de uma longa e complexa tradição da exposição esquemática, da qual os diagramas científicos formavam só uma parte. Certos aspectos dessa figura sugerem que ela transmite uma versão menos do que perfeita da concepção original. Por exemplo, ela incorpora, entre outras idéias, a da ascensão centrípeta do pecado à salvação; mas enquanto a periferia é dedicada aos Vícios, e uma inscrição indo da circunferência ao centro lê “escolha o mais próximo de Deus”, o meio do diagrama é ocupado não pela divindade, mas por uma roseta inconseqüente. Será útil, portanto, confrontá-lo com duas outras versões da mesma imagem, menos bem preservadas, mas que provavelmente reproduzem o original de maneira mais completa. Uma delas é um desenho francês do começo do século XIII, agora em Oxford (figura 24); a outra é uma obra francesa um pouco anterior cujo paradeiro atual é desconhecido (figura 25).[83] A figura 2 é do MS Royal 14 B IX na British Library: um rolo contendo a Arbor historiae de Pedro de Poitiers com essa figura anexada como um colofão. O estilo das ilustrações no Royal MS foi associado com o famoso scriptorium de St Albans, mas isso não é endossado pela evidência paleográfica, e a hegemonia de St Albans nesse tipo de desenho aquarelado provavelmente foi superestimada. [84] Contudo, o rolo não parece ser trabalho inglês, provavelmente datado dos anos 1270.

O diagrama contém dois componentes principais: uma composição circular encerrando um grande número de círculos menores, concêntricos e aleatoriamente distribuídos, articulados pelos raios; e um fundamento retangular no qual se encontra o círculo. O retângulo consiste quase que somente de texto e é definido por inscrições horizontais e verticais em tinta vermelha; ele está mais claramente delineado em outras versões do desenho (figura 24). A parte circular dispõe sistematicamente os Vícios, a Oração do Pai Nosso, os Dons do Espírito Santo, as Virtudes e as Beatitudes, como uma seqüência ascendente. A parte central do setor superior torna isso claro com uma analogia médica: os Vícios são doenças (languores) debilitantes, o Homem é o inválido, Deus é o médico; as Petições da Oração do Pai Nosso são os suspiros do paciente, os Dons do Espírito Santo são o remédio (antidota), as Virtudes são a saúde, e as Beatitudes são as alegrias dos bem-aventurados. No topo da figura, como o início dessa seqüência, está uma personificação do Orgulho, a origem de todo mal. Nos exemplos franceses ilustrados aqui, ela é uma figura apropriadamente proeminente; mas no Royal MS, ela é do mesmo tamanho das outras figuras em medalhões ao redor da circunferência do círculo, que representam, em cenas gráficas de gênero, sete outros Vícios. Cada um destes é fragmentado estematicamente em seus componentes nas figuras 24 e 25, e de forma meramente verbal no Royal MS. Os três conjuntos seguintes de septenários (as Petições da Oração do Pai Nosso, os Dons e as Virtudes) são analisados de forma similar, e, nas figuras 24 e 25, acompanhados por um comentário em prosa; no Royal MS, esse texto aparece abaixo do diagrama. Assim, o primeiro setor à esquerda do Orgulho contém um medalhão que ilustra o pecado da Luxúria (luxuria), analisado em impetuosidade, inconstância e oito outras más qualidades; a Petição “santificado seja o Teu nome” é explicada em “através das ações, através da compreensão, através da demonstração exterior, através da perseverança”; o Dom da Sabedoria se divide em “a partir da experiência” (a sapore), e “a partir da habilidade” (a sapere); a Virtude da Paz é “do coração” ou “da eternidade”, e a seqüência conclui com as palavras essenciais da Beatitude indivisível apropriada à Virtude: “abençoados sejam os pacificadores porque eles serão chamados de filhos de Deus”. [85]

Observaremos que, se é para as Petições da Oração do Pai Nosso aparecerem na sua seqüência correta, o diagrama deve ser lido no sentido anti-horário; contudo, os Dons do Espírito Santo e as Beatitudes com as suas Virtudes associadas só assumem sua ordem canônica na leitura em um sentido horário. Nos escritos exegéticos sobre a Oração do Pai Nosso, esses últimos três tópicos são às vezes apresentados na forma inversa, se o autor sentisse que isso resultaria em um conjunto de paralelos mais esclarecedor; em contrapartida, e em grande parte de forma não convencional, o Pai Nosso era discutido de trás pra frente.[86] É uma das vantagens da exposição diagramática evitar essa necessidade de fazer violência à seqüência de idéias: ela pode ser lida em qualquer direção.

Fora da rota no Royal MS estão quatro medalhões mostrando diferentes aspectos de Cristo: incriado, incarnado, ressurecto e como um juiz. Estes são ligados para formar um quadrado por meio de textos em tinta vermelha que fazem um paralelo entre as quatro Eras do Mundo e os festivais do ano litúrgico. Uma versão mais clara do que se pretende aí é vista na figura 24 e, até onde permite o corte bruto, na figura 25. A figura retangular não é um simples quadrado, mas uma faixa angular discontínua com começo e fim. O primeiro medalhão mostra apropridamente Adão, o segundo, Moisés, e depois vem a Incarnação, a Ressurreição e o Juízo Final; essas são figuras ou eventos históricos que demarcam as quatro Eras descritas no texto. Os quadrantes entre o círculo e o quadrado no Royal MS contêm textos sobre os Dons do Espírito Santo; abaixo da figura há um longo texto em duas colunas, que primeiro recapitula a parte cronológica do esquema e depois fornece uma série de comentários sobre o Pai Nosso. Esses textos também aparecem na parte de dentro e acima da rota nas figuras 24 e 25.[87] Eles não são conhecidos a partir de nenhuma outra fonte, e foram provavelmente compostos para acompanhar a figura.

Normalmente se diz que o desenho ilustra ou deriva-se do tratado De quinque septenis de Hugo de S Vitor.[88] A obra de Hugo lida com os mesmos assuntos que a rota e utilize a analogia médica, mas há discrepâncias significativas entre o tratado e a imagem: Hugo discute apenas sete Vícios, os paralelos entre os vários septenários não se correspondem,e o material histórico é omitido. Diversos outros exemplos do desenho são, como a versão no Royal MS, pendentes à Arbor historiae, e é possível que a figura e os textos sejam obra de Pedro de Poitiers.[89] Enquanto o documento vitoriano sem dúvida deu sua contribuição, a rota dos Cinco Setes só pode ser totalmente compreendida como uma criação original, autônoma: não uma ilustração para uma obra de literatura, mas um exemplo sofisticado da tradição da exegese visual por meio do desenho geométrico. Usar a frase “geometria da mente” em conexão com essa tradição talvez lhe empreste conotações da Matemática e da Psicologia injustificáveis; e ninguém nunca alegou que esses esquemas representassem, sob qualquer sentido, a forma pela qual o cérebro funciona. [90] Mas eles oferecem um comentário ímpar sobre o raciocínio, os processos mentais e os modos de percepção intelectual da Idade Média.


Notas

83. Para esses dois MSS, veja A C de la Mare Catalogue of the Collection of Medieval Manuscripts Bequeathed to the Bodleian Library, Oxford, by James P R Lyell Oxford 1971, pp. 254–56; Settimana del libro antico e raro (catálogo de exibição da IV Fiera internazionale del libro, Istituto Italiano del Libro) Florença 1932, pp. 4–6, figura 2.

84. G F Warner e J P Gilson British Museum. Catalogue of the Western Manuscripts in the Old Royal and King’s Collections ii, London 1921, p. 127. Os autores comparam os desenhos e iniciais com aquelas no saltério de Saint Albans, MS Roy 2 B VI; a sua data para o MS Roy 14 B IX (início do século XIV) parece muito tardia.

85. O desenvolvimento do tratamento exegético desses temas é descrito in O Lottin “La doctrine d’Anselme de Laon sur les dons du Saint-Espritet son influence” Recherches de théologie ancienne et médiévale xxiv, 1957, pp. 267–95. A divisio dos Vícios é uma elaboração daquela proposta in S Gregory, Moralia in Job xxxi, 45; PL 76, 621. As análises dos outros tópicos não têm precedentes.

86. S Bernard Expositio in orationem dominicam PL 184, 811–818.

87. Para os incipits, veja de la Mare, op cit nota 83 acima. Um tema histórico parecido é descrito no prólogo à Legenda Aurea de Jacobus de Voragine.

88. R Baron Hugues de Saint-Victor. Six opuscules spirituels. (Sources chrétiennes clv), Paris 1969, pp. 100–19 (texto e tradução francesa); PL 175, 405–410.

89. De la Mare, op cit nota 83 acima, sugere que possa ser a arbores virtutum et vitiorum citada na nota 54rotae e árvores são combinadas: cf o círculo-cum-árvore urinário ilustrado in Calcoen, op cit nota 21 acima, pl III. Pode ser significante também que a mais antiga cópia existente da Arbor historiae contenha a rota dos Cinco Setes; Monroe, op cit nota 36 acima, p. 95. Em todo o caso, a rota corresponde bem com a técnica expositória de Pedro como evidenciado pela Arbor historiae e do que é conhecido sobre os seus métodos de ensino; veja Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 98f. acima. A identificação é atrativa, e há exemplos onde as

90. Para ilustrações que de fato tentam retratar a função cerebral, veja E Clarke and K Dewhurst An Illustrated History of Brain Function Oxford 1972, especially pp. 29–39.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte V

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html   

§ 6.1 A “Enuntiatio” e a “interrogatio”
O exemplo da ars luliana demonstra que, embora as rodas e árvores fossem formalmente diferentes, elas podiam ser usadas como alternativas para dispor o mesmo sistema filosófico. As árvores e tabelas também eram usadas de forma intercambiável: as árvores exibiam claras correspondências laterais, e as tabelas assumiam crescimentos arbóreos (figura 10). Isso ocorria apesar do fato das duas formas serem não apenas estruturalmente distintas, mas também corresponderem a dois diferentes métodos especulativos medievais: a distinctio escolástica, descrita acima, e a exegese tipológica. Esta não buscava distinguir os diferentes componentes de um único tópico, mas encontrar analogias entre conceitos que eram reconhecidamente distintos, como os Antigo e Novo Testamentos.[66] Quando um esquema unia a árvore com a tabela, ficava incapaz de explorar as características peculiares a cada uma das formas; ele, contudo, tornava explícito um elemento particular comum às duas: era essa a qualidade da informação que elas transmitiam. Em ambos os casos, era uma enuntiatio, uma assertiva, uma afirmação não sustentada. Mas, obviamente, é inadequado um visual análogo ao método filosófico que só possa comunicar nestes termos; no mínimo, exige-se algo equivalente à interrogatio escolástica. A volvele, que variava a informação fornecida pelo diagrama de acordo com a direção na qual se girava a rota, fornecia isso; mas não era necessário criar esquemas móveis para simular a versão diagramática da interrogatio: a mesma coisa podia ser realizada com uma figura estática se ela oferecesse uma escolha de interpretações de diferente validade. Um exemplo familiar e muito antigo desse tipo de diagrama é o labirinto: ele fornece uma variedade abundante de escolhas, mas somente uma leva infalivelmente pelo labirinto. É como se em uma árvore esquemática somente um dos ramos dê frutos; todos os outros levam, literalmente, a becos sem saída [trocadilho que só funciona em inglês: dead ends, "extremidades mortas"]. O labirinto, é claro, ofusca onde a árvore clarifica; mas se na árvore algumas das bifurcações são delimitadas, enquanto outras conduzem o leitor a conceitos posteriores, o resultado é um tipo de labirinto que impele o participante a entender onde é que está indo. A figura mais simples desse tipo era a Letra Pitagórica, na qual os dois braços do Y representavam a escolha entre o bem e o mal.[67] Uma versão mais complexa era a Árvore de Porfírio, que expunha a relação entre gêneros e espécies e exigia uma multiplicidade de escolhas (figura 19). Surgida como uma ilustração aos comentários da Isagoga de Porfírio (final do século III), ela procedia do gênero último, a substância, às espécies últimas, os homens individuais, por uma série de divisões dicotômicas. [68] Cada bifurcação da árvore continha um lado positivo e um lado negativo. Embora fosse geralmente representada como uma composição simétrica, ela “crescia” somente do lado positivo, e, diferente da divisio, era inerentemente assimétrica. Ela também diferia da divisio por ser finita: nenhuma outra divisão era possível depois que se atingisse a categoria dos homens individuais, convencionalmente identificados como Sócrates e Platão. Mas a diferença fundamental é que o leitor não era simplesmente apresentado à totalidade do material; era-lhe dada uma série de alternativas para escolher. Em um certo sentido, ele participava do diagrama, como alguém participa de um labirinto.
§ 6.2 O Quadrado de Oposição
O quociente de participação é aumentado na familiar figura lógica chamada Quadrado de Oposição. Ela ainda é encontrada em introduções modernas à lógica, mas já existia de forma virtualmente idêntica nos tratados clássicos sobre o assunto. [69] Ela dispõe as relações entre as proposições na forma de uma cruz de saltire [cruz diagonal] dentro de um retângulo. As relações não são meramente afirmadas: elas são ilustradas para o leitor por sentenças apropriadas que exemplificam o que significa o contrário, o subcontrário, o subalterno e o contraditório. Por outro lado, o leitor pode começar pelas sentenças e usar o diagrama para descobrir as suas relações. O diagrama aqui é um instrumento, como a volvele, móvel, porém, na forma em que pode ser lido, e não na forma em que pode ser orientado. Ele não enuncia verdades simplesmente, mas permite ao leitor encontrá-las. O Quadrado de Oposição podia ser elaborado com membros laterais para cobrir proposições subalternas particulares, ou, com uma horizontal no meio e uma cruz de saltire acima e abaixo dela, tornava-se a figura chamada de pons asinorum, que era usada para descobrir o termo médio em um silogismo (figura 20). Comentários posteriores da Idade Média sobre os textos escolásticos, especialmente sobre os Summulae logicales de Pedro Hispano, ampliavam essas figuras lógicas até o ponto da complexidade maníaca, abrangendo proposições compostas e a chamada ars insolubilis;[70] mas as faixas sobrepostas resultantes conectando os termos tornaram-se tão intrincadas que o diagrama representa um desafio em si mesmo, ao invés de um auxílio para uma solução.
§ 6.3 O “Scutum fidei”
Diagramas como o Quadrado de Oposição continham um óbvio apelo para os teólogos: com um pouco de engenho, a prova visual fornecida por uma figura lógica podia ser adaptada à apresentação do dogma religioso. Assim como Lúlio esperava que seu ars convenceria os pagãos sobre a verdade do cristianismo, também outros empregaram demonstrações visuais filosóficas e científicas para fins especificamente teológicos. Uma modificação triangular do Quadrado de Oposição foi assim usada como uma ilustração da doutrina da Trindade e de várias outras crenças religiosas (figura 21). O artifício foi inventado em meados do século XIII; esta era a época em que a heráldica estava se tornando um sistema estritamente codificado, e os primeiros exemplos o identificam com o brasão no Escudo da Fé mencionado por S. Paulo (Efés. 6:16). Mas logo ele perdeu as suas conotações armoriais, e exemplos posteriores apresentam um diagrama de três lados, às vezes acompanhados por instruções sobre como lê-lo.[71] Um caso similar de apropriação teológica de uma figura técnica é o uso que faz Pedro Alfonso em seus Dialogi (após 1106) de uma figura astronômica do De natura rerum de Beda para mostrar como a Trindade se relacionava com o Tetragrammaton.[72] Um manuscrito de Chartres do século XIV continha uma tentativa ainda mais determinada de implicar a ciência na religião: uma ilustração das propriedades matemáticas dos anéis de Borromeu foi utilizada para demonstrar a relação entre as três Pessoas. [73] Essa apropriação de diagramas científicos para fins religiosos é mais do que apenas um outro aspecto do desejo da Igreja em recorrer a auxílios visuais: também pode ser considerada como um reconhecimento da lógica irrefutável e da exatidão das ilustrações técnicas, e uma tentativa de conferir as mesmas qualidades às proposições teológicas.
§ 6.4 As visões
Não eram somente as doutrinas eclesiásticas que invocavam o diagrama científico como um exemplar pictórico; quando as experiências religiosas extáticas, proféticas ou revelatórias eram representadas graficamente, elas também lançavam mão de motivos e composições retiradas de esquemas. As ilustrações das visões de Hildegarda de Bingen, mística do século XII, são derivadas de diagramas cósmicos;[74] as profecias de Joaquim de Fiore (morto em 1202) são reveladas em árvores e tabelas;[75] e Opicinus de Canistris (1296–c1350) lançava mão de desenvolvimentos recentes nas cartas de navegação para registrar as suas revelações místicas em forma cartográfica.[76] É claro que isso não as invalida: “a experiência visionária é… uma imagem que a mente constrói… a partir de matérias-primas já à disposição” [77] e já notamos como a exposição diagramática era familiar às pessoas letradas na Idade Média. A conexão nem sempre é aparente: não é imediatamente óbvio que essa seja a fonte das diversas figuras do estranho livro devocional conhecido como os Cânticos de Rothschild: mas é possível mostrar que uma cópia ilustrada da Image du monde estava disponível aos artistas como um modelo e foi responsável por algumas das suas extraordinárias imagens (figura 22, cf figura 16).[78] O texto no lado oposto à figura 22 refere-se à visão de Ezequiel da roda dentro da roda (Ezeq 1:15f e 10:9f), que fornecia um precedente bíblico para as rotae como componentes das alucinações automísticas. Mas os diagramas em geral possuíam conotações de autoridade e de convicção que se correlacionam bem com os relatos de experiências místicas. Havia, além disso, uma razão mais prática porque as formas diagramáticas devessem ser tão compatíveis com visões, dependendo de uma das peculiaridades do esquema inscrito. Era a habilidade de expressar, explicitamente, diversos níveis de sentido ao mesmo tempo: uma qualidade que as torna praticamente únicas na arte visual. Exceto em exemplos muito específicos, uma representação pictórica significa somente uma coisa. A idéia de que as imagens carregam diversos níveis de sentido é um dos mitos dos estudos iconográficos modernos, não sustentados por nenhuma evidência.[79] Um diagrama, contudo, é capaz disso: o mesmo esquema pode acomodar diversos conceitos, cada um identificado por uma inscrição. Assim, a mesma figura que dispõe os elementos e o mundo pode ser usada para mostrar ao mesmo tempo o Homem e seus humores e o ano e suas estações.[80] A mecânica da analogia é numerológica, mas a técnica depende da teoria de uma harmonia entre o Homem e o Universo; aquele sendo um microcosmo deste. [81] Cada aspecto do mundo físico possui um paralelo no Homem, seja com seus órgãos corporais, seja com suas faculdades; e a teoria pode ser representada de acordo com o seu conteúdo, antropomórfico ou cósmico; um implicará o outro. Portanto, uma única figura, diagramática ou humana, n'um tipo de intensidade visionária, pode conter o universo inteiro em toda a sua complexidade, envolvendo o tempo, a matéria, o cosmo, o Homem e Deus. (figura 23).[82]


Notas

66. C Spicq Esquisse d’une histoire de l’exégèse latine au moyen âge (Bibliothèque thomiste xxvi) Paris 1944; H de Lubac Exégèse médiévale. Les quatre sens de l’écriture Paris 1959–64; Esmeijer, op cit nota 2 acima.

67. W Harms Homo viator in bivio (Medium aevum. Philologische Studien Bd xxi) Munich 1970.

68. E W Warren Porphyry the Phoenician. Isagoge (Medieval Sources in Translation 16) Toronto 1975; para a Árvore, veja p. 35; para as suas adaptações, veja M-T d’Alverny, “Le cosmos symbolique du XIIe siècle” Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge xx, 1953, pp. 31–81; para a sua forma essencialmente assimétrica, veja Enciclopedia filosofica Florence 1967, sv Albero di Porfirio.

69. L Pozzi Studi di logica anticae medioevale Padua 1974, pp. 39–61.

70. W Ong Ramus, Method, and the Decay of Dialogue Cambridge Massachusetts 1958, pp. 74–83; for the pons asinorum, veja Pozzi, op cit nota 69 acima, pp. 63–73.

71. O desenho é invariavelmente discutido nos termos da versão falsificada das Horae de Paris de 1524 de Simon Vostre, como ilustrado por Didron (op cit nota 73 abaixo), p. 575, no qual os seus elementos heráldicos são omitidos. Uma explicação mais completa sobre as fontes e o desenvolvimento da figura será incluída no próximo artigo do presente autor: “An Illustrated Fragment of Peraldus’s Summa of Vice” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes.

72. Reeves and Hirsch-Reich, op cit nota 2 acima, p. 42.

73. Chartres, Bibl de la Ville MS 233, fol 48v(?); o livro foi destruído na Segunda Guerra Mundial, e a figura, um entre quatro desenhos similares, está registrada somente em uma gravura in A Didron Iconographie chrétienne. Histoire de Dieu (Collection de documents inédits sur l’histoire de France) Paris 1843, p. 569; revised translation Christian Iconography New York 1965, volume ii, p. 46. Em ambas as edições, a data e a marca de biblioteca estão erradas; veja o Catalogue général des manuscrits des bibliothèques publiques de France. Départements xi, Paris 1890, pp. 116, 117; Y Delaporte Les manuscrits enluminés de la bibliothèque de Chartres Chartres 1929, p. 115.

74. H Liebeschütz Das allegorische Weltbild der Heiligen Hildegard von Bingen (Studien der Bibliothek Warburg 16) Leipzig-Berlin 1930; C Singer “The Scientific Views and Visions of Saint Hildegard” Studies in the History and Method of Science i, Oxford 1917, pp. 1–55.

75. Reeves e Hirsch-Reich, op cit nota 2 acima.

76. R G Salomon Opicinus de Canistris. Weltbild und Bekentnisse eines avignonesischen Klerikers des 14. Jahrhunderts (Studies of the Warburg Institute 1), London 1936; idem “A Newly Discovered Manuscript of Opicinus de Canistris” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xvi, 1953, pp. 45–57; R Glanville “Mapping Realities” AAQuarterly volume 12 número 4.

77. E Underhill Mysticism London 1911, p. 271.

78. M R James Description of an Illuminated Manuscript of the XIIIth Century in the Possession of Bernard Quaritch London 1904; Evans, op cit nota 40 acima, p. 319.

79. O caso contra os “níveis de sentido” é colocado in E H Gombrich Symbolic Images. Studies in the Art of the Renaissance London 1972, pp. 15–17.

80. Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 37; Bober, op cit nota 60 acima, p. 84; o diagrama de Gilberto de Limerick (nota 33 acima) também sobrepõe assim conceitos diferentes.

81. F Saxl “Macrocosm and Microcosm in Medieval Pictures” Lectures London 1957, pp. 58–72.

82. O grau de complexidade que tais esquemas podiam obter é ilustrado pelo famoso diagrama no Manual de Byrhtferth (Oxford, S John’s College MS 17, fol 7v). Isso inclui não só os elementos, humores e estações, mas, além disso (lendo de fora pra dentro), os solstícios e equinócios, os signos zodiacais, os meses e sua duração, os ventos, as Idades do Homem, os pontos cardeais e as letras A – D – A – M, que não somente soletram o nome do primeiro homem como são também um acrônimo das quatro partes do mundo em grego. Para ilustração e bibliografia, veja C M Kauffmann Romanesque Manuscripts 1066–1190 (A Survey of Manuscripts Illuminated in the British Isles) Londres 1975, p. 56, e ill 21.

A Geometria da Mente, parte IV

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html 
§ 5.1 As “Rotae”
O valor de um círculo como um veículo pictórico para expressar conceitos pode parecer inferior ao de uma árvore ou ao de uma tabela colunar. Se dividido de forma concêntrica, ele oferece somente uma hierarquia de categorias desde o centro até a circunferência; se de forma radial, uma seqüência recorrente, sem nenhum ponto de partida definido. Contudo, essa combinação paradoxal de hierarquia e continuum cíclico foi fundamental para muitas teorias medievais. Os quatro elementos dos quais se acreditava consistir toda a matéria, por exemplo, não eram apenas uma seqüência ascendente com a terra no fundo e o fogo no topo; cada elemento compartilhava uma de suas duas qualidades com outro: terra e fogo são secos, embora um seja frio e o outro quente. Assim, eles podiam ser dispostos no formato concêntrico ou radial.[56]

Além disso, um círculo dividido radialmente e concentricamente apresenta um esquema que é basicamente uma tabela colunar contínua. Os conceitos são estratificados e alinhados, mas falta o elemento direcional da tabela ou da árvore. Esses esquemas eram usados para dispor extensas séries de conceitos numericamente relacionados: a Virtude, os Sacramentos, as Obras de Misericórdia, etc (figura 13). Às vezes, um sinal marcava o ponto no qual o leitor devia começar, mas o próprio formato não tinha começou ou fim, podendo ser lido em sentido horário ou anti-horário. O conteúdo e o contexto de algumas dessas rotae (o material teológico nos livros devocionais) [57] sugerem que elas funcionavam não só como tabulações de dogmas importantes, mas também como objetos de contemplação, a forma circular focando a concentração como uma mandala.

A rota tinha outras vantagens: ela poderia participar das qualidades de uma roda real, simbolicamente, como na Roda da Fortuna ou nas Rodas da Verdadeira e da Falsa Religião, [58] ou praticamente, quando um ou mais círculos cortados, chamados volveles, eram ligados à pagina de um manuscrito por um fio de membrana, e podiam ser girados como um tipo de máquina de calcular (figura 14, cf figura 18). Ela era também um dos desenhos diagramáticos mais bem estabelecidos e difundidos. Tornou-se corrente na Idade Média desde as ilustrações até os epítomes do conhecimento, dos quais o arquétipo medieval era o De natura rerum de Isidoro de Sevilla (560–636); os desenhos das rodas formavam uma parte tão proeminente do livro que ele era conhecido também como o Liber rotarum.[59] Essas e outras rotae similares figuram extensivamente nos livros escolares e manuais de aprendizagem, e na Idade Média teriam sido uma parte tão familiar da experiência visual do homem letrado quanto é o gráfico para o leitor moderno.[60]
§ 5.2 A Astronomia
A razão original para o uso das rotae nos trabalhos científicos é auto-evidente: elas forneciam o formato óbvio para expor conceitos cósmicos tais como o universo geocêntrico, a passagem cíclica dos meses, o zodíaco e as fases da Lua. O diagrama astronômico básico é o esquema das esferas, com a Terra no centro cercada pelos planetas e pelas estrelas fixas. Ele podia ser desenvolvido de forma a incluir os outros elementos entre a Terra e os planetas, e mais esferas além das estrelas fixas (figura 15). A elaboração de um tipo diferente envolvia a adição de motivos figurativos: uma boca do inferno no centro da Terra, ou Deus e seus anjos no Empíreo. Por outro lado, uma afirmação adicional estritamente astronômica podia ser incorporada, como as fases da lua ou a duração das órbitas planetárias (figura 1). Mas mesmo quando o diagrama oferecia dados puramente científicos no contexto de um tratado técnico como o Tractatus de sphera de Sacrobosco (início do século XIII), ele podia ser adornado com motivos figurativos ou ornamentais completamente decorativos (figura 15, cf figura 23).[61] Em compilações mais deliberadamente populares, como o vernacular Image du monde,[62] esses esquemas adornados recebiam um pródigo tratamento artístico, sendo executados em custosos pigmentos e em ouro. Às vezes isso era feito em detrimento de sua função didática, e os resultados são desenhos ornamentais inexpressivos; mas outros, sendo trabalho de mestres pintores, combinam a precisão de um diagrama científico com a fantástica beleza da arte decorativa gótica, e são diferentes de quaisquer outras pinturas medievais (figura 16). Mesmo quando o desenhista se contentava em executar um diagrama linear sem adornos, os tratados técnicos produzidos pelas oficinas de alta qualidade continham figuras executadas com primor, econômicas nas linhas e elegantes nas letras (figura 17). Ao exemplo dos primeiros instrumentos astronômicos, eles combinavam a utilidade com a beleza; e, de fato, vários estão diretamente relacionados com aparelhos científicos. Os discos rotativos nos manuscritos do Equatorium de Campano de Novara (morto em 1296) são réplicas de partes de uma enorme máquina para determinar a posição dos planetas. Provavelmente o instrumento nunca foi construído, mas os discos para cada planeta são partes funcionais, atuando como um computador analógico. [63]
§ 5.3 A “Ars demonstrativa”
O disco rotativos também podiam ser empregados como uma ferramenta lógica. Conforme foi mencionado, uma versão simplificada do Ars generalis de Raimundo Lúlio foi exposta em uma série de árvores; mas a ars original era inscrita em tabelas e rotae, algumas das quais giravam.[64] A ars luliana existe em várias formas, mas todas elas contêm um alto valor matemático e são eminentemente apropriadas para a exposição diagramática. As versões mais completas empregam as 23 letras do alfabeto (I/J e U/V são doublets, W é omitido); A–D significam os elementos; A também denota uma rota e uma tabela; S–Z igualmente indicam figuras; o restanto do alfabeto representa um ou mais conceitos e pode ser apresentado em combinações que formulam proposições. As letras B–R representam inicialmente os 16 princípios absolutos que são base da ars: as virtudes arquetípicas ou “dignidades” de Deus. Elas são conectadas por princípios relativos, ou graus de relacionamento, como a diferença, a congruência, o maior, o menor, que funcionam como syncategoremata no sistema luliano. A esses eram adicionados os assuntos, um conjunto compreensivo de tópicos abertos a questões ou à dúvida; e regras, que correspondem aproximadamente às categorias aristotélicas e representam as formas de duvidar. Esses são colocados nas rotae e volveles desenhadas com tintas coloridas. A combinação de rodas e letras cria um tipo de máquina de cifra, fornecendo, em teoria, respostas logicamente consistentes: ela foi criada originalmente como um sistema lógico irrefutável para converter os pagãos. As mais elaboradas formas da ars empregavam 16 rodas; os seguidores de Lúlio tentaram acomodar a essência do sistema em uma única volvele de dois ou três discos, e o seu grau de sucesso indica a versatilidade da rota giratória como uma ferramente especulativa (figura 14). A importância da filosofia de Lúlio excede em muito a dos mecanismos pelos quais ele a expôs. Se estes parecem antecipar o computador, também remetem aos “livros do destino”, instrumentos para adivinhar a sorte originados na Antigüidade.[65] Eles utilizavam tabelas numéricas, códigos alfabéticos e às vezes volveles engrenadas como uma alternativa às letras/números equivalentes em nomes pessoais para predizer o futuro (figure 18). Apesar disso, as figurae da ars de Lúlio lhe são essenciais, e é possível que a sua presença tenha influenciado as várias modificações pelas quais passou desde a primeira Ars compendiosa inveniendi veritatem de c1274 até a última Ars generalis ultima de 1308. Sem dúvida, uma das razões para reduzir o número de “dignidades” de 16 para nove foi permitir que a ars incorporasse os elementos trinitários, que também facilitavam a inscrição em uma rota e o seu alinhamento.


Notas

56. Compare as figuras 15 e 23. Sobre as várias formas pelas quais os elementos poderiam ser dispostos, incluindo uma que se diz estar explicitamente de acordo com os princípios geométricos, veja H Bober “In principio. Creation before Time” De artibus opuscula XL. Essays in Honor of Erwin Panofsky New York 1961, pp. 13–28; Pressouyre, op cit nota 20 acima; Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 37–41.

57. Por exemplo, o chamado Saltério de De Lisle (Londres BL MS Ar 83) inclui tabelas do tipo encontrado nos MSS descritos nas notas às figuras 5 e 9 [estas são dadas separadamente na companion gallery exhibit]; para as ilustrações, veja Ligtenberg, op cit nota 34 acima, figuras 5, 6, 17–21, 23. Uma monografia sobre o Ar 83 está sendo preparada por L F Sandler.

58. Sobre a Roda da Fortuna, veja E Kitzinger “World Map and Fortune’s Wheel: A Medieval Mosaic floor in Turin” Proceedings of the American Philosophical Society cxvii, 1973, pp. 344–73; Courcelle, op cit nota 45nota 50 acima, e Katzenellenbogen, op cit nota 27 acima; sobre as Rodas da Religião, veja de Clercq, op cit acima, pp. 70–72.

59. J Fontaine Isidore de Séville. Traité de la nature Bordeaux 1960 (texto e tradução francesa); PL 83, 963–1018. Sobre as ilustrações, veja Fontaine pp. 15–18.

60. H Bober “An Illustrated Medieval School-Book of Bede’s De natura rerum”, Journal of the Walter’s Art Gallery xix–xx, 1956–57, pp. 65–97.

61. L Thorndike The Sphere of Sacrobosco and its Commentators Chicago 1949, fornece um texto e tradução, mas infelizmente omite as figuras.

62. Evans, op cit nota 40 acima, pp. 314, 321.

63. F S Benjamin and G J Toomer Campanus of Novara and Medieval Planetary Theory Madison, Milwaukee, and London 1971; sobre o desenvolvimento do equatorium, veja D J Price The Equatorie of the Planetis Cambridge 1955, capítulo 8.

64. Yates, op cit nota 21 acima, fornece a melhor introdução à obra de Lúlio e ilustra algumas das rotae em pls 11, 19; veja também R D F Pring-Mill “The Trinitarian World Picture of Ramon Lull” Romanistisches Jahrbuch vii, 1955–56, pp. 229–56; Hillgarth, op cit nota 45 acima.

65. T C Skeat “An Early Medieval ‘Book of Fate’: the Sortes XII patriarcharum. With a note on ‘Books of Fate’ in general” Mediaeval and Renaissance Studies iii, 1954, pp. 41–54; Heimann, op cit nota 7 acima, pp. 39–46; C S F Burnett “What is the Experimentarius of Bernardus Silvestris? A Preliminary Survey of the Material” Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge xliv, 1977, pp. 79–125.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte III

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html

§ 4.1 A tabulação
A forma mais simples de tabela é a lista. Duas ou mais listas que devem se corresponder lateralmente são mais fáceis de se ler se forem colocadas em uma estrutura que torne explícitos os paralelos. As tabelas foram muito comuns na Idade Média; cada saltério ou livro de horas tinha o seu calendário, por exemplo, e estes eram dispostos em uma trama linear adornada com elementos decorativos. A tabulação dos conceitos ao invés de dados cronológicos podia ser apresentada da mesma forma, embora geralmente se fizesse mais positivo e geométrico o entorno decorativo para que os termos paralelos ficassem claramente delineados. Consequentemente, a própria tabela se tornava uma obra de arte abstrata; em contrapartida, a arte representacional da Idade Média tomava emprestado os padrões composicionais: o desenho de muitos vitrais é flagrantemente tabular, como também o são os de diversos livros de gravura medievais. [42] Apesar das tabelas serem geométricas em forma, os seus princípios são aritméticos; as correspondências são menos espaciais ou conceituais do que baseadas em um número equivalente de partes. Esse fator era para ser explorado ilustrativamente em esquemas mais complexos, mas algumas tabelas apresentam paralelos que parecem existir somente em termos numerológicos. A Arbor sapientiae, com a sua relação entre as sete Artes Liberais e as sete Idades do Homem, é um exemplo; a criança pode aprender a gramática de modo adequado, mas é ridículo sugerir que o estudo da Astronomia seja a prerrogativa da idade avançada. Da mesma forma, são incompreensíveis os paralelos entre as sete Horas Canônicas, os sete Atos da Paixão e os cinco Sentidos mais o Consentimento e o Livre-Arbítrio (figura 9), a menos que sejam adicionadas incrições explicativas para ligar os tópicos de maneira conceitual e visual. O resultado é um tipo de esquema tipográfico elevado, apresentando de maneira decorativa uma série de afirmações com forma sintática idêntica; na verdade, uma variante da primeira classe de auxílio visual acima descrita, mas compartilhando algumas das características do diagrama geométrico. O mais elaborado desses epítomes utiliza uma lógica formalista comparável ao método escolástico, com frases formulaicas ligando conceitos que levam (quae ducit ad ...) e contrariam (quae est contra ...) um ao outro, funcionando como syncategoremata (figura 10). A complexidade aparente dessas tabelas é, contudo, desmentida pelas correspondências numerológicas elementares nais quais se fundam.
§ 4.2 A “Scala virtutis”
Diferente da divisio, a lista não sugere automaticamente uma imagem representacional. Entretanto, se ela discriminasse os tópicos em uma ordem ascendente, poderia muito bem ser disposta nos degraus de uma escada (cf figura 12, canto inferior esquerdo) ou de uma escadaria. A principal ilustração da Escada Celestial de João Clímaco (final século VI) mostra as Virtudes inscritas em uma escada que vai da Terra ao Céu.[43] Uma escada similar, que aparece ao lado da lista de conteúdos no começo do livro, revela uma das limitações desse tipo de imagem: como os degraus correspondem exatamente aos tópicos indicados, a escada é lida de baixo para cima, a lista na direção contrária. A Escada das Virtudes aparece como uma ilustração de outros textos, nomeadamente o Speculum virginum do século XII, um tratado educacional tornado mais palatável pelo uso que faz de esquemas e desenhos emblemáticos.[44] Uma passagem no De consolatione philosophiae (c523) de Boécio impelia os desenhistas a utilizar a mesma imagem para dispor as sete Artes Liberais.[45] Como a árvore, a escada oferecia um motivo que reforçaria a mensagem das inscrições: nesse caso a elevação moral e o progresso educacional. Entretanto, uma imagem inerentemente direcional como essa tinha suas desvantagens, como mostra o exemplo de João Clímaco. Apenas a roda multivalente (cf seção 5.1) era suficientemente versátil para cumprir com os requisitos da exposição diagramática, e esse foi o desenho mais amplamente utilizado no repertório geométrico. No entanto, diversas outras formas representativas foram ocasionalmente empregadas com sucesso.
§ 4.3 A “Turris sapientiae”
Uma delas era o edifício esquemático. A referência bíblica aos sete pilares da casa construída pela Sabedoria inspirou vários edifícios alegóricos,[46] alguns dos quais legendados como diagramas. A gravura final no Speculum virginum (figura 11) busca combinar uma forma arquitetônica com a de uma árvore: as folhas da árvore inscritas com os Dons do Espírito Santo, e cada uma associada a sete conjuntos de itens que incluem as petições da Oração do Pai Nosso, as Virtudes e as Beatitudes.[47] Aqui a alusão aos sete pilares da Sabedoria é implicada por uma inscrição; já outros edifícios esquemáticos são independentes do texto bíblico, e parecem dever mais às molduras arquitetônicas que convencionalmente envolviam os índices remissivos no começo dos livros do evangelho. A Arbor historiae de Pedro de Poitiers, por exemplo, inclui alguns elementos arquitetônicos, mas eles funcionam simplesmente como molduras e não possuem nenhum significado alegórico. Há, porém, a imagem chamada de Torre da Sabedoria, criada no final do século XIII, [48] um edifício esquemático no qual a função dos membros arquitetônicos realça o sentido da informação tabulada (figura 12). O centro da Torre é uma trama tabular sob a forma das 12 fileiras da maçonaria. Cada fileira é inscrita com uma Virtude e nove injunções morais. O edifício também possui portas, janelas, degraus de entrada e ameias, cada qual recebendo um significado alegórico; o seu alicerce é a Humildade, os seus quatro pilares as quatro Virtudes Cardeais. As partes do edifício ainda são marcadas com os termos arquitetônicos apropriados: bases, colunas, capitéis, etc. O edifício moralizado era um tópico convencional para os pregadores medievais (um fato que algumas vezes levou os críticos à má interpretação da estrutura eclesiástica), e a Torre é obviamente influenciada por esta prática.[49] Mas ela é fundamentalmente um diagrama tabular, como se revela pela presença, em alguns exemplos, de um código alfabético à esquerda e uma nota explicando como ele deve ser usado para interpretar a elevação.
§ 4.4 O texto e a imagem
A Torre da Sabedoria é um desenho autônomo, não associado a nenhum texto particular. A maioria dos diagramas emblemáticos, entretanto, são relacionados à literatura exegética. A pomba, o querubim (figura 8 frente) e os quatro Rios do Paraíso são algumas das imagens que forneceram a estrutura para a classificação dos tópicos, e cada uma está conectada a um texto que se lê como um comentário a ela. [50] No entanto, essas imagens são ininteligíveis sem a explicação verbal, e às vezes aparecem independente dela.[51] É uma boa pergunta se as gravuras inspiraram o texto ou vice-versa. Embora nos estudos iconográficos seja procedimento ortodoxo tentar encontrar um texto ou programa literário por trás de uma composição pictórica, [52] é falácia supor que necessariamente exista alguma. Os textos que acompanham as árvores das Virtudes e Vícios descrevem-nas em detalhe, [53] mas, como se viu, essas árvores derivam da divisio estemática antiga, não de um registro escrito. Elas pertencem a uma tradição de auxílios visuais capazes de funcionar independentemente de uma exposição em prosa, e também em conjunto com uma. Relatos contemporâneos contam de eruditos concebendo precisamente esses desenhos esquemáticos, evidentemente como entidades autônomas.[54] Muitas das imagens discutidas aqui devem ter-se originado dessa forma, quer como novas criações, como a Torre da Sabedoria, quer como adaptações de diagramas existentes. A figura dos Rios do Paraíso, por exemplo, deriva-se em grande parte de um diagrama meteorológico circular dos quatro ventos principais e seus subsidiários.[55] Diagramas circulares como esse não eram desenhados inicialmente como exposições analíticas, mas como ilustrações esquemáticas de conceitos cósmicos. Contudo, na Idade Média eles foram admitidos no repertório de formas usadas na exegese diagramática de idéias filosóficas e teológicas.


Notas

42. Para composições tabulares em vidro, veja os esquemas de formas composicionais em M H Caviness The Early Stained Glass of Canterbury Cathedral Princeton 1977, figuras de apêndice 1ff; cf E J Beer Die Rose der Kathedrale von Lausanne und der kosmologische Bilderkreis des Mittelalters Bern 1952. Típicas Bíblias ilustradas geralmente empregam um arranjo tabulado: A De Laborde Etude sur la Bible moralisée illustrée Paris 1911–27; Reallexikon zur deutschen Kunstgeschichte Stuttgart 1937–, sv Armenbibel.

43. J R Martin The Illustration of the Heavenly Ladder of John Climacus (Studies in Manuscript Illumination v) Princeton 1954.

44. E Greenhill Die geistigen Voraussetzungen der Bilderreihe des Speculum Virginum. Versuch einer Deutung (Beiträge zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters Bd xxxix, Heft 2) Münster 1962; Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 62ff; para uma diferente versão da imagem, veja R Green et al Herrad of Hohenbourg. Hortus Deliciarum (Studies of the Warburg Institute 36) London-Leiden 1979, p. 201, pl 124.

45. O texto descreve uma personificação da Filosofia cujo manto está marcado com níveis, como em uma escada (“in scalarum modum gradus”; De consolatione philosophiae I pr 1 L Bieler (ed), Turnholt 1957; PL 63, 589); P Courcelle La consolation de philosophie dans la tradition littéraire Paris 1967. Cf o uso de Raimundo Lúlio das imagens de escada em um contexto filosófico: J N Hillgarth Ramon Lull and Lullism in Fourteenth-Century France Oxford 1971, pp. 222, 452–54, pl V.

46. A casa da Sabedoria é provavelmente representada pela estrutura de sete pilares na inicial ao Eclesiástico em Arras, Bibl de la Ville MS 559, t iii, fol 1r; S Schulten “Die Buchmalerei des 11 Jhs im Kloster St-Vaast in Arras” Munchner Jahrbuch der bildenden Kunst ser 3, vii, 1956, p. 79, figura 50. Os bustos nos topos dos pilares podem representar as sete Artes Liberais. Os nomes de seis das Artes estão inscritos em um desenho de uma torre em Boulogne, Bibl mun MS 40, fol 98r. Também aparecem torres ems figures astronômicas; aí, contudo, a alusão não é à casa da Sabedoria, mas à importância das fontes árabes na transmissão das idéias científicas para a Europa. A palavra árabe para signo zodiacal, burj, também significa “torre” e foi traduzida e ilustrada como “turris”; Burnett, op cit nota 64 abaixo, p. 81.

47. A Watson “The Speculum virginum with Special Reference to the Tree of Jesse” Speculum iii, 1928, p. 455. O setenários também aparecem na Árvore de Jessé que abre o Speculum.

48. O seu inventor pode ser plausivelmente identificado como Franciscus Bonacursus, arcebispo de Tiro, morto em 1274; F Saxl “A Spiritual Encyclopaedia of the Later Middle Ages” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes v, 1942, p. 110.

49. J Sauer Symbolik des Kirchengebäudes und seiner Ausstattung in der Auffassung des MittelaltersThe Journal of Aesthetics and Art Criticism xx, 1961–62, pp. 3–23. R Krautheimer “Introduction to an ‘Iconography of Mediaeval Architecture’”, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes v, 1942, pp. 1–33, é um útil corretivo. Freiburg i Br 1924, discute a interpretação alegórica dos edifícios na literature exegética medieval. O número de historiadores da arquitetura que acreditam que uma capela-mor inclinada allude à cabeça decaída de Cristo na cruz, ou que uma porta externa em uma corridor da nave representa a ferida em Seu flanco, é menor do que já foi, mas esse tipo de interpretação ainda pode ser encontrado. Para um exemplo alarmante, veja P Fingesten “Topographical and Anatomical Aspects of the Gothic Cathedral”

50. A pomba está associada aos capítulos de columba do bestiário de Hugo de Folieto, PL 177, 15–20; C de Clercq “Le rôle de l’image dans un manuscrit medieval (Bodleian, Lyell 71)”, Gutenberg-Jahrbuch 1962, pp. 23–30. O querubim aparece com dois textos de sex alis cherubin que frequentemente eram publicados juntos; PL 210, 266–280. Os prováveis autores dos tratados são Alan de Lille e Clemente de Llanthony; M-T d’Alverny Alain de Lille. Textes inédits (Etudes de philosophie médiévale lii) Paris 1965, pp. 154–55. Para os vários textos sobre os Rios do Paraíso, veja Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 59–67. Veja também Katzenellenbogen, op cit nota 27 acima, pp. 62, 69.

51. O querubim, por exemplo, aparece no saltério mencionado na nota 57 abaixo, em muitos dos compêndios de tabelas relacionados e nas “enciclopédias espirituais” descritas por Saxl (nota 48 acima). Uma imagem monumental dele pode mal ser discernida em uma parede da Casa do Capítulo da Abadia de Westminster.

52. Cf E Panofsky Studies in Iconology New York-Evanston 1962, p. 11: “Iconographic analysis, dealing with images, stories and allegories instead of with motifs, presupposes ... a familiarity with specific themes or concepts as transmitted through literary sources....” Vale observar que, entre esta confusão de ênfases, as duas últimas palavras não são destacadas; o número de estudos iconográficos que buscam com implacável vigor as potenciais fontes literárias sugerem o contrário.

53. Ps-Hugh of S Victor De fructibus carnis et spiritus PL 176, 997–1006; R Bultot “L’auteur et la fonction littéraire du ‘de fructibus carnis et spiritus’”, Recherches de Théologie ancienne et medievale xxx, 1963, pp. 148–54; as árvores são também descritas e ilustradas no Speculum virginum; veja nota 44 acima.

54. Em 986, Gerberto de Reims descreveu como ele fez a figurae que ilustra a arte da retórica para o uso no ensino; Ep 92 J Havet (ed), Paris 1889; PL 139, 224. Para mais auxílios educacionais concebidos por Gerberto, veja O G Darlington “Gerbert, the Teacher” The American Historical Review lii, 1947, pp. 456–76; sobre outros recursos pedagógicos no início da Idade Média, veja Beaujouan, op cit nota 10 acima. Esses auxílios visuais foram usados em salas de aula por toda a Idade Média, e diz-se que Pedro de Poitiers desenhou arbores das Virtudes e Vícios similares à sua Arbor historiae; Moore, op cit nota 36 acima, p. 168.

55. Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 60; para ilustrações de rosas-dos-ventos, veja J Baltrusaitis “Roses des vents et roses des personnages à l’époque romane” Gazette des Beaux-Arts ser 6, xx, 1938, pp. 265–76.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte II

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html
§ 3.1 As “Figurae”
O estema potencialmente amorfo representado pela figura 4 pode receber uma forma mais definitiva, seja em uma estrutura geométrica abstrata, seja em uma imagem figurativa, como uma árvore, uma escada ou uma roda. Tais desenhos (chamados de figurae em latim e de schemata em grego) são mais difundidos nos manuscritos medievais do que normalmente se pensa, porém difíceis de localizar através das entradas de catálogos, tendo em vista que a sua negligência por parte dos historiadores da arte é em geral equiparada à dos bibliotecários, que omitem esses desenhos das descrições codicológicas. Alguns livros consistiam inteiramente de diagramas, sem nenhum texto de apoio; as ilustrações esquemáticas também proporcionavam assuntos para a arte monumental, [20] mas normalmente formavam parte de um discurso de prosa. Algumas eram criadas especificamente para um contexto particular, porém muitas eram tomadas de outras fontes, às vezes sofrendo pelo caminho uma mudança de sentido. Assim, a figura em Image du monde (cf seção 5.2), que ilustra a rotundidade da Terra, é derivada de uma gravura na topografia cristã do Cosmos indicopleustes, que pretendia demonstrar o contrário.[21] Ocasionalmente, esses diagramas eram executados por mestres artesãos, sendo por si mesmos obras de arte; no mais das vezes, são desenhos à caneta despretensiosos inseridos no contexto ou à margem pelo próprio escriba. Por mais brutos que sejam, eles constituem partes integrais do texto; omiti-los, como fazem alguns editores, é condenável.
§ 3.2 A “Divisio scientiae”
A seqüência descrita acima, desde o arranjo gráfico até as imagens figurativas, não é uma explicação cronológica do desenvolvimento da ilustração esquemática, mas uma classificação ad hoc dos principais tipos de auxílio visual: o tipográfico, o estemático, o geométrico e o emblemático. Historicamente, o diagrama elucidativo e o texto ilustrado surgiram ao mesmo tempo na Antigüidade Clássica. [22] Junto com a representação da narrativa, foi uma das duas primeiras formas de ilustração textual. As obras de Aristóteles eram quase que certamente ilustradas com diagramas, e enquanto é improvável que os diálogos platônicos também o fossem, os comentários sobre eles empregavam figuras extensivamente. [23] É possível que as cópias medievais destes comentários preservem os autênticos esquemas antigos; a evidência disponível sugere que, comparados às imagens representacionais, os desenhos diagramáticos são transmitidos com uma variação notavelmente pequena. [24] A maioria desses diagramas são figuras geométricas ou simples estemas lineares; porém quando os primeiros autores medievais utilizaram-nos para ilustrar os seus próprios escritos, eles foram adornados com elementos figurativos: plantas, animais e seres humanos. [25] Estes podem ter uma função mnemônica; mas podem também ser simbólicos, ou puramente decorativos. O principal objetivo dos esquemas primitivos em si era analítico: eles demonstravam como um assunto poderia ser dividido em suas partes componentes. A apresentação diagramática de tal informação era mais imediata e também mais econômica do que uma explicação em prosa. No fim, a divisio scientiae atingia grande complexidade, compatível com a análise compreensiva exigida pelo método escolástico. [26] Mas a sua estrutura era essencialmente simples, análoga a um crescimento orgânico: a partir dos nós que representam os principais assuntos, surgem as categorias individuais que se dividem em seus componentes, como o tronco de uma árvore se divide em ramos e galhos. Assim, embora esses fossem diagramas técnicos essencialmente utilitários, não era inapropriado que tomassem as formas de árvores estilizadas. Folhas e fruto representavam as partes individuais de cada “ramo” do conhecimento, que derivava de um tronco onde se inscrevia scientia ou philosophia.
§ 3.3 A “Arbor scientiae”
A transformação do tipo de estema mostrado na figura 4 em uma forma que evoca o crescimento arbóreo é facilmente realizada pela adição de fragmentos de ornamento foliado (figura 5). Algumas dessas árvores horizontais são investidas com um considerável detalhe botânico, apesar da sua orientação;[27] mas para obter o benefício completo da imagem de árvore, era necessário à divisio expandir-se para cima. Isto inverte o formato convencional da árvore genealógica, que em quase todos os exemplos é um estema descendente. As mais exaustivas divisiones emulam a genealogia, sendo estemas não-figurativos que derivam desde cima. O único modo pelo qual um desenho poderia aludir ao crescimento orgânico era um em que as ramificações assumissem a forma de raízes, ao invés de ramos: um expediente raramente empregado. A grande exceção à forma descensional para as genealogias é a Árvore de Jessé, a representação esquemática dos ancestrais de Cristo. [28] Ela raramente mostra as 42 gerações enumeradas por S. Mateus, reduzindo o número de antepassados a algumas figures centrais como Davi, Salomão e a Virgem. Da mesma forma, a ascendente Árvore das Ciências tendia a ser seletiva, e as suas ramificações eram menos analíticas do que emblemáticas; as sete Artes Liberais representam a soma do conhecimento humano, enquanto a legenda, arbor scientiae, evoca a Árvore do Conhecimento bíblica. Essas árvores devem ser tratadas como pertencentes ao mundo da alegoria e não ao do diagrama científico; mas, como veremos, esses dois mundos não eram discretos entre si, o que explica a ubiqüidade e diversidade desses desenhos. Quando, por exemplo, o filósofo catalão Raimundo Lúlio (c1235–1316) buscou apresentar uma versão simplificada do seu trabalho lógico Ars generalis (cf seção 5.3), ele decidiu fazê-lo em um tratado intitulado Arbor scientiae, ilustrado com uma série de 16 árvores, dispondo de forma sistemática as categorias inerentes à sua filosofia. Precedente a elas há uma vasta árvore de todas as ciências, na qual cada “ramo” é realizado literalmente e analisado na terminologia botânica.[29] É a árvore sob a qual Lúlio se encontrou com o monge que o estimulou a compilar a nova redação de sua obra e é ao mesmo tempo a forma convencional pela qual deveria expô-la.
§ 3.4 A árvore esquemática
A árvore estilizada não estava restrita à exposição das categorias do conhecimento: ela estava disponível para qualquer tópico que fosse suscetível à análise sistemática. Alguns desses diagramas se aproximam de uma forma de árvore sem introduzir quaisquer características vegetativas;[30] em contrapartida, outros não têm qualquer semelhança com um crescimento orgânico em sua estrutura, mas são contudo chamados de arbores, além de brotarem folhas estilizadas. A Arbor consanguinitatis, por exemplo, em geral parece mais uma treliça do que uma árvore; e, como uma realização visual da Tabela de Parentesco e Afinidade, encontrada no início do Livro de Oração Comum, ela nem mesmo incorpora o princípio da ramificação analítica encontrada na divisio. A versão mais comum desse esquema é uma composição centralizada que deve ser lida a partir do meio (figura 6), mas que ainda assim costuma ser ornada com decoração foliada. [31] Mesmo quando a estrutura é arbórea, a imagem não precisa ser; algumas divisiones usam motivos tirados das iniciais decorativas dos manuscritos,[32] enquanto outras usam formas abstratas lineares não derivadas de nenhuma fonte óbvia. O diagrama das hierarquias eclesiásticas e seculares que ilustra o De statu ecclesiae de Gilberto de Limerick é feita de um sistema de triângulos e arcos ogivais que sugerem uma elevação arquitetônica; mas esse desenho do final do século XII precede o uso de desenhos arquitetônicos em pequena escala.[33] Em outros ainda, a “árvore” aludida não é de forma alguma uma imagem botânica, mas uma religiosa, a Árvore da Cruz.[34]

Mesmo as elaboradas arbores descendentes que não emulam nenhuma forma objetiva concebível empregam elementos representacionais, como rolos de pergaminhos e colunas, para fornecer uma estrutura, conferindo uma grandeza formal ao desenho (figura 7). Algumas são pontuadas com pequenas cenas ou retratos em medalhões, lembrando as árvores genealógicas romanas descritas por Plínio (Hist nat xxxv, 2) e Sêneca (De beneficiis iii, 28, 2): estemas pintadas nas paredes, com os ancestrais identificados pelo nome ou por uma máscara-retrato.[35] Na Idade Média, arbores similares eram usadas para dispor as genealogias dinásticas, com freqüência incluindo eventos históricos somados a detalhes biográficos.[36] Esse tipo de esquema poderia ser usado para apresentar uma informação histórica de natureza menos pessoal: não uma árvore genealógica, mas uma tabela de tempo ilustrada. A Arbor historiae de Pedro de Poitiers, no final do século XII, é basicamente uma imensa genealogia dos Patriarcas de Israel começando em Adão; mas é também uma crônica do mundo, e algumas versões interpolam muito da história secular contemporânea.[37] Os acontecimentos mais marcantes estão registrados não só verbalmente, como também em lacônicas ilustrações; assim, na figura 7 um frasco de urina na margem indica a descoberta da medicina por Apolo logo antes da época da profetisa Débora; uma sanfona representa a invenção do coro grego, quase contemporânea com Gideão.
§ 3.5 A “Arbor virtutum”
Entretanto, era normalmente irresistível a analogia entre o crescimento vegetal e a subdivisão ramificada de um tópico, ainda mais quando a própria imagem da árvore podia contribuir com a mensagem sendo transmitida. Esse era o caso do tópico da distinctio ética das Virtudes e Vícios. Os tratados medievais sobre a moral apresentavam análises elaboradas dos traços característicos dos sete Pecados Capitais e de suas Virtudes correspondentes;[38] matéria óbvia para a exposição diagramática. O aforismo de Cristo sobre as árvores boas e as corruptas (Mat 7:17; cf. Mat. 3:10) e o dito de S. Gregório de que o orgulho é a raiz de todo mal (Moralia xxxi, 45) incentivavam o uso das imagens arbóreas. O orgulho e sua contraparte, a Humildade, formavam as raízes das árvores, os outros Vícios e Virtudes principais eram os ramos, e suas subdivisões em qualidades morais individuais eram inscritas nos frutos ou folhas (figura 8 verso). Os pares de árvores resultantes podiam ser distinguidos pela cor; uma árvore verde para as Virtudes, uma marrom morta para os Vícios; ou pela forma: as folhas e frutos da árvore boa eminentes, os da má decaídos.[39] Assim, as qualidades inatas das formas naturais são exploradas para realçar a informação expressa pelo esquema, uma vantagem que a figura emblemática possuía sobre a geométrica. Uma desvantagem correspondente era a congestão criada pela tentativa de incorporar inscrições explicativas nos elementos vegetais sem obliterá-los. Excepcionalmente, uma mesma árvore carregaria tanto as Virtudes quanto os Vícios, [40] mas em geral uma árvore que incorporasse mais de um conjunto de tópicos disporia assuntos de mesma natureza, não antitéticos. Árvores deste tipo, como a Arbor sapientiae, que apresentava de um lado as Artes Liberais como uma seqüência correspondendo às Idades do Homem no outro lado, [41] precisavam ser lidas lateralmente, o que não é uma forma natural de interpretar um crescimento orgânico. O desenho mais apropriado para esse tipo de exposição visual não era uma árvore, mas uma tabela de colunas, que também permitia uma disposição mais clara das inscrições.


Notas

20. Nenhum dos livros de diagramas foi publicado integralmente. Pouquíssimos sequer foram adequadamente descritos; uma exceção é a primeira parte de Brussels, Bibl Roy MS 9565–9566, que era originalmente independente; veja R Derolez “Dubthach’s Cryptogram. Algumas notas em Connexion with Brussels MS 9565–9566” L’antiquité classique xxi, 1952, pp. 359–75. Uma noção do conteúdo e da aparência dos volumes de luxe das ilustrações esquemáticas pode ser obtida a partir das figuras 5, 7–10, 12, 13, e de reproduções de Paris, BN MS fr 9220 in Ligtenberg, op cit nota 14 abaixo, figuras 1, 13, 14, 22; veja Les manuscrits à peintures en France du XIIIe au XVIe siècle (catálogo de exibição BN) Paris 1955, no 66, p. 35. A maior parte dos trabalhos monumentais foram destruídos (cf nota 51 abaixo); entre os sobreviventes incluem-se o pavimento do santuário na Abadia de Westminster (S Wander “The Westminster Abbey Sanctuary Pavement” Traditio xxxiv, 1978, pp. 137–56); o afresco do cosmos por Pietro di Puccio no Camposanto, Pisa (M Bucci, L Bertolini Camposanto monumentale di Pisa, Pisa 1960, figura 99); e as pinturas na cripta da catedrak de Anagni (L Pressouyre “Le cosmos platonicien de la cathédrale d’Anagni” Mélanges d’archéologie et d’histoire lxxviii, 1966, pp. 551–93). Pressouyre cita outros exemplos perdidos.

21. Para a ilustração de Cosmas, veja W Wolska La Topographie chrétienne de Cosmos indicopleustèsImage, veja R Calcoen Inventaire des manuscrits scientifiques de la bibliothèque royale Albert Ier ii, Brussels 1971, pl XXI. Paris 1962, pl VII e p. 211f; para a da

22. K Weitzmann Ancient Book Illumination Cambridge Massachusetts, 1959, p. 1.

23. R S Brumbaugh “Logical and Mathematical Symbolism in the Platonic Scholia” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xxiv, 1961, pp. 45–58.

24. Assim, enquanto uma cópia do século XV (Venice Marc MS Cl XIV 35) de um Ms do século XII (Florence Laur MS S Marco 190) do De nuptiis de Marciano Capela modifica as gravuras das artesKunstgeschichtliche Studien für Hans Kauffmann Berlin 1956, pp. 59–66. personificadas estilística e iconograficamente, as ilustrações diagramáticas são mantidas inalteradas; para as personificações, veja L H Heydenreich “Eine illustrierte Martianus Capella-Handschrift”

25. E K Rand “The New Cassiodorus” Speculum xiii, 1938, p. 444, pls C and D.

26. J Mariétan Problème de la classification des sciences d’Aristote à St-Thomas Paris 1901; L Baur Dominicus Gundissalinus. De divisione philosophiae (Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters Bd iv, Heft 2/3) Münster 1903.

27. A Katzenellenbogen Allegories of the Virtues and Vices in Medieval Art Londres 1939, p. 65, figuras 64, 65.

28. A Watson The Early Iconography of the Tree of Jesse Oxford-London 1934; para as raízes como divisiones, veja F A Yates “The Art of Ramon Lull” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xvii, pls 15, 16.

29. Yates, op cit nota 28 acima, p. 144.

30. Veja as figurae arborum que ilustram as teorias do ritmo e da métrica na música do século XV no MS Vat Barb lat 307; J Smits van Waesberghe Musikerziehung. Lehre und Theorie der Musik im MittelalterMusikgeschichte in Bildern, Bd iii, Lfg 3) Leipzig 1969, pp. 172–75. (

31. H Schadt Darstellungen des Arbores consanguinitatis bis zum 4. Laterankonzil 1215 diss Tübingen 1973; Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 108–16.

32. Veja os esquemas que ilustram a tradução francesa do Ad Herennium de Cícero Chantilly, Mus Condé MS 590, fols 9v, 11v; J Folda Crusader Manuscript Illumination at Saint-Jean d’Acre 1275–1291 Princeton 1976, figuras 24, 25.

33. Durham, Cathedral Lib MS B II 35, fol 36v; R A B Mynors Durham Cathedral Manuscripts Oxford 1939, no 47, p. 42, pl 32. Sobre o desenvolvimento dos desenhos em escala de plantas e elevações, veja R Branner “Villard de Honnecourt, Reims and the Origin of Gothic Architectural Drawing” Gazette des Beaux-Arts ser 6, lxi, 1963, pp. 129–46.

34. O esquema mais espetacular desse tipo é a lignum vitae de S Boaventura, familiar no afresco de Taddeo Gaddi na Santa Croce de Florença; R Ligtenberg “Het lignum vitae van den H Bonaventura in de ikonografie der veertiende eeuw” Het Gildeboek xi, 1928, pp. 15–39.

35. E H Wilkins “The Trees of the ‘Genealogia deorum’” Modern Philology xxiii, 1925–26, pp. 61–65.

36. Cf as tabelas cronológicas nos fols 140r–149v do MS de Durham citado na nota 33 acima; Mynors op cit pl 44.

37. A obra aparece sob vários títulos, e os estudiosos modernos preferem Compendium historiae in genealogia Christi; entretanto, ela era chamada como uma arbor na Idade Média, e o termo é apropriado. O texto e o layout paradigmático em H Vollmer Deutsche Bibelauszüge des Mittelalters zum Stammbaum Christi mit ihren lateinischen Vorbildern und Vorlagen (Bibel und deutsche Kultur i) Potsdam 1931, pp. 127–88; veja também P S Moore The Works of Peter of Poitiers, Master in Theology and Chancellor of Paris (1193–1205) Notre Dame 1936, pp. 97–117; W H Monroe “A Roll-Manuscript of Peter of Poitiers’ Compendium” The Bulletin of the Cleveland Museum of Art lxv, 1978, pp. 92–107.

38. M W Bloomfield The Seven Deadly Sins Michigan 1952.

39. Katzenellenbogen, op cit nota 27 acima, pp. 63–67; para o texto de Gregório, veja a nota 85 abaixo.

40. Londres BL MS Add 30024, fol 2r; o MS é descrito em M W Evans “Allegorical Women and Practical Men: the Iconography of the artes Reconsidered” Medieval Women (Studies in Church History, Subsidia 1) Oxford 1978, p. 329; e a miniatura está ilustrada em Lexikon der christlichen Ikonographie iv, Freiburg i Br 1972, sv Tugenden und Laster figura 6.

41. Eg Paris BN MS fr 9220, fol 16r; ilustrado em Ligtenberg, op cit nota 34 acima, figura 22.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte I

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html
§1 Os diagramas científicos e o pensamento medieval
A Figura 1 é uma diagrama científico presente em um manual medieval. [1] A Figura 2, embora formalmente parecida, não é o mesmo tipo de coisa. O texto abaixo dela a descreve como uma “representação da nossa Igreja”; de fato, é um sumário das teorias éticas e históricas cristãs expressas em uma linguagem geométrica. O uso de ilustrações diagramáticas para expor idéias teoréticas e fatos científicos era característico da Idade Média.[2] Muitas dessas composições são belíssimos designs, adornados com elementos representativos e elucidados por inscrições eruditas em verso e prosa; mas até recentemente, tanto os historiadores da arte como os da literatura as negligenciavam. A Figura 2 nunca foi publicada, embora tenha sido associada a um dos mais conhecidos ateliers ingleses do século XIII; nem os textos que a acompanham estão presentes em um índice remissivo de initia. Isto é compreensível, já que tais imagens estão além dos cânones normais da arte, e os textos não são interessantes fora da sua contextuação. Contudo, defenderemos aqui que essas figuras geométricas traçadas não só merecem um estudo por si mesmas enquanto exemplos do design medieval, como também proporcionam um valioso comentário sobre a forma pela qual os pensadores medievais abordavam alguns dos seus problemas mais importantes, fornecendo uma compreensão sobre os processos mentais na Idade Média.

A exegese medieval era particularmente adaptada à exposição diagramática, e até um certo ponto influenciada por ela; também o era a lógica medieval, porque as suas inovações mais características foram formalistas e não epistemológicas. Ao final da Idade Média, um pensador como Heimerico de Campo podia expressar o seu sistema filosófico inteiro em uma única figura, [3] ainda que estes exemplos tardios tendam a ser mais arcanos do que elucidatórios. Mas, durante o período a ser considerado aqui (principalmente os séculos XII a XIV), a exposição geométrica foi usada de uma forma não apenas concisa, como também mais explícita do que a prosa. Ela também atingiu o status de uma forma de arte abstrata. Antes de descrever tal realização, e oferecer uma interpretação da imagem ilustrada na figura 2, será apropriado fazer algumas observações sobre a interrelação entre arte e geometria na Idade Média e sobre algumas peculiaridades metodológicas da lógica medieval.
§ 2.1 A arte e a Geometria
Quando o arquiteto do século XIII Villard de Honnecourt compilou um álbum de textos e gravuras para usar como um livro modelo, ele o descrevia como um auxílio para desenhar de acordo com a arte da geometria. [4] O livro incluía figuras baseadas em armaduras esquemáticas compostas de círculos, quadrados e triângulos. Este é um indício inequívoco da importância da geometria no design medieval. Enquanto devemos admitir que as tentativas dos críticos modernos em sujeitar a arte e a arquitetura da Idade Média à análise geométrica sejam raramente convincentes (pontos de referência são arbitrários, mas mesmo assim correspondem só aproximadamente à trama linear sobreposta), [5] é claro, contudo, que muito da arte medieval é governado por esquemas geométricos. Na pintura do século XII, uma simetria artificial é imposta a representações planas de figuras e objetos; as gravuras posteriores são menos formalistas, mas as imagens são ainda dispostas regularmente e enquadradas em molduras geometricamente construídas. Isso pode ser tomado como um corolário da preocupação medieval com o ordenamento do universo e a imposição de um sistema em cada aspecto da existência: quatro elementos, cinco sentidos, seis idades, sete virtudes, além de sete vícios, artes, planetas, e um número quase ilimitado de outros conceitos.[6] Alguns dos temas iconográficos mais importantes são retratados em termos geométricos: a representação convencional do cosmos é uma série de círculos concêntricos; a de Deus O mostra em uma auréola circular, ou em uma feita de elementos circulares; como criador, Deus brande um compasso de geômatra. [7] Ele podia ser definido geometricamente como uma esfera infinita, o seu centro em toda parte, a sua circunferência em parte alguma. [8]
§ 2.2 A Geometria
Apesar disso, o início da Idade Média tinha pouco conhecimento da geometria como entendida hoje em dia. Até as traduções de Euclides por Adelardo de Bath (fl 1119–1142), a experiência prática medieval do assunto estava limitada a uma curiosa mistura dos fragmentos dos Elementa e da agrimensura. [9] Apesar disso, a geometria sempre ocupou, ao menos em teoria, um lugar de eminência no currículo educacional, como uma das sete Artes Liberais. [10] Ela era, portanto, não só uma matéria fundamental nas escolas medievais, mas também um dos próprios elementos da ensino e um componente essencial da atividade intelectual. A extraordinária afirmação de Hugo de S. Vítor de que ela é “a fonte das percepções e a origem das expressões” [11] exemplifica o tipo de entusiasmo confuso que o assunto causou na época das traduções de Adelardo; mas a adequada geometria euclideana logo foi estabelecida como uma matéria popular nas escolas. Já em cerca de 1160, Pedro de Blois reclamava que os pupilos a estudavam antes de dominar as disciplinas básicas, como a gramática. [12] No início do século XIII, a ciência avançava pela primeira vez desde a Antigüidade, através das pesquisas de Leonardo de Pisa, também conhecido como Fibonacci (c1170–1250).[13] A geometria passou então a ser uma disciplina de destaque tanto na teoria científica quanto na prática pedagógica.
§ 2.3 A arte e o argumento
A arte medieval também possuía seus aspectos pedagógicos. A sua defesa por parte dos Pais da Igreja como um meio de instruir os iletrados não deve ser tomada muito literalmente;[14] é difícil acreditar que a verdadeira razão para decorar igrejas fosse tão utilitária, e é improvável que um iletrado encontrasse um manuscrito iluminado; mas havia ocasiões em que a arte era tratada como um auxílio à memória e como uma ferramenta para clarificar argumentos. A Idade Média era bem ciente do valor do auxílio visual. [15] Na ilustração de livros, em particular, as gravuras podiam exercer um papel didático, elucidando e amplificando o texto. O arranjo da palavra e da imagem era calculado para que uma complementasse a outra, e a gravura era vinculada ao argumento através de uma frase como “conforme esclarece a figura seguinte” (cf figura 23). Mesmo na ausência de gravuras, o texto era disposto de uma forma a melhorar a compreensão do seu conteúdo para o leitor. Um tamanho diferente de letra inicial era usado no começo de cada livro, capítulo e verso na Bíblia; diferentes graus da caligrafia eram usados para se distinguir entre texto, comentário e glosa nominal. Uma preocupação parecida quanto ao efeito visual da página é vista no uso de formas ornamentais para transformar assuntos potencialmente enfadonhos e tabulados (calendários e índices) em grandes designs decorativos: valiosos frontispícios para livros de horas ou evangelhos; mas ainda assim tabelas e índices basicamente funcionais, dispostos de forma clara.
§ 2.4 O argumento
A claridade da exposição é fundamental para um sistema filosófico como a escolástica. A essência do método escolástico é a análise dialética de conceitos. A tese e a antítese são sujeitas a um exame (interrogatio) contra a evidência empírica e as opiniões das autoridades estabelecidas (auctoritates). Depois que se chega a uma solução, os argumentos inaceitáveis são por sua vez refutados. Um prelúdio necessário para isso é a divisão (distinctio) dos conceitos em seus elementos básicos. Isso significa que, inicialmente, o argumento deve ser apresentado da forma mais completa e clara possível. A distinctio pode ser exposta graficamente na página para que um tópico seja visualmente analisado em suas partes e sub-partes pela interposição de uma distribuição estratificada de termos dentro da sintaxe de uma sentença (figura 3). Desta forma, uma frase verbal é fragmentada em constantes e variáveis. As constantes precedem e seguem as variáveis estratificadas, cada uma das quais carrega uma diferente informação; as constantes permanecem inalteradas e fornecem o contexto no qual as variáveis devem ser compreendidas. Embora esta seja uma técnica empregada por um escriba e não um ilustrador, e embora use quase que somente material verbal, para se apreciar o resultado ele deve ser visto. Não se trata mais de uma página de texto que pode ser lida em voz alta com o mesmo efeito; trata-se de uma experiência visual.[16]

É sempre controverso traçar analogias entre as artes visuais e outras disciplinas; mesmo um trabalho tão qualificado e sutil quanto a análise de Panofsky sobre o desenvolvimento da arquitetura gótica segundo o método escolástico está aberto a questionamentos.[17] Contudo, quando meios gráficos são de fato empregados nas demonstrações lógicas, como ocorre com a exposição diagramática, tais analogias são mais justificáveis. Assim, a distinção entre variáveis e constantes pode ser comparada à feita pelos lógicos escolásticos entre o sujeito e o predicado de uma proposição, por um lado, e os co-predicados, tais como “todos”, “alguns”, “se-então”, por outro. Estes últimos termos, que funcionavam como os sinais para as constantes na lógica simbólica e que não possuíam equivalente exato na lógica aristotélica, eram chamados de syncategoremata. Eles forneciam a armadura formal para a análise lógica na Idade Média; diversos tratados eram dedicados a tais termos, que representam um dos maiores desenvolvimentos no pensamento medieval. [18] O significado para a exposição diagramática dessa técnica de ligar diferentes significantes com um syncategorema inalterável será examinado mais tarde.

Como uma alternativa para o arranjo gráfico textual, o escritor podia ignorar toda e qualquer a exposição em prosa e apresentar o material na forma de uma análise estemática (figura 4). A estrutura e função dessas distinctiones se tornam mais inteligíveis se os termos nelas empregados forem tomados não como coisas necessariamente significantes, mas sim como estando no lugar de coisas de acordo com outra convenção básica da lógica escolástica, a teoria da suppositio.[19] Esta propõe que um termo substantivo não precisa possuir status ontológico; ele pode simplesmente ser colocado no lugar (suppositio) de algo, e a questão do exato status daquele algo pode ser deixada de lado, assim como o problema dos universais. Um diagrama com classificações é um meio ideal para esse tipo de especulação. Assim, “Homem” na Árvore de Porfírio (cf seção 6.1) não representa necessariamente o conceito “humanidade”, mas cada ser humano individual. A exigência da integralidade da apresentação é cumprida, mas em um tipo de abreviação. De maneira parecida, o problema do raciocínio por indução é contornado: a enumeração de entidades individuais (atualmente ou na forma abreviada que a suppositio oferece) o suplanta. Além disso, é óbvia a afinidade desse método lógico com a exposição diagramática. Um termo como “ser”, que é o sujeito da distinctio na figura 4, pode agora ser aceito como não-ontológico e puramente conceitual. Ele não exige justificação lógica (que o diagrama estemático, sendo uma afirmação plana, uma enuntiatio em termos escolásticos, não pode fornecer) e sua natureza será revelada por uma exaustiva enumeração das suas partes (para cujo propósito o diagrama estemático é eminentemente apropriado).


Notas

1. Sobre os manuais medievais (algumas vezes equivocadamente chamados de “enciclopédias”), veja W H Stahl “The Systematic Handbook in Antiquity and the Early Middle Ages” Latomus xxiii, 1964, pp. 311-21; M de Gandillac et al La pensée encyclopédique au moyen âge Neuchatel 1966.

2. O único estudo compreensivo deste asssunto é o de A C Esmeijer Divina quaternitas. A Preliminary Study in the Method and Application of Visual Exegesis Amsterdam 1978. Ele trata especificamente do período até c.1250, mas suas extensas notas e bibliografia fornecem um resumo da pesquisa sobre o assunto em geral. O trabalho de H Bober sobre os esquemas medievais não foi publicado até o momento, mas veja os seus artigos citados nas notas 56, 60 [nas próximas partes] e os excertos do seu artigo sobre esquematas citado em ME Reeves e B Hirsch-Reich The “Figurae” of Joachim of Fiore Oxford 1972.

3. Westerlo, archief abdij Tongerlo Liber floridus fol 1r; 550 Jaar Universiteit Leuven (exhibition catalogue, Stedelijk Museum) Louvain 1976, no 467, p. 329.

4.... come li ars de iometrie le commande et ensaigne”. O álbum é Paris BN MS fr 19093; facsimile e comentário in H R Hahnloser Villard de Honnecourt. Kritische Gesamtausgabe des Bauhüttenbuches ms fr 19093 der Pariser Nationalbibliothek, segunda edição, Graz 1972; para as figures geométricas, veja as pp. 272-79.
T Bowie The Sketchbook of Villard de Honnecourt Bloomington, London 1959, contém todas as ilustrações em um formato menor com um breve comentário em ingles.

5. C Bouleau The Painter’s Secret Geometry London 1963, pp. 49–79; G Lesser Gothic Cathedrals and Sacred Geometry London 1957. Para uma tentative de aplicar a análise geométrica na poesia medieval, veja T E Hart “Twelfth Century Platonism and the Geometry of Textual Space in Hartman’s Iwein: a ‘Pythagorean’ Theory”, Res publica litterarum ii, 1979, pp. 81–107.

6. Para um hábil resumo deste aspecto do pensamento medieval, veja C S Lewis The Discarded Image Cambridge 1964, p. 10; uma explicação mais detalhada é dada in H Meyer Die Zahlenallegorese im Mittelalter (Münstersche Mittlelalter-Schriften xxv) Munich 1975.

7. J B Friedman “The Architect’s Compass in Creation Miniatures of the Later Middle Ages” Traditio xxx, 1974, pp. 419–29; A Heimann “Three Illustrations From the Bury St Edmunds Psalter and Their Prototypes. Notes on the Iconography of some Anglo-Saxon Drawings” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xxix, 1966, p. 52. Cf a explicação um tanto hipotética de Cassiodoro (meados do séc. VI) de que a Trindade emprega a geometria para dar espécies e formas às suas criações: “Geometrizat enim, si fas est dicere, sancta Trinitas (alguns MSS lêem divinitas) quando creaturis suis, quas hodieque fecit existere, diversas species formulasque concedit”; Institutiones II v 11, R A B Mynors (ed), Oxford 1937, p. 150; Migne Patrologia latina 70, 1212–13. Sempre que possível, as citações de textos irão se referir às edições mais recentes e a Migne, a partir de agora abreviado como PL.

8.Sphaera infinita cuius centrum est ubique, circumferentia nusquam”; Liber xxiv philosophorum art ii; C Baeumker (ed) Studien und Charakteristiken zur Geschichte der Philosophie insbesondere des Mittelalters (Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters. Texte und Untersuchungen Bd xxv, Heft 1/2) Münster 1927, p. 208. Para outros exemplos da aplicação da terminologia geométrica a proposições teológicas, veja Reeves, op cit nota 2 acima, p. 42.

9. B L Ullman “Geometry in the Medieval Quadrivium” Studi di bibliografia e di storia in onore di Tammaro de Marinis iv, Verona 1964, pp. 263–85; sobre as traduções veja Dictionary of Scientific Biography New York 1970–, sv Adelard of Bath.

10. P Abelson The Seven Liberal Arts, a Study in Medieval Culture New York 1906; J Koch (ed) Artes liberales von der antiken Bildung zur Wissenschaft des Mittelalters (Studien und Texte zur Geistesgeschichte des Mittelalters v) Leiden-Cologne 1959. Sobre o ensino do quadrivium (as disciplinas matemáticas) veja G Beaujouan “L’enseignement du ‘quadrivium’” Settimane di studio del Centro italiano di studi sull’alto medioevo xix, La scuola nell’occidente latino dell’alto medioevo Spoleto 1972, pp. 639–723.

11.... fons sensuum et origo dictionum”, Didascalicon II 15, C H Buttimer (ed), Washington 1939; PL 176, 757; veja J Taylor The Didascalicon of Hugh of St Victor New York-London 1961, p. 203, n55.

12. Ep 101; PL 207, 312–313. A carta, embora autêntica, pode não refletir a experiência em primeira mão: P Oelhaye “Un témoignage frauduleux de Pierre de Blois sur la pédagogie du XIIe siècle” Recherches de théologie ancienne et médiévale xiv, I947, pp. 329–31.

13. Dictionary of Scientific Biography New York 1970–, sv Fibonacci.

14. G Lange Bild und Wort. Die katechetischen Funktionen des Bildes in der griechischen Theologie des 6 bis 9 Jahrhunderts Würzburg 1969; Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 1–8.

15. Esmeijer, op cit nota 2 acima, passim especially p. 31 n5.

16. Sobre a prática de ler em voz alta como um fator significante na literature medieval, veja H J Chaytor From Script to Print Cambridge 1945, capítulo 2. Para uma atitude comparável ao arranjo da página em livros impressos, veja K J Höltgen “Synoptische Tabellen in der medizinischen Literatur und die Logic Agricolas und Ramus”, Sudhoffs Archiv fur Geschichte der Medizin und der Naturwissenschaften xlix, 1965, pp. 371–90.

17. E Panofsky Gothic Architecture and Scholasticism Cleveland-New York, 1957.

18. Palavra usada pela primeira vez por Prisciano (séc. VI), que a restringia a preposições e conjunções; o sistema medieval, que em sua mais extrema manifestação tratava qualquer palavra que afetasse o sentido de uma proposição que não fosse seu sujeito ou predicado como um syncategorema, é sem precedentes. Veja P Boehner Medieval Logic Manchester 1952, pp. 19–26; H A G Braakhuis De 13de eeuwse tractaten over syncategorematische termen Leiden 1979, (com resumo em inglês).

19. D P Henry Medieval Logic and Metaphysics London 1972, pp. 47–55.