segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Sócrates de Copleston, parte II

Tradução do capítulo XIV do Livro I de A History of Philosophy, de Frederick Copleston.


2. O problema de Sócrates  

O problema de Sócrates é o problema de se determinar exatamente qual era o seu ensinamento filosófico. O caráter das fontes à nossa disposição – as obras socráticas de Xenofonte (o Memorabilia e o Simpósio), os diálogos de Platão, as várias declarações de Aristóteles, As Nuvens de Aristófanes – tornam este um difícil problema. Por exemplo, se fôssemos confiar apenas em Xenofonte, teríamos a impressão de um homem cujo maior interesse era criar bons homens e cidadãos, mas que não se preocupava com problemas de lógica e metafísica – um popular professor de ética. Se, por outro lado, baseássemos nossa concepção de Sócrates nos diálogos platônicos como um todo, teríamos a impressão de um metafísico da mais alta ordem, um homem que não se ocupou com questões da conduta diária, mas que estabeleceu as bases de uma filosofia transcendental, distinta por sua doutrina de um mundo metafísico das Formas. As declarações de Aristóteles, por outro lado (se feita a sua natural interpretação), dão a entender que, enquanto Sócrates não era indiferente à teoria, ele próprio não ensinou a doutrina das Formas ou Idéias subsistentes, que é característica do platonismo.

A visão comum foi de que, embora o retrato de Xenofonte seja por demais “ordinário” e “trivial”, devido principalmente à falta de aptidão e interesse filosóficos de Xenofonte (de fato foi defendido, embora pareça improvável, que Xenofonte deliberadamente tentou fazer Sócrates aparentar ser mais “ordinário” do que ele realmente era e do que ele sabia que ele era, por razões apologéticas), não podemos rejeitar o testemunho de Aristóteles, e somos portanto forçados a concluir que Platão, exceto nas primeiras obras socráticas, p.ex. na Apologia, coloca suas próprias doutrinas na boca de Sócrates. Esta visão tem a grande vantagem de que o Sócrates xenofôntico e o platônico não são postos em flagrante oposição e inconsistência entre si (pois as deficiências da representação de Xenofonte podem ser explicadas como um resultado do próprio caráter de Xenofonte e de seus interesses predominantes), enquanto o testemunho claro de Aristóteles não é jogado fora. Deste modo, forma-se um retrato mais ou menos consistente de Sócrates, e não é cometido nenhum abuso injustificado (é o que sustentariam os defensores da teoria) com qualquer uma das fontes.

Esta visão, contudo, foi contestada. Karl Joel, por exemplo, baseando sua concepção de Sócrates no testemunho de Aristóteles, sustenta que Sócrates foi um intelectualista ou racionalista, representando o tipo ático, e que o Sócrates xenofôntico, um Willensethiker, representando o tipo espartano, não é histórico. Portanto, de acordo com Joel, Xenofonte deu uma coloração dórica a Sócrates, não o apresentando de forma apropriada.[19]

Döring, ao contrário, sustentou que devemos olhar para Xenofonte se quisermos ter a nossa figura histórica de Sócrates. O testemunho de Aristóteles simplesmente inclui o julgamento sumário da Academia Antiga sobre a importância filosófica de Sócrates, enquanto Platão usou Sócrates como um prego para pendurar as suas próprias doutrinas filosóficas [20]. Outra visão foi propagada neste país [Inglaterra] por Burnet e Taylor. Segundo eles, o Sócrates histórico é o Sócrates platônico [21]. Platão sem dúvida elaborou o pensamento de Sócrates, mas, ainda assim, o ensinamento filosófico posto em sua boca nos diálogos representa substancialmente o verdadeiro ensinamento de Sócrates. Se isto estiver correto, então o próprio Sócrates seria responsável pela teoria metafísica das Formas ou Idéias, e a declaração de Aristóteles (de que Sócrates não “separava” as Formas) deveria ou ser rejeitada, como resultante de ignorância, ou justificada de algum modo. É muito pouco provável, dizem Burnet e Taylor, que Platão teria colocado suas próprias teorias na boca de Sócrates se este jamais as tivesse defendido, quando ainda estavam vivas as pessoas que realmente haviam conhecido Sócrates e o que ele efetivamente ensinara. Além disso, eles apontam o fato de que em alguns dos diálogos posteriores de Platão, Sócrates não tem mais um papel central, enquanto nas Leis ele é deixado totalmente de fora – restando a conclusão de que, onde Sócrates tem o papel central, o que ele fornece são suas próprias idéias, e não simplesmente as de Platão, enquanto nos diálogos posteriores Platão desenvolve visões independentes (ao menos independentes de Sócrates), e assim se permite que Sócrates seja deixado de lado. Este é sem dúvida um forte argumento, do mesmo modo que é também o fato de que em um diálogo “inicial”, como o do Fédon, que lida com a morte de Sócrates, a teoria das Formas ocupe um lugar proeminente. Mas se o Sócrates platônico é o Sócrates histórico, devemos logicamente dizer que no Timeu, por exemplo, Platão coloca na boca do principal locutor opiniões das quais ele, Platão, não tem responsabilidade alguma, já que, se Sócrates não representa o próprio Platão, não há nenhuma razão convincente para que o Timeu também o faça. A. E. Taylor de fato não hesita em adotar essa posição extremada, ainda que consistente; mas não só é prima facie extremamente improvável que assim possamos libertar Platão de toda responsabilidade por quase tudo o que ele diz nos diálogos, como também, quanto ao Timeu, se a opinião de Taylor for verdadeira, de que modo podemos explicar que este fato notável foi se tornar manifesto pela primeira vez no século XX d.C? [22] Ainda, uma sustentação consistente da visão de Burnet-Taylor do Sócrates platônico envolve a imputação a Sócrates de elaborações, refinamentos e explicações da Teoria das Idéias que muito improvavelmente o Sócrates histórico realmente desenvolveu, e que levariam a ignorar completamente o testemunho de Aristóteles.

É verdade que muito da crítica levantada contra a Teoria das Idéias por Aristóteles na Metafísica é dirigida contra a forma matemática da teoria sustentada por Platão em suas aulas na Academia, e que em determinadas particularidades há uma curiosa negligência a respeito do que Platão diz nos diálogos, um fato que parece indicar que Aristóteles apenas reconhecia como platônica a teoria não publicada, desenvolvida na Academia; mas certamente não seria adequado dizer que havia uma completa dicotomia entre a versão da teoria que dá Aristóteles (seja justa ou injustamente) e a teoria em desenvolvimento nos diálogos. Ademais, o próprio fato de que a teoria passa por uma evolução, modificação e refinamento nos diálogos implicaria que ela representa, ao menos em parte, as próprias reflexões de Platão sobre sua posição. Escritores posteriores da Antigüidade certamente acreditavam que podemos buscar nos diálogos a própria filosofia de Platão, embora eles divergissem quanto à relação dos diálogos com o ensinamento de Sócrates, os primeiros entre aqueles acreditando que Platão introduziu muito do seu próprio pensamento nos diálogos. Siriano contradiz Aristóteles, mas o professor Field observa que a sua razão parece ser “seu próprio sentimento sobre o que era apropriado na relação entre professor e discípulo” [23].

Um argumento em favor da hipótese Burnet-Taylor se encontra na passagem da segunda Carta, onde Platão afirma que o que ele disse na obra não é nada senão Sócrates “embelezado e rejuvenecido” [24]. Contudo, em primeiro lugar, a passagem - ou mesmo toda a carta - não é seguramente genuína, ao passo que, em segundo lugar, ela poderia ser perfeitamente explicada como significando que os diálogos dão o que Platão considerava ser a superestrutura metafísica legitimamente elaborada por ele mesmo com base no que Sócrates de fato dissera. (Field sugere que ela pode se referir à aplicação do método e do espírito socrático nos problemas “modernos”.) Pois ninguém seria tão tolo em sustentar que os diálogos não contêm nada do Sócrates histórico. É óbvio que os primeiros diálogos naturalmente tomariam como seu ponto de partida o ensinamento do Sócrates histórico, e se Platão desenvolveu as teorias epistemológicas e ontológicas dos diálogos posteriores através da reflexão sobre esse ensinamento, ele poderia legitimamente considerar os resultados atingidos como um desenvolvimento e uma aplicação justificável do ensinamento e método de Sócrates. As suas palavras na Carta dariam força à sua convicção de que, enquanto a Teoria das Idéias elaborada nos diálogos podia, sem nenhum abuso injustificado, ser tratada como uma continuação e um desenvolvimento do ensinamento socrático, isso não seria igualmente verdadeiro com respeito à forma matemática da teoria dada na Academia.

É claro que seria ridículo sugerir que uma visão patrocinada por especialistas como o professor Taylor e o professor Burnet pudesse ser facilmente rejeitada, e fazer qualquer sugestão deste tipo está muito longe da intenção do presente escritor; mas em um livro geral sobre a filosofia grega é impossível tratar a questão com alguma extensão considerável ou dar à teoria Burnet-Taylor a consideração completa e minuciosa que ela merece. De todo modo, eu devo expressar a minha concordância com o que disse o sr. Hackforth, por exemplo, [25] a respeito da falta de justificativas em se ignorar o testemunho de Aristóteles de que Sócrates não separava as Formas. Aristóteles havia estado por vinte anos na Academia e, interessado como ele era na história da filosofia, dificilmente poderia ter deixado de avaliar a origem de uma doutrina platônica de tal importância como a teoria das Formas. Some a isso o fato de que os fragmentos sobreviventes dos Diálogos de Ésquines não nos dão razão alguma para divergir da visão de Aristóteles, e diz-se que Ésquines deu o mais preciso retrato de Sócrates. Por essas razões, o melhor parece ser aceitar o testemunho de Aristóteles, e, enquanto se admite que o Sócrates xenofôntico não é o Sócrates completo, sustentar a visão tradicional, a de que Platão de fato pôs suas próprias teorias na boca do mestre a quem tanto reverenciou. Portanto, a breve explicação a ser dada aqui sobre a atividade filosófica de Sócrates baseia-se na visão tradicional. Aqueles que sustentam a teoria de Burnet e Taylor com certeza diriam que desse jeito se comete uma injustiça com Platão; mas por acaso a situação melhoraria ao cometermos uma injustiça com Aristóteles? Se este não tivesse mantido relações pessoais com Platão e seus discípulos por um longo período de tempo, poderíamos ter admitido a possibilidade de um engano de sua parte; mas em vista dos seus vinte anos na Academia, esse engano parece fora de questão. No entanto, é improvável que devamos algum dia adquirir uma certeza absoluta sobre o retrato historicamente preciso de Sócrates, e seria muito imprudente revogar como indignas de consideração todas as concepções com exceção da nossa própria. Podemos apenas afirmar as nossas razões para aceitar um retrato de Sócrates ao invés de outro, e deixar por isso mesmo.

(Lançamos mão de Xenofonte na breve explicação sobre o ensinamento de Sócrates que segue: não podemos acreditar que Xenofonte foi um inepto ou um mentiroso. É perfeitamente verdadeiro o fato de que, ao mesmo tempo em que é difícil – às vezes sem dúvida impossível – distinguir entre Platão e Sócrates, “é quase tão difícil quanto distinguir entre Sócrates e Xenofonte”. Pois o Memorabilia é uma obra de arte tanto quanto qualquer diálogo platônico, embora o estilo seja tão diferente quanto Xenofonte era de Platão” [26]. Mas, como aponta o sr. Lindsay, Xenofonte escreveu muito mais do que o Memorabilia, e uma contemplação sobre os seus textos em geral pode muitas vezes nos mostrar o que é Xenofonte, ainda que nem sempre mostre o que é Sócrates. O Memorabilia nos apresenta a impressão que Sócrates causou em Xenofonte, a qual cremos em grande parte confiável, mesmo que seja sempre bom lembrar o velho adágio escolástico, Quidquid recipitur, secundum modum recipientis recipitur.)



Notas


19. Der echte und der Xenophontische Sokrates, Berlin, 1893, 1901. 


20. Die Lehre des Sokrates als sozialesreform system. Neuer Versuch sur Lösung des Problems der sokratischen Philosophie. München, 1895.


21. “Enquanto é bem impossível considerar o Sócrates de Aristófanes e o Sócrates de Xenofonte como a mesma pessoa, não há dificuldade alguma em considerar ambos como imagens distorcidas do Sócrates que conhecemos através de Platão. O primeiro é legitimamente distorcido para efeito cômico, o segundo não tão legitimamente, por razões apologéticas”. Burnet, G.P., I, p. 149.


22. Cf. pp. 245-7 deste livro; v. também a Cosmologia de Platão de Cornford, onde ele discute a teoria do professor Taylor.


23. Platão e seus Contemporâneos, p. 228, Methuen, 1930. Cf. o sumário de Field da evidência sobre a questão socrática, pp. 61-3.


24. 314c, καλού και νέου γεγονότος.


25. Cf. o artigo de R. Hackforth sobre Sócrates sobre na Philosophy de julho de 1933.


26. A. D. Lindsay na Introdução aos Discursos Socráticos (Everyman), p. viii.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Sócrates de Copleston, parte I

Tradução do capítulo XIV do Livro I de A History of Philosophy, de Frederick Copleston.



1. O início da vida de Sócrates 

A morte de Sócrates deu-se no ano de 399 a.C., e, como Platão nos conta que Sócrates tinha setenta anos de idade ou um pouco mais do que isso na hora de sua morte, ele deve ter nascido perto de 470 a.C. [1]. Ele era o filho de Sofronisco e Fenarete, da tribo Antióquia e do deme de Alopece. Alguns disseram que seu pai era um escultor [2], mas A. E. Taylor acha, com Burnet, que a história foi um mal-entendido surgido de uma referência jocosa no Eutifron a Dédalo como o ancestral de Sócrates [3]. De qualquer modo, Sócrates não parece ter ele próprio seguido o comércio do seu pai, se esse era o comércio de seu pai, e o grupo das Graças na Acrópole que depois foi exibido como obra de Sócrates é atribuído pelos arqueólogos a um escultor anterior [4]. Sócrates não pode, contudo, ter vindo de uma família muito pobre, já que o encontramos mais tarde servindo com um hoplita completamente equipado, e ele deve ter recebido um patrimônio suficiente para se permitir ocupar tal cargo. Fenarete, a mãe de Sócrates, é descrita no Teeteto [5] como uma parteira, mas, mesmo que verdadeiro, isso não implicaria que ela fosse uma parteira profissional no sentido moderno, como aponta Taylor [6]. Assim, o início da vida de Sócrates ocorreu no grande auge do esplendor ateniense. Os persas haviam sido derrotados em Platéia em 479, e Ésquilo produzira os Os Persas em 472: Sófocles e Eurípedes eram ainda garotos [7]. Além dísso, Atenas já havia estabelecido a base de seu império marítimo.

No Simpósio de Platão, Alcebíades descreve Sócrates como semelhante a um sátiro ou um sileno, [8] e Aristófanes dizia que ele pavonava-se como uma ave aquática, e ridicularizava o seu costume de revirar os olhos [9]. Mas também sabemos que ele era dotado de uma particular robustez corporal e capacidade de resistência. Como um homem, do inverno ao verão ele vestia a mesma vestimenta e mantinha o seu hábito de andar de pés descalços, mesmo em uma campanha de inverno. Embora muito abstêmio de comida e bebida, ele podia beber uma grande quantidade sem ficar nem um pouco pior por conta disso. A partir da sua juventude ele passou a receber mensagens proibitivas e avisos de sua misteriosa ”voz” ou “sinal”, ou daimon. O Simpósio nos conta sobre seus prolongados acessos de abstração, um deles tendo demorado todo o dia e toda a noite – e isso em meio a uma campanha militar. O professor Taylor prefere interpretar essas abstrações como êxtases ou arrebatamentos, mas parece mais provável que eles fossem prolongados acessos de abstração causados por uma intensa concentração mental sobre algum problema, um fenômeno conhecido no caso de alguns outros pensadores, mesmo que não em tão larga escala. A própria extensão do “êxtase” mencionado no Simpósio parece ir contra ele ser uma verdadeiro arrebatamento no sentido místico-religioso [10], ainda que um acesso de abstração tão prolongado fosse também excepcional.

Quando Sócrates estava no início da casa dos vinte anos, o pensamento, como já vimos, tendeu a sair das especulações cosmológicas dos jônicos para se dirigir ao próprio homem, mas parece que Sócrates começou estudando as teorias cosmológicas do Oriente e do Ocidente nas filosofias de Arquelau, Diógenes de Apolônia, Empédocles e outros. Teofrasto afirma que Sócrates foi na verdade um membro da escola de Arquelau, o sucessor de Anaxágoras de Atenas [11]. De qualquer forma, Sócrates certamente teve uma decepção com Anaxágoras. Perplexo com a discordância das várias teorias filosóficas, Sócrates recebeu uma luz repentina da passagem onde Anaxágoras falava da Mente como sendo a causa de toda lei e ordem natural. Encantado com a passagem, começou a estudar Anaxágoras na esperança de que este explicaria como a Mente opera no universo, ordenando todas as coisas para o melhor delas. O que na verdade ele encontrou foi que Anaxágoras introduziu a Mente apenas para dar princípio ao movimento do vórtice. Essa decepção colocou Sócrates em sua própria linha de investigação, abandonando a filosofia natural que parecia não levar a lugar nenhum, exceto à confusão e a opiniões contrárias. [12]

A. E. Taylor conjectura que, com a morte de Arquelau, Sócrates foi, para todos os efeitos, o seu sucessor [13]. Ele tenta defender este argumento com a ajuda da peça de Aristófanes, As Nuvens, onde Sócrates e seus companheiros do pensatório ou φροντιστήριον são representados como viciados nas ciências naturais e como defensores da doutrina do ar de Diógenes de Apolônia [14]. Portanto, a retratação de Sócrates de que ele nunca teve “pupilos” [15], se a conjectura de Taylor estiver correta, significaria que ele não havia tido nenhum pupilo pago. Ele tivera ταροι, mas nunca μαθηταί. Contra isto se pode insistir que na Apologia Sócrates afirma expressamente: “Mas a verdade simples e clara é, ó, atenienses, de que eu nada tenho a ver com especulações físicas” [16]. É verdade que na época em que Sócrates foi retratado falando na Apologia ele já havia há muito tempo abandonado a especulação cosmológica, e que suas palavras não implicam necessariamente que ele nunca se ocupou com tais especulações; na verdade, sabemos por um fato que ele se ocupou sim; mas parece, para o presente escritor, que todo o tom da passagem vai contra a idéia de que Sócrates fora alguma vez o professado líder de uma escola dedicada a esse tipo de especulação. O que se diz na Apologia certamente não prova, em sentido estrito, que Sócrates não foi o líder de tal escola antes de sua “conversão”, mas parece que a interpretação natural seria a de que ele nunca ocupou tal posição.

A “conversão” de Sócrates, que engendrou a sua mudança definitiva para o irônico filósofo moral, parece ter sido causada pelo famoso incidente no Oráculo de Delfos. Querofonte, um amigo devoto de Sócrates, perguntou ao Oráculo se havia algum homem vivo mais sábio do que Sócrates e recebeu a resposta “Não”. Isso fez com que Sócrates ficasse a pensar, e ele veio à conclusão de que Deus quis dizer que ele era o homem mais sábio porque ele reconhecia a sua própria ignorância. Ele veio então a conceber a sua missão como a busca pela verdade estável e segura, pela verdadeira sabedoria, e a mobilizar a ajuda de qualquer homem que consentisse em ouvi-lo [17]. Por mais estranha que possa parecer a história do Oráculo, ela provavelmente aconteceu de verdade, já que é improvável que Platão colocasse uma mera invenção na boca de Sócrates em um diálogo que obviamente tem o propósito de dar uma explicação histórica sobre o julgamento do filósofo, especialmente porque a Apologia é de uma antiga data, e muitos que conheciam os fatos estavam ainda vivos.

O casamento de Sócrates com Xantipa é mais conhecido pelas histórias sobre o caráter rabugento dela, o que pode ou não ser verdadeiro. Com certeza elas dificilmente são confirmadas pela figura da esposa de Sócrates dada no Fédon. O casamento provavelmente ocorreu em alguma época nos primeiros dez anos da Guerra do Peloponeso. Nesta guerra, Sócrates distinguiu-se por sua bravura no cerco de Potidéia, em 431/30, e novamente na derrota dos atenienses para os beócios em 424. Ele estava presente também na ação do lado de fora de Anfípolis em 422. [18]



Notas

1. Apologia, 17d.

2. Cf. Diógenes Laércio. (Assim, Praechter diz claramente: Der Vater des Sokrates war Bildhauer, p. 132)

3. Eutífron, 10c.

4. Diógenes Laércio observa que “Alguns dizem que os gregos na Acrópole são obra sua”.

5. Teeteto, 149a.

6. Taylor, Sócrates, p. 38.

7. “Todos as grandes construções e obras de arte com as quais Atenas estava enriquecida na era de Péricles, os Muros Longos que ligavam a cidade ao porto de Pireu, o Partenon, os afrescos de Polignoto, foram iniciadas e terminadas sob os seus olhos.”

8. Simpósio, 215b3 ff.

9. As Nuvens, 362 (cf. Simpósio, 221).

10. É verdade, contudo, que a história do misticismo realmente registra casos de prolongados estados extáticos. Cf. Poulsin, Grâces d’ oraison, p. 256.

11. Opiniões dos Físicos., fr. 4.

12. Fédon, 97-9.

13. Sócrates, p. 67.

14. As Nuvens, 94.

15. Apologia, 19.

16. Apologia, 19.

17. Apologia, 20 ff.

18. Apologia, 28e. Burnet sugere que possa se referir ao combate na fundação de Anfípolis (cerca de quinze anos antes).

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte IV

Quarta e última parte da tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf



IV. O sistema nervoso central


As dificuldades na filosofia natural do prof. Monod se tornam cada vez mais insolúveis conforme subimos pelo processo evolutivo até a “fronteira” superior do atual conhecimento biológico. Por um lado, o prof. Monod admite que “o papel cumprido pelas atuações teleonômicas na orientação da seleção torna-se cada vez maior quanto mais alto for o nível de organização e, conseqüentemente, da autonomia do organismo com relação ao seu meio ambiente” (p. 121). Essa autonomia mostra-se através de uma capacidade de “escolha” de um determinado tipo de comportamento, ou através de um “desejo”, que cria novas direções no processo evolutivo (9). Por outro lado, contudo, essa capacidade de escolha, a ação desse desejo, não implica, segundo o autor, n’uma diferença “qualitativa” com relação aos níveis inferiores dos seres vivos. Tudo é explicado (ou, pelo menos, explicável em teoria) por uma complicação meramente quantitativa do mecanismo de interações elementares. Em outras palavras, a “lógica” que controla o comportamento dos seres vivos, em todos os seus níveis, é uma lógica unívoca, não analógica.

Essa contradição entre “escolha” e “novidade”, que aparece no processo evolutivo e na uniformidade do “mecanismo”, torna-se particularmente evidente no nível do homem. Segundo o prof. Monod, a inegável correlação entre a evolução privilegiada do sistema nervoso no homem e o desenvolvimento da linguagem simbólica deve ser interpretada no sentido de que este último é “não só o produto, mas uma das condições iniciais dessa evolução” (p. 124). Monod esclarece sua afirmação com as seguintes asserções: “aparecendo muito cedo em nossa linha, a comunicação simbólica mais rudimentar, por meio das suas possibilidades radicalmente novas, foi uma dessas ‘escolhas’ iniciais cruciais que decidiram o futuro da espécie ao fazer surgir uma nova pressão seletiva. Essa seleção favoreceu o desenvolvimento da habilidade lingüística e assim do órgão que servia a ela, o cérebro” (p. 124-5). Mas tal asserção não decide o ponto central da questão: como pode ser explicada essa escolha, que abre novas direções no caminho da evolução? Escolha de quem, e por qual motivo? A pergunta parece ser legítima, já que o prof. Monod busca explicar a enorme riqueza do pensamento humano através da analogia com máquinas cibernéticas, e por isso, finalmente, nos termos da físico-química. Mesmo o colaborador do prof. Monod, F. Jacob, confirma a legitimidade da nossa pergunta, quando escreve: “Descrever nos termos da física e da química um movimento de consciência, de sentimento, é um problema totalmente diferente. Nada assegura esperança alguma de que nós um dia teremos sucesso – não só por causa da complexidade, mas também porque é sabido, conforme Gödel, que um sistema lógico não pode bastar à sua própria descrição” (10).

Concluindo, o pensamento de Monod parece oscilar entre duas classes de afirmações distintas. Uma inclui todos os enunciados em favor da objetividade do “projeto teleonômico”: “... o organismo efetivamente transcende as leis físicas – mesmo que obedecendo-os – assim alcançando de uma só vez a busca e a realização do seu próprio fim” (p. 81). A outra pretende contrabalancear as afirmações anteriores, resolvendo no fim das contas (como já vimos) a espontaneidade das reações teleonômicas na invariância determinística do mecanismo replicativo e a homogeneidade das reações elementares. “Nada assegura a suposição de que as reações básicas sejam de diferentes naturezas nos diferentes níveis de integração” (p. 140).

Contudo, como já tentamos mostrar, a invariância parece implicar necessariamente a teleonomia. Além disso, o mero fato de que as reações elementares são as mesmas em todos os níveis de integração não nos permite concluir imediatamente em favor de uma diferença puramente quantitativa entre os diferentes níveis de seres vivos, ou mesmo – mais radicalmente – entre os diferentes níveis de organização da matéria. O fato de que o funcionamento do sistema nervoso central seja fundado em mecanismos que podem ser inteiramente analisados pela bioquímica não significa necessariamente que a atividade intelectual do homem seja redutível aos resultados automáticos de um aparelho cibernético, embora de uma enorme complexidade. Enquanto segue a mesma teoria sintética de Monod, nesse ponto G.G. Simpson mostra muito mais cautela: “A vida – ele escreve – é materialística na natureza, mas ela tem em si propriedades únicas que residem na sua organização, não em seus materiais ou sua mecânica” (11). A estrutura e o mecanismo são sem dúvida uma condição necessária para a vida. Mas são também a sua causa? A pergunta sem dúvida se torna ainda mais perspicaz quando consideramos as mais superiores manifestações do fenômeno da vida.



V. A ideologia de Monod


A razão fundamental das “contradições” que parecem existir no pensamento do prof. Monod deve ser buscada, nós acreditamos, não no nível das afirmações verdadeiramente científicas, mas no das deduções que ele pensa poder fazer partindo dos resultados da biologia moderna. Como já destacamos, essas deduções são apoiadas por postulados que vão além do puro domínio da ciência, pertencendo mais ao das “generalizações ideológicas” (12). É sobre este último ponto que gostaríamos de refletir agora.

Enquando fala do problema que surge da presença da teleonomia nos seres vivos, Monod escreve: “É a própria existência desse fim, de uma só vez buscado e atingido pelo aparelho teleonômico, que é o ‘milagre’. Milagre? Não, o problema real se encontra em um outro nível, mais profundo do que o do fenômeno” (p.30). Esta admissão é extremamente significativa. O próprio prof. Monod admite que a solução do problema da teleonomia deve ser procurada em um nível mais profundo do que o do fenômeno, das leis biológicas; isto é, no nível da reflexão intelectual. Como já vimos, a reflexão intelectual, como é proposta pelo prof. Monod, tem seu fundamento epistemológico no postulado da objetividade, que nos proíbe de considerar a teleonomia como uma propriedade original, independente. Contudo, uma coisa é afirmar que a metodologia científica é baseada em um postulado tal como esse (13); outra é alegar que a teleonomia deva ser excluída como um fato independente da realidade dos fenômenos naturais. Esta segunda afirmação vai muito além da anterior, implicando (como implica) que o conhecimento científico, com o seu “postulado da objetividade”, é o único conhecimento verdadeiro.

Aqui somos confrontados com um enunciado que não é mais científico, mas filosófico (ou ideológico, como Monod preferiria chamar). Conforme bem se sabe, essa é a afirmação clássica do “cientificismo” (14). E devemos admitir que raramente surgiu, especialmente nos últimos anos, uma posição de “cientificismo” tão radical e descompromissada.

Mas como é possível justificar, no nível da “ideologia”, a adoção do postulado da objetividade como o único fundamento do verdadeiro conhecimento? O próprio Monod, como já observamos, sente a dificuldade de tal problema quando ele admite que a escolha do postulado vai além do domínio do conhecimento, sendo, como é, o seu fundamento. Contudo, a alegação do autor de que esse é um problema de “escolha ética” é realmente satisfatória? Na verdade, como pode uma escolha puramente ética ser “a condição axiomática da autenticidade para todo discurso e toda ação” (p. 164)? Visto que uma escolha ética desse tipo não é o resultado de uma decisão meramente arbitrária, mas “apresentada como um valor transcendental, um conhecimento verdadeiro, não para o uso do homem, mas para que o homem sirva” (p. 165), e à qual só deve ser atribuído o caráter de verdade e autenticidade, parece ser possível apenas uma conclusão: isto é, a “ética do conhecimento” de Monod implica por sua vez um ato de fé – quer dizer, a fé de que apenas o conhecimento científico pode nos dar a verdade (e mesmo uma autêntica praxis política).

Um ato de fé, contudo, sendo um ato extra-racional, não pode ser racionalmente justificado, nem pode por isso ser a base de uma resposta racional aos problemas trazidos pelo fenômeno da vida. Na verdade, já notamos que a alegada clareza cartesiana das deduções do prof. Monod, longe de responder as interrogativas, deixa-as completamente em aberto. Esse é, como vimos, o caso do problema das conexões entre a invariância e a teleonomia, e mais ainda o do sentido e função que devem ser dados à necessidade e ao acaso na natureza, ou o da distinção entre “espírito” e matéria no nível do homem.

Encarando o “mistério” que resta depois de tudo, nos encontramos com a interrogação dos homens de todos os tempos, e com a possibilidade de dois tipos de respostas: a que vê nos processos naturais, em todos os níveis, a manifestação de uma “ordem” ou “projeto” cósmico; a outra que alega resolver toda a teleonomia do universo na ação do puro acaso e da necessidade cega. Qual das duas está certa? Se não queremos reduzir tal problema à oposição de dois diferentes tipos de “atos de fé” (ou de “éticas do conhecimento”), as quais nenhuma pode ser racionalmente justificada, devemos ter a coragem de perguntar a nós mesmos se além do conhecimento científico não existiria possivelmente uma ulterior forma de conhecimento, a da filosofia, em cujo nível poderia se buscar a solução dos “problemas-limite” do conhecimento humano: o problema da existência do universo, com suas propriedades físico-químicas; o problema do surgimento da vida; e, finalmente, o problema da existência do pensamento humano. Esses problemas enormemente difíceis e complexos não podem ser resolvidos dentro do plano do “cientificismo” do prof. Monod. O autor de “O Acaso e a Necessidade” sem dúvida rejeita tal “projeto filosófico” por ser desprovido de qualquer sentido. Por mais paradoxal que pareça, na “filosofia natural” do prof. Monod, não há lugar para a filosofia, mas apenas para a ciência, a sua alegada objetividade perfeita e sua dialética de determinismo e acaso. O acaso parece ser a última palavra a respeito de todos os problemas-limite que mencionamos. “O homem enfim sabe que está sozinho na imensidão insensível do universo, da qual ele surgiu apenas por acaso. Nem o seu destino nem o seu dever foram escritos” (p. 167). E, contudo, mesmo o prof. Monod parece não estar totalmente satisfeito com a sua resposta, já que ele imediatamente acrescenta: “O reino acima ou a escuridão abaixo: é uma escolha dele”.

Não é esse todo o problema que temos pela frente? Qual é o “reino”? Qual é a “escuridão”? Apesar de todos os seus grandes méritos, “O Acaso e a Necessidade” não parece a nós dar uma resposta satisfatória para tal interrogação. Não poderíamos dizer, talvez, que essa incapacidade resulta dos limites da filosofia democritiana, que o prof. Monod quis sustentar com uma coerência tão inflexível? Isso nos faz lembrar das famosas palavras de Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia” (15).



Notas

9. Escreve Monod (p. 122): “Na evolução de certos grupos observamos uma tendência geral, mantida por milhões de anos, em direção ao desenvolvimento aparentemente orientado de certos órgãos; este fato mostra como a escolha inicial de um determinado tipo de comportamento... coloca a espécie no caminho para um contínuo aperfeiçoamento das estruturas e atuações que sustentam esse comportamento”. E um pouco depois: “É portanto correto dizer que o impulso sexual – ou melhor ainda, o desejo – criou as condições sob as quais muitas plumagens magníficas foram selecionadas”.

10. F. Jacob, “La logique du vivant”, Gallimard, 1970, p. 337. O próprio Monod está ciente da dificuldade, quando escreve: “Um lógico pode lembrar o biólogo que os seus esforços em ‘entender’ o completo funcionamento do cérebro humano estão fadados ao fracasso, visto que nenhum sistema lógico pode produzir uma descrição integral de sua própria estrutura” (p. 137). Mas quando ele tenta se livrar da dificuldade, observando que “esse aviso seria um tanto inapropriado, considerando-se o quão distante estamos ainda da fronteira absoluta do conhecimento” (ibid.), inevitavelmente surge a pergunta: o que se quer dizer aqui por “fronteira absoluta” (“frontière absolue”)? Se o fenômeno do conhecimento (especialmente a auto-consciência) fosse um fenômeno-limite, um limite absoluto, isso pareceria implicar que a uma explicação pura nos termos físico-químicos, por mais que se aprofundasse, permanecerá para sempre do lado de cá daquele limite. Isto estaria de acordo, achamos, com o significado do teorema de Gödel. Se, ao contrário, como parece ser mais provável, por “fronteira absoluta” Monod quer dizer uma fronteira absolutamente impossível de atravessar no presente estado do nosso conhecimento, mas transponível em teoria (assim que a lógica da cibernética bio-molecular for finalmente compreendida), então a dificuldade levantada pelo prof. Jacob manteria a sua força.

11. G. C. Simpson, “The meaning of Evolution”, Yale Univ. Press, 1950, pp. 291-292.

12. O prof. Monod afirma que o “postulado da objetividade” pretence ao campo da ciência, não das generalizações ideológicas, que são o resultado de um esforço maior de reflexão. Mas nós achamos ter mostrado suficientemente que, se há uma posição “ideológica” clara nos pensamentos de Monod, ela deve ser encontrada antes de tudo no nivel epistemológico do “postulado da objetividade”, como compreendido e utilizado pelo biólogo francês.

13. Acreditamos que talvez nem todos os cientistas contemporâneos concordem neste ponto.

14. Mais exatamente, do “cientificismo” do último século, do qual muitos biólogos contemporâneos (como Monod) parecem estar muito mais próximos do que a maioria dos físicos. Veja, por exemplo, W. Heisenberg, em “Physics and Beyond”, Harper and Row, 1971.

15. Shakespeare, Hamlet, Ato I.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte III

Terceira parte da tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf


III. Necessidade e Acaso

Na verdade, o processo determinístico da reprodução invariante não é a última palavra na explicação do “mistério da vida”, segundo o prof. Monod. Além da necessidade, e ainda mais profundo do que isso, outro elemento exerce sua influência em todos os processos naturais: o acaso. Monod considera a ação do acaso em dois planos diferentes. Primeiro, nós temos o plano dos fenômenos vitais, vistos em seus desenvolvimentos desde a primeira célula viva até os níves mais superiores da evolução. O mecanismo da reduplicação da célula viva, com todo seu determinismo e exatidão, não escapa à lei física fundamental das alterações microscópicas. Sob circunstâncias excepcionais, um ou mais nucleotídeos de DNA podem ser destruídos ou acrescentados, etc. Esses são acidentes completamente aleatórios, imprevisíveis. Mas, uma vez inscritos na estrutura do DNA, eles serão reproduzidos em milhões de exemplares, assim passando do campo do acaso para o da mais inexorável necessidade. Cada um desses “erros”, ou “mutações” produz uma alteração correspondente na estrutura das proteínas que (como sabemos) constituem – como um todo – o aparelho teleonômico dos seres vivos. Este aparelho, por sua vez, reage como um “filtro” para as “mutações”: as únicas aceitáveis serão as que não reduzirem a coerência do aparelho teleonômico, mas que a reforçarem ou mesmo (em casos muito mais raros) a enriquecerem com novas possibilidades. Finalmente, a seleção dá o juízo final sobre a eficiência do aparelho teleonômico dessa forma modificado.

O fenômeno da evolução da vida é explicado, assim, de acordo com o prof. Monod, pelo jogo dos elementos casuais. “O puro acaso, absolutamente livre mas cego, na própria raiz do estupendo edifício da evolução: este conceito central da biologia moderna não é mais uma hipótese entre outras possíveis ou sequer concebíveis. Ele é hoje a única hipótese concebível, a única compatível com o fato observado e testado. E nada garante a suposição (ou a esperança) de que as concepções sobre isso devam, ou mesmo possam ser revistas” (p.110).

Paremos por um momento. Inferir do fato das mutações aleatórias na estrutura do DNA que o “puro acaso” deve ser posto “na própria raiz do... edifício da evolução” parece ser uma conclusão que excede em muito as premissas científicas. Em primeiro lugar, o que se quer dizer aqui com o termo “puro acaso”? A sua mais radical interpretação levaria a afirmar (como o próprio Monod parece estar propenso a fazer) que “uma mutação é em si mesma um evento microscópico, um evento quântico, ao qual conseqüentemente se aplica o princípio da incerteza – um evento que é, em vista disso, por sua própria natureza essencialmente imprevisível” (p. 112). Mas esta é uma interpretação controversa da física quântica, e disso o próprio Monod está ciente. Assim, ele não insiste nela, e prefere falar de “acaso essencial” no sentido de “absoluta coincidência... que resulta da intersecção de duas cadeias de eventos totalmente independentes” (p. 111). “...mesmo que um dia se abandonasse o princípio da incerteza, permaneceria verdadeiro o fato de que, entre a determinação de uma mutação no DNA, por mais completa que seja, e a determinação de seus efeitos funcionais no plano da interação da proteína, ainda não veríamos nada além de uma ‘absoluta coincidência... O evento ainda pertenceria ao domínio do ‘acaso essencial’” (p. 112). Aqui, “acaso essencial” significa que a probabilidade da intersecção de duas cadeias de eventos totalmente independentes é quase nula. Ora, não sabemos se o prof. Monod já leu Aristóteles. Se não, ele certamente ficaria surpreso ao ver que Aristóteles também fala de eventos fortuitos como a intersecção de duas cadeais causais independentes. Mas Aristóteles, quando fala do acaso, sempre destaca o fato de que para haver um evento casual é preciso pressupor a existência da determinação, da causalidade, na natureza. Fossem todos os eventos na natureza “eventos casuais”, simplesmente nada aconteceria. Na verdade, o “acaso essencial” (ao menos neste último sentido) do qual fala o prof. Monod pressupõe a determinação: sem o mecanismo de invariância (rigidamente determinístico), as mutações aleatórias não produziriam simplesmente coisa alguma. Mais do que isso, é pressuposta a própria teleonomia; pois, sem a “função filtro” do aparelho teleonômico, o processo evolutivo não chegaria a lugar nenhum. Resumamos assim: o “acaso” é de fato um fator importante e indispensável no fenômeno da evolução. Mas está longe de ser provado que ele é o único, ou o mais fundamental.

Um segundo plano, mais básico, no qual devemos considerar a ação do acaso, explica o prof. Monod, é o da origem dos sistemas vivos. Entre as três etapas que distinguíveis a priori no processo causal que possa ter levado ao aparecimento dos primeiros organismos, a primeira (a formação de nucleotídeos e aminoácidos, ou “etapa pré-histórica”) possui uma suficiente base teorética e experimental. A segunda (a formação, começando do estágio anterior, das primeiras macromoléculas, capazes de sua própria replicação) nos coloca diante de problemas extremamente árduos, embora não intransponíveis, pensa o prof. Monod. A dificuldade fundamental, contudo, se encontra no nível do terceiro estágio, ou seja, o da “emergência gradual dos sistemas teleonômicos que, em torno das estruturas replicativas, fossem construir um organismo, uma célula primitiva” (p. 134). O âmago da dificuldade é a explicação da origem do código genético e de seu mecanismo de tradução. “De fato (confessa Monod) isso é menos um ‘problema’ do que um verdadeiro enigma. O código não tem sentido a menos que traduzido. O mecanismo de tradução da célula moderna consiste de pelo menos cinqüenta componentes macromoleculares que são eles mesmos codificados no DNA: o código não pode ser traduzido exceto por produtos da tradução. É a moderna expressão de omne vivum ex ovo. Quando e como esse círculo se fechou? É extremamente difícil de imaginar” (p. 135).

Uma pista para a solução desse enigma é dada, observa o prof. Monod, pelo “fato de que o código está agora decifrado e sabemos que ele é universal” (ibid.). Contudo, de acordo com os presentes resultados da biologia molecular, a estrutura do código parece ser quimicamente arbitrária. Isto é, ela parece ter de ser explicada não por razões químicas (ou melhor, estereoquímicas), mas apenas como “o resultado de uma série de escolhas aleatórias que gradualmente a enriqueceram” (p. 135). Se essa arbitrareidade da estrutura do código genético devesse finalmente ser provada, conclui o autor, teríamos a conseqüência (dada a universalidade desse código) de que entre as incontáveis tentativas de elaboração, apenas uma realmente teve sucesso. Como conseqüência, seria necessário concluir que o evento decisivo do surgimento da vida na Terra “ocorreu apenas uma vez. O que significaria que a sua probabilidade a priori era virtualmente zero. Esta idéia é desagradável para a maioria dos cientistas. A ciência não pode dizer nem fazer nada a respeito de uma ocorrência única” (p. 136). Contudo, observa o prof. Monod, essa repugnância não se baseia tanto em razões científicas reais, como na tendência antropocêntrica de considerar o universo destinado a gerar vida e finalmente o homem. “Devemos estar constantemente em guarda contra essa noção, esse poderoso sentimento de destino. A imanência é estranha à ciência moderna. O destino é escrito conforme e enquanto acontece, não antes... Se ele (nosso destino) foi único, como o próprio surgimento da vida pode ter sido, foi porque, antes que surgisse, as suas possibilidades de surgir eram quase inexistentes. O universo não estava grávido da vida, nem a biosfera grávida do homem. Nosso número apareceu no jogo de Monte Carlo. Surpreende que, como a pessoa que acabou de ganhar um milhão no cassino, devamos nos sentir estranhos e um pouco irreais?” (p. 137).

Paremos por um momento mais uma vez. Assim, de acordo com o prof. Monod, o “segredo da vida” deve ser encontrado, finalmente, no “jogo das forças cegas da natureza de Monte Carlo”. Mais uma vez, somos confrontados com a mesma pergunta decisiva: como pode a maravilhosa lógica e racionalidade dos sistemas vivos (que o próprio Monod tantas vezes destaca) ser explicada como o resultado puro e simples do acaso? Mesmo concedendo que a origem da vida possa ser explicada como uma ocorrência única, como a “absoluta coincidência” de um enorme número de cadeias independentes de eventos (7), ainda assim, em conjunto com o acaso, e como um pré-requisito da sua “realização”, precisamos admitir todo o determinismo das estruturas e propriedades físico-químicas – em uma palavra, toda a regularidade da natureza. Mais uma vez, somos levados de volta à pergunta: toda essa regularidade é uma natureza apenas estatística, e os eventos individuais estão sujeitos a um indeterminismo radical? Como já vimos, o próprio Monod parece hesitar em ir tão longe. Não porque ele esteja “relutante em admitir, como Einstein, que ‘Deus joga dados’” (p. 112). Pois, segundo a opinião do prof. Monod, Deus não parece necessário (ao invés do jogador de dados, basta introduzir uma roleta automática). A razão real dessa hesitação é provavelmente o fato de que Monod esteja ciente de que é preciso haver um “limite inferior” mesmo na hipótese do acaso, como o próprio Demócrito sabia. Na verdade, é impossível construir um “mundo-acaso” sem supor ao menos a distinção entre “vazio” e “átomo” e atribuir um mínimo de propriedades ao último. Sem esta regularidade básica, a “roleta da natureza” poderia não funcionar; mais do que isso, ela poderia nem sequer existir (8).

Assim, nos vemos diante da mesma pergunta que encontramos no começo. Como possivelmente se originam a ordem, o determinismo, a regularidade que encontramos em todos os níveis de organização do mundo material? O “puro e simples acaso” não é uma resposta, mas um mero “postulado”, que parece ser não menos repleto de contradições do que o postulado do “vitalismo” ou do “animismo”.


Notas

7. Não pretendemos considerar aqui o problema que surge do cálculo da probabilidade nessa conexão. Ele foi muitas vezes usado para “provar” a impossibilidade prática da vida surgindo como o resultado do puro acaso. Contudo, tais “provas” foram freqüentemente propostas de uma forma muito simplificada. (veja por exemplo Lecomte du Noüy, em seu livro bem conhecido “O Destino Humano”, e a sua severa crítica em G.G. Simpson: “This View of Life”, Harcourt, 1964, p. 218).

8. Um dos defensores de maior autoridade da Teoria Sintética, G.G. Simpson, no livro e na passagem citados na nota anterior, escreve: “Ninguém, ao menos certamente nenhum cientista, jamais supôs que qualquer evento natural ocorra inteiramente por acaso. O nosso universo, acreditamos, é um universo regido pela lei”. Poderia-se fazer uma consideração posterior a respeito das reais implicações da física quântica. Monod parece ver nela nada mais do que a afirmação de um indeterminismo radical, e conseqüentemente dos eventos de puro “acaso”. Mas só há isso realmente? Por exemplo, o princípio da exclusão de Pauli parece impor, no nível mesmo das partículas elementares, a idéia de um sistema físico como uma atividade estruturada, a partir do qual poderíamos chegar ao ponto de afirmar a existência da teleonomia no nível da própria física quântica. Tal afirmação pareceria, sem dúvidas, escandalosa para o prof. Monod – e, ao contrário, completamente óbvia para os antigos metafísicos. Não é porque eles eram “animistas”, mas porque, como tentamos mostrar, eles viam o todo do dinamismo natural (dos primeiros níveis de estruturação da matéria até o homem) como implicando necessariamente tanto a causalidade teleonômica quanto a eficiente (como aspectos complementares do mesmo dinamismo). Queremos expressar aqui nosso agradecimento ao prof. Errol E. Harris, da Northwestern University, pela sugestão que nos deu (sobre esse ponto da interpretação teleonômica da física quântica) em seu comunicado “Mechanism and Teleonomy” no Congresso Mundial de Filosofia em Varna (1973).

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte II

Segunda parte da tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf

II. Invariância e teleonomia

Como já sabemos, os seres vivos possuem dois tipos de macromoléculas essenciais: a) proteínas, responsáveis por quase todas as estruturas e atuações teleonômicas; b) ácidos nucleicos, responsáveis pela invariância genética. Segundo o prof. Monod, é principalmente a distinção do ponto de vista químico desses dois tipos de macromoléculas que se encontra na origem da distinção entre as propriedades teleonômicas e invariantes. Portanto, para provar a teoria mecanística da vida (isto é, para demonstrar que a invariância precede causalmente à teleonomia), Monod considera suficiente provar que nos seres vivos esteja presente um mecanismo para a síntese das proteínas características de cada espécie, que é confiada à ação dos ácidos nucleicos. Em outras palavras, basta mostrar que existe um mecanismo de invariância, que torna possível a existência e a reprodução das propriedades teleonômicas. De acordo com Monod, tal prova é fornecida pela “teoria molecular do código genético”, ora solidamente estabelecido, ao menos em seus pontos essenciais.

Não podemos entrar aqui nos detalhes técnicos da prova do prof. Monod. Iremos apenas mencionar o fato de que a teoria molecular do código genético pode na verdade mostrar como toda as “informações” necessárias à síntese dos diferentes aminoácidos, e por isso das diferentes proteínas, estão contidas na estrutura particular do ácido desoxirribonucleico (DNA) de cada célula viva. Além disso, afirma Monod, esse mecanismo de tradução das informações genéticas” (no qual o outro ácido nucleico, o ácido ribonucleico (RNA) cumpre também um papel importante) funciona somente na direção DNA –> proteína, e nunca vice-versa. Temos aqui, insiste o prof. Monod, um dos princípios fundamentais da biologia moderna, que não se pode pôr em questão. Com isso, fica demonstrado, conclui o autor, que a invariância (que é ligada à função do DNA) precede causalmente o surgimento das propriedades teleonômicas, não o contrário (contra a tese do “vitalismo” ou “animismo”).

Porém, temos realmente aqui uma demonstração conclusiva? Falando francamente, achamos que não. Em primeiro lugar, o princípio fundamental da irreversibilidade do processo da tradução das informações genéticas (o chamado “dogma de Watson”), sobre o qual se funda toda a tese, pode, no fim das contas, não ser tão assim tão inquestionável como parece para o prof. Monod. Conforme é bem sabido, H. Temin, da Universidade de Wisconsin, e seu cooperador Satoshi Mizutani mostraram (1970) que uma enzima específica (que é uma proteína) estimula a formação de DNA em vírus cancerígeno que possua apenas RNA. No mesmo ano, Spiegelman, em Londres, foi capaz de provar que o DNA não é sempre o ponto de partida no processo biossintético. Mesmo que estes fatos provavelmente não sejam suficientes para, no presente, colocar em questão o princípio da irreversibilidade, eles mostram ao menos o quão perigoso é fundar deduções de tamanha importância, como as feitas pelo prof. Monod, sobre uma teoria à qual se dá um valor dogmático que ela não pode possuir (como qualquer outra teoria científica).

Em segundo lugar, mesmo que o princípio da irreversibilidade fosse admitido como um dado inquestionável, esse princípio não é por si só suficiente para provar a tese mecanista. Na verdade, de modo a ter uma prova convincente, seria necessário também mostrar que a distinção entre a invariância e as propriedades teleonômicas, como propõe o prof. Monod, é uma distinção adequada do ponto de vista lógico. É especificamente sobre esse ponto que achamos ser necessário expressar nossas maiores ressalvas.

Conforme já destacamos mais de uma vez, segundo o prof. Monod essa distinção se baseia principalmente em considerações químicas, isto é, na diferença entre as proteínas (que são responsáveis por quase todas as estruturas teleonômicas) e os ácidos nucleicos (responsáveis pela invariância genética). Outra vez, somos confrontados aqui com uma distinção cartesiana muito clara. Mas aqui também a clareza é apenas aparente. É realmente verdadeiro que o mecanismo da transcrição das informações genéticas seja um mecanismo de pura invariância, sem teleonomia? Se a estrutura teleonômica é caracterizada pela presença de um “projeto”, não somos obrigados a admitir que o mecanismo genético é profundamente teleonômico? O próprio prof. Monod parece admitir isso implicitamente, quando escreve: “...devemos definir o projeto teleonômico essencial como consistindo na transmissão de geração em geração do conteúdo de invariância característico da espécie. Todas as estruturas, atuações e atividades contribuindo para o sucesso do projeto essencial serão a partir de então chamadas de ‘teleonômicas’” (p. 24). Temos, então, de acordo com o próprio autor, além do projeto teleonômico incluso na estrutura proteica dos seres vivos, um projeto teleonômico mais amplo (“o projeto teleonômico essencial”) que abrange todo o processo, o qual, começando pelo mecanismo de invariância (e incluindo a sua estrutura mesma), resulta na síntese de proteínas. Em outras palavras, mesmo o prof. Monod parece admitir que a chamada “invariância pura” do mecanismo tradutor está à serviço de um projeto teleonômico fundamental e específico. Tal interpretação aparenta ser confirmada por outras afirmações do biólogo francês. “Esse aparelho (isto é, o aparelho teleonômico), é inteiramente lógico, maravilhosamente racional e perfeitamente adaptado ao seu propósito: preservar e reproduzir a norma estrutural” (p. 30). Contudo, “preservar e reproduzir a norma estrutural”, segundo o prof. Monod, é a tarefa do mecanismo de invariância. Parece, portanto, que a distinção entre o aparelho teleonômico e o mecanismo de invariância não é uma distinção logicamente adequada. Isso parece confirmado pelas próprias palavras do prof. Monod, quando ele afirma: “(as proteínas são) responsáveis por quase todas as estruturas teleonômicas...” (p. 27). De acordo com a boa lógica, “quase todas” implica: “não absolutamente todas”. Onde, então, devemos encontrar a causa das outras propriedades teleonômicas? O próprio prof. Monod parece se esquecer de sua distinção nítida quando escreve: “Certas estruturas de DNA cumprem um papel que precisa ser considerado teleonômico” (p. 52, nota 1).

Fica visível, então, que a tentativa de deduzir teleonomia a partir da invariância não leva a resultados convincentes, pela própria razão de que a teleonomia aparenta estar presente e ativa dentro dos próprios mecanismos invariantes “rigidamente determinísticos”. Mais ainda; a teleonomia parece transcender esses mecanismos, a partir dos quais ela supostamente é gerada: “...em um sentido muito real o organismo efetivamente transcende as leis físicas – mesmo que obedecendo-os – assim alcançando de uma só vez a busca e a realização do seu próprio fim” (p. 81). “Leis físicas”: não são precisamente essas leis físicas (e químicas) e apenas essas as responsáveis pelo determinismo da invariância? Como então poderia o mecanismo de invariância ser a causa de uma estrutura (o organismo) que transcende essas leis? A pergunta é tanto mais importante porque, como veremos adiante, o prof. Monod não admite uma diferença qualitativa entre os distintos níveis de organização das estruturas materiais.

Com as observações anteriores, não pretendemos ter provado, contra o prof. Monod, que a teleonomia não pode ser reduzida à invariância ou dela deduzida. Tal conclusão seria, neste nível de considerações, tão pouco justificada quanto as conclusões do autor de “O Acaso e a Necessidade”, na nossa opinião. Nós quisemos apenas destacar o fato de que o problema das relações entre a teleonomia e a invariância não pode ser resolvido no nível da epistemologia do prof. Monod. O “postulado da objetividade”, sobre o qual o cientista francês funda todas as suas considerações, não nos permite, na verdade, ir além do reconhecimento “fenomenológico” de que a teleonomia e a invariância estão presentes e ativas na estrutura dos seres vivos. Para resolver a “contradição epistemológica” que aparenta surgir da presença dessas duas propriedades, parece haver a necessidade de algo diferente de uma mera “prova científica”. Isto porque – como pensamos ter mostrado suficientemente – no fim de tal “prova” somos confrontados com a mesma pergunta do princípio. Na nossa opinião, a questão básica (a ser considerada antes de qualquer outra) é averiguar se o determinismo do mecanismo invariante e da teleonomia são na realidade (supondo que sejam propriedades irredutíveis) mutuamente exclusivos. Mais explicitamente, a “Filosofia Natural” exige que nós vejamos uma oposição fundamental entre o “mecanismo” e o “projeto” (ou a “finalidade”), de modo que devamos ser obrigados a escolher um como o fundamento ou a causa do outro?

É um fato inegável que a ciência moderna, da Renascença até hoje, progrediu nesta direção de pensamento. A consideração do finalismo, da teleologia, foi sempre interditada pelo cientista. O ideal do “conhecimento objetivo”, como compreendido dentro da estrutura da nova ciência experimental-dedutiva, exige que pensemos apenas nos termos do mecanismo determinístico. De partida, o cientista não nega a finalidade: ele apenas a deixa para a consideração do metafísico. É somente n’um desenvolvimento posterior (que marca um novo passo, mais radical em direção ao “cientificismo”) que o finalismo e a metafísica são conjuntamente condenados como um tipo de obscurantismo intelectual. Uma vez destruído o “antigo pacto” animístico (como Monod o chama), o homem é finalmente capaz de se converter da “Escuridão” para o “Reino” do verdadeiro conhecimento científico, o único conhecimento “tout-court”. Depois de tal “conversão”, o único fato final e definitivo que se impõe sobre o cientista é o determinismo rígido – e o acaso, como veremos imediatamente.

Sem dúvida, havia muitos elementos “animísticos” dentro da antiga visão finalística da metafísica aristotélico-escolástica. Apesar disso, parece-nos que no necessário e meritório processo de purificação dessas relíquias do animismo, promovido pelo pensamento moderno, perdeu-se também o sentido genuíno, profundo e de forma alguma “animístico” que o finalismo possuía na antiga tradição filosófica. Na verdade, o “finalismo” (no sentido original deste termo filosófico) não implicava, para Aristóteles ou Tomás de Aquino, a pressuposição da existência de um “plano” ou “projeto” na natureza. A causalidade final era considerada como o aspecto complementar da causalidade eficiente, indissoluvelmente ligada a esta em todos os processos da geração natural. Em outras palavras, em qualquer processo causal, no qual uma causa determinada produz um efeito determinado, temos o aspecto de produção (causalidade eficiente) e junto a ele o aspecto de produção determinada: a causa é vista como dinamicamente orientada à produção desse efeito determinado no lugar de outro. E esse segundo aspecto é precisamente o que se quer dizer por “causalidade final”. Claramente se conclui com isso que na antiga tradição aristotélico-escolástica seria contraditório opor “processo determinado” a “processo finalístico”. Quando a ciência moderna fala de “afinidade” química, de uma tendência que existe em determinados elementos para formar compostos determinados, ela alega estar falando apenas da causalidade final. Na verdade, Aristóteles responderia que essa alegação é mera insensatez, pois o próprio conceito de afinidade, de reação determinada, inclui a causalidade final como o termo complementar necessário da causalidade eficiente.

É importante notar que não emerge na estrutura da filosofia aristotélico-escolástica o conceito de “plano”, “projeto”, ao menos não logicamente, exceto em um segundo momento, propriamente quando a causalidade final dos agentes naturais únicos é vista sinteticamente, como um inteiro movimento ordenado de todo o mundo físico (finalidade hierárquica). É apenas através dessa consideração do dinamismo do mundo como um todo que Aristóteles e Tomás de Aquino chegam à conclusão de que há um “plano”, uma “finalidade cósmica” em andamento no universo. E, finalmente, que deve haver um Ordenador, uma Causa final de todo esse finalismo na natureza.

Essas observações podem servir talvez para mostrar que a visão finalística tradicional não era, no fim das contas, tão francamente animística e antropocêntrica, como o prof. Monod parece inclinado a supor. Mais uma vez, não pretendemos ter dado uma resposta para opor a opinião do cientista francês. Nossa única intenção tem sido destacar o fato de que existem problemas posteriores, que não podem ser ignorados, se se quiser chegar a conclusões verdadeiras. Este é o caso particularmente no nosso presente problema: se o determinismo (“necessidade”) e a teleonomia devem ser considerados propriedades igualmente originais ou não. Tal problema, digamos mais uma vez, não parece ter solução dentro da perspectiva metodológica à qual adere o prof. Monod.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte I

Tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf


“...Estes átomos movem-se em um vazio infinito, separados um do outro e diferindo na forma, tamanho, posição e arranjo; quando se alcançam eles colidem, e alguns são abalados em uma direção qualquer fortuita, enquanto outros, entrelaçando-se entre si segundo a congruência de suas formas, posições e arranjos, permanecem unidos e assim afetam a geração dos corpos compostos”.
Estas palavras, escritas pelo famoso comentador de Aristóteles, Simplício (1), dão um resumo da visão atomística de Demócrito – uma visão que, embora com mais de 2400 anos de idade, não parou de exercer uma profunda influência no pensamento moderno, desde o Renascimento até hoje.

É precisamente ao atomismo de Demócrito que Jacques Monod explicitamente se refere em seu livro “Le hasard et la nécessité” (“O Acaso e a Necessidade”), Editions du Seuil, Paris, 1970 (2). O vencedor do prêmio Nobel (1965) junto de A. Lwoff e F. Jacob por seu trabalho de pesquisa sobre o código genético, Monod tomou para si a “missão” de divulgar uma interpretação mecanista rígida do fenômeno da vida entre os leigos, començando assim um acalorado debate, que não parece ter arrefecido.

Neste artigo, não pretendemos entrar nos detalhes da exposição estritamente científica dada em “O Acaso e a Necessidade” sobre as idéias e resultados básicos da biologia molecular. Como o próprio Monod admite, “Essa parte estritamente biológica não é original em nenhum sentido: não fiz mais do que resumir o que são consideradas idéias estabelecidas na ciência contemporânea” (p. 13). Mesmo que essa “tentativa de extrair a quintessência da teoria molecular do código” (ibid.) mereça toda nossa admiração por suas qualidades de clareza e lucidez, a real originalidade do livro, o seu verdadeiro interesse, consiste nas “generalizações ideológicas” que Monod “se aventurou a deduzir” (ibid.) dos fatos científicos à disposição, e que constituem (como o subtítulo de “O Acaso e a Necessidade” indica explicitamente) um “ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna”.

Nosso propósito no artigo presente é colocar em foco os problemas epistemológicos que surgem dessa “filosofia natural” do prof. Monod. No prefácio do seu livro, o biólogo francês afirma: “é claro que as generalizações ideológicas que me aventurei a deduzir dela (isto é, da teoria molecular do código) são minha única responsabilidade. Mas eu creio que, onde elas não excedem os limites da epistemologia, essas interpretações seriam aceitas pela maior parte dos biólogos modernos” (ibid.). Ainda, parece-nos que, se há um problema básico levantado pelo livro de Monod, ele se dá precisamente no nível da epistemologia. Mais explicitamente, a primeira coisa a ser considerada é o princípio epistemológico segundo o qual o conhecimento científico objetivo é considerado o único tipo de conhecimento verdadeiro (Monod o chama mais resumidamente de “postulado da objetividade”). Afirmar, como o faz Monod, que a maior parte dos biólogos modernos concordariam com tal princípio, não parece resolver, e sim expandir o problema. Esse “postulado da objetividade”, supostamente reconhecido pela maioria dos biólogos, é realmente um princípio epistemológico válido? Além disso, em que sentido e até que ponto ele pode ser usado para construir uma “Filosofia Natural” da biologia moderna?


I. O “postulado da objetividade” e as propriedades dos seres vivos

Entre as propriedades dos seres vivos, duas são, de acordo com o prof. Monod, particularmente dignas de consideração. A primeira consiste no fato de que os seres vivos são “objetos dotados de um propósito ou projeto, o qual eles ao mesmo tempo mostram em sua estrutura e executam através de suas atuações” (p. 20). Monod chama esta propriedade de “teleonomia”, um novo nome cunhado (ao que parece) para evitar as conotações “metafísicas” do antigo termo “teleologia” ou do ainda mais antigo “finalidade”. A segunda propriedade é representada pelo fato de que os seres vivos são “máquinas auto-reprodutoras”, através da “sua habilidade em reproduzir e transmitir ne varietur a informação correspondente à sua própria estrutura” (pp. 22-23). Monod chama esta propriedade de “reprodução invariante” ou, mais sucintamente, “invariância”.

De acordo com o biólogo francês, é “metodologicamente indispensável manter uma distinção” entre essas duas propriedades. Uma primeira razão para tal distinção é que “podemos pelo menos imaginar objetos capazes da reprodução invariante, mas desprovidos de qualquer aparelho teleonômico”. (Monod dá como exemplo as estruturas cristalinas, embora ele próprio admita que temos aí um “nível de complexidade... muito menor do que o de todos os organismos vivos conhecidos”). Uma segunda razão é representada pelo fato de que “das duas classes básicas de macromoléculas biológicas, uma, a das proteínas, é responsável por quase todas as estruturas e atuações teleonômicas; enquanto a invariância genética está ligada exclusivamente à outra classe, a dos ácidos nucleicos”. Finalmente, “essa distinção é assumida, explicitamente ou não, em todas as teorias, em todas as construções ideológicas (religiosas, científicas ou filosóficas) pertencentes à biosfera e à sua relação com o resto do universo” (p.27).

Ora, a existência e a distinção dessas duas propriedades constitui para a biologia, de acordo com Monod, “uma flagrante contradição epistemológica” (p. 30). Na verdade, de um lado, “a pedra angular do método científico é o postulado de que a natureza é objetiva – em outras palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser atingido interpretando-se os fenômenos pelas causas finais – isto é, pelo “propósito” (ibid.). Esse postulado, pela mesma razão que é um "postulado puro”, é impossível de ser demonstrado. “Pois é obviamente impossível – concede Monod – imaginar um experimento que prove a não-existência de um propósito, de um fim buscado, em qualquer lugar da natureza.” (p. 31). E mesmo assim, esse “postulado da objetividade é consubstancial com a ciência e tem guiado todo o seu prodigioso desenvolvimento por três séculos. É impossível escapar dele, mesmo que provisoriamentem ou em uma área limitada, sem partir do domínio da ciência em si” (ibid.). Por outro lado, entretanto, é a própria objetividade da ciência – acrescenta imediatamente o prof. Monod – que “nos obriga a reconhecer o caráter teleonômico dos organismos vivos, a admitir que em sua estrutura e atuação eles decidem sobre um propósito e o perseguem” (ibid.).

De acordo com o autor, qualquer concepção de vida (científica, filosófica ou religiosa) supõe necessariamente uma solução dessa “contradição epistemológica”. Mais concretamente, existe – de acordo com Monod – duas grandes classes de soluções. Uma primeira é representada pelas soluções que o autor classifica sob o título de “vitalismo” ou “animismo”, que tentam resolver a contradição sacrificando (conscientemente ou não) o postulado da objetividade, e atribuindo uma função fundamental à teleonomia. Em outras palavras, todos os fenômenos da vida deveriam ser considerados como guiados por um “princípio teleonômico”, do qual esses fenômenos seriam somente a manifestação. O prof. Monod vê em tal posição uma sobrevivência da “ilusão antropocêntrica”, que hoje assume uma nova forma: o homem visto como o “herdeiro natural, aguardado desde tempos imemoriais” (p. 47) do universo inteiro na evolução (3).

Uma segunda classe de soluções, ao contrário, sustenta o postulado da objetividade mesmo no caso dos seres vivos, afirmando que o mecanismo determinista (a “invariância”) precede causalmente a teleonomia. A esta classe pertence a “teoria seletiva (ou sintética)”, da qual o próprio Monod é um adepto. De acordo com o biólogo francês, só essa teoria é que permite uma solução satisfatória ao problema. A parte central do “O Acaso e a Necessidade” contém a “prova” dessa tese, fundada nos resultados da biologia molecular, à qual Monod deu uma contribuição relevante.

Antes de considerar o significado e o valor de tal “prova”, gostaríamos de fazer algumas observações sobre o “postulado da objetividade”, que Monod com tanto vigor afirma ser o fundamento da epistemologia científica moderna.

Primeiro de tudo, observemos o fato de que no fim do primeiro capítulo do “O Acaso e a Necessidade” Monod (como já vimos) reconhece que é o próprio postulado da objetividade que nos obriga a admitir a teleonomia como uma propriedade objetiva dos seres vivos. Até esse ponto, portanto (isto é, dado o fato de que não possuímos ainda uma demonstração da prioridade causal de uma das duas propriedades à outra), devemos supor que a invariância e a teleonomia estão ainda no mesmo nível. Ora, do capítulo 3 em diante o prof. Monod começa a construir a sua “prova” com base na prioridade causal da invariância em relação à teleonomia. O capítulo 2 é um tipo de “intermezzo ideológico”, sendo consagrado à consideração dos vários tipos de “vitalismos” e “animismos”, com freqüência criticados de forma muito severa (4). Essa crítica acentuada (já implícita no uso do termo “animismo”), que precede a “prova” da tese oposta, embora no fim dependente dela, parece-nos metodologicamente injustificável nesse ponto do livro.

Essa não é (na nossa opinião) uma mera observação pedante. Na verdade, apesar de todas as afirmações em contrário feitas pelo prof. Monod, a teleonomia não possui plena cidadania no domínio de sua epistemologia. A afirmação de Monod – segundo a qual o método científico funda-se na “negação sistemática de que o ‘verdadeiro’ conhecimento possa ser atingido interpretando-se os fenômenos pelas causas finais, isto é, pelo ‘propósito’” (p.30) – é uma afirmação precisa demais para permitir qualquer exceção. Se, então, imediatamente em seguida, o autor admite o caráter objetivo da teleonomia, esta admissão não deveria nos enganar. Nós na verdade nos confrontamos aqui com uma concessão que nos coloca diante de uma contradição epistemológica. Ora, na ciência “cartesiana” do prof. Monod não há espaço para contradições reais e definitivas. Não podemos, portanto, nem a priori ter certeza de que tal contradição será superada e, mais do que isso (o que é ainda mais importante), que ela será superada ao se mostrar que a teleonomia não é uma propriedade original, completamente independente, mas que, ao contrário, ela se origina de um mecanismo determinístico de invariância, e, finalmente, do mero jogo do acaso. Na verdade, apenas “o acaso e a necessidade” possuem um direito de cidadania real e definitivo na epistemologia científica, ao menos de acordo com o prof. Monod. Isso significa que, mesmo antes de dar a sua demonstração, o autor está certo de que a teleonomia – pelo menos no sentido de um finalismo independente, original – não pode existir. É só por essa razão que o prof. Monod se sente autorizado a criticar o “vitalismo” e o “animismo” logo após o capítulo 2. Assim, as considerações biológicas que se seguem não são uma “prova”, mas antes uma “contra-prova”, uma “confirmação” do que já foi necessariamente suposto no postulado da objetividade.

Consideremos agora esse postulado. O seu significado é (como o próprio Monod explica) “que a confrontação sistemática da lógica e da experiência é a fonte única do verdadeiro conhecimento” (p. 154). Mas o que se quer dizer aqui por “logica” e “experiência”? (5). Obviamente, se a “lógica” devesse ser tomada como a pura coerência formal entre as proposições que o cientista estabelece e as deduções que ele faz, e se a “experiência” devesse indicar nada mais do que a mera totalidade das sensações e sentimentos, a “confrontação sistemática da lógica e da experiência” se tornaria impossível. Essa “confrontação”, na verdade, só é viável quando a “experiência” inclui tudo do qual podemos ter consciência (como os nossos processos mentais de entendimento, juízo e decisão) e a “lógica” implica também a lógica construtiva que consiste em formular hipóteses a partir da experiência e em verificá-las retornando à experiência. Se é esse o caso, o que então restará da suposta objetividade pura da ciência? “O que Monod não parece adequadamente advertir é o papel do sujeito humano em propor e testar o que é ou pode ser objetivamente verdadeiro. Afinal de contas, os sujeitos humanos conscientes é que construíram a visão de mundo científica fazendo perguntas sobre o mundo, formulando hipóteses sobre ele e julgando que haja bases para se pensar que cada hipótese assim formulada seja provavelmente verdadeira ou provavelmente falsa” (6).

Na confrontação sistemática da lógica e da experiência, o fato de que os elementos subjetivos estejam indissoluvelmente ligados com os objetivos é confirmado por todo o livro do prof. Monod, como tentaremos mostrar. Aqui basta oferecer como evidência apenas um ponto, que no entanto parece ser decisivo. O princípio da objetividade, como já sabemos, de acordo com o prof. Monod é um “mero postulado”. Mas, então, como ele pode ser justificado? O autor responde a esta pergunta no final do livro. “É óbvio que a colocação do princípio da objetividade como a condição do verdadeiro conhecimento constitui uma escolha ética e não um julgamento atingido pelo conhecimento, pois, segundo os próprios termos do postulado, não pode ter havido nenhum conhecimento ‘verdadeiro’ antes dessa escolha arbitrária. Para estabelecer a norma para o conhecimento o princípio da objetividade define um valor: este valor é o próprio conhecimento objetivo. Assentir ao princípio da objetividade é, assim, afirmar a proposição básica de um sistema ético: a ética do conhecimento” (p. 163).

Tomaremos novamente essa afirmação mais adiante. Agora, será suficiente observar que ela mostra de forma eloqüente o quão ambíguo é o termo “objetivo”, do qual Monod faz uso tão extenso, contrastando-o com o “subjetivismo” e o “antropomorfismo” das posições que ele qualifica como “animistas” ou “vitalistas”. Na verdade, o que é mais “subjetivo”, mais “antropomórfico” do que fazer a objetividade da ciência depender de uma escolha ética? No fim das contas, a distinção “cartesiana” entre o “objetivo” e o “subjetivo” torna-se bem menos “clara” e “distinta” do que a princípio indicava.

A nós parece que a mesma observação se aplica com relação à distinção entre as propriedades teleonômicas e invariantes, como tentaremos mostrar agora.



Notas

1. Simplicius de Caelo 242, 21. Cfr. G.S. Kirk e J.E. Raven, “The Presocratic Philosophers”, Cambridge University Press, 1969, p. 419.

2. Este livro, agora traduzido nas principais línguas, apareceu recentemente também na versão japonesa (“Güzen to hiteuzen”, Misuzu Shobo, 1972). Ao citar o livro de Monod no presente artigo, estaremos nos referindo à tradução inglesa: “Chance and Necessity” (Transl. Austryn Wainhouse), Collins, 1972, indicando a página correspondente entre parênteses.

3. O próprio Monod admite que o significado que ele dá aos termos “vitalismo” e “animismo” é diferente do que significa na ciência e filosofia contemporâneas. Mais do que no caso do “vitalismo” (que inclui – além do vitalismo científico de Driesch e Polany – também o “metafísico” de Bergson), tal se dá com o “animismo”, que segundo Monod inclui “visões de mundo” tão contrastantes como as de Teilhard de Chardin e a do Materialismo Dialético.

4. Particularmente o “animismo” de Teilhard (pp. 39-40) e o do Materialismo Dialético (pp. 40-47).

5. Ver as penetrantes observações feitas por Hugo Meynell em referência a isso, “Monod’s Muddle”, The Month, julho de 1973, pp. 241-243, que nos deram a deixa para nossas considerações aqui.
6. Ibid., p. 241.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XVII

Tradução do trecho final do sexto capítulo: VI – No Princípio

Se a singularidade inicial é de fato uma imagem do Centro, é n’um certo sentido uma imagem global ou “macrocósmica”, pois ela evidentemente remete ao cosmo como um todo. Entretanto, deveria haver também reflexos locais ou “microcósmicos” do mesmo Centro – reflexos “aqui e agora” – como o próprio símbolo do círculo sugere pelo fato de que o centro é repetido nas intersecções dos raios com a circunferência. Assim, surge a pergunta sobre se a física também versa sobre essas manifestações “localizadas” do Centro transcendente. Ora, eu argumento que sim, e que essas “manifestações microcósmicas” na verdade não são nada mais do que os casos de colapso do vetor de estado.

Desde as nossas considerações anteriores sabemos que esse colapso está associado a uma transição ontológica do plano físico ao plano corpóreo, e portanto associado a uma determinada passagem da potência à manifestação. Por isso, o colapso deve ser atribuído a uma ação da natura naturans, o princípio “naturante” ou “que dá a forma”. Mas sabemos que a natura naturans age “radialmente”, e, assim, através da causação “vertical”. Normalmente, a ação da natura naturans é certamente mascarada, por assim dizer, pelos modos secundários de causação, que operam “no tempo”, continuamente. O que é especial a respeito do colapso do vetor de estado, por outro lado, é a sua instantaneidade, que torna o fenômeno inexplicável em termos de causalidade “tangencial”. Em um certo sentido, o colapso ocorre “fora do tempo”, e por isso constitui não um fenômeno temporal, mas realmente “radial”. Poderíamos ir mais longe e dizer que, por sua irredutível descontinuidade, o colapso de um vetor de estado “torna visível” uma ação da natura naturans. Eu afirmo que a instantaneidade do colapso manifesta a “instantaneidade” do verdadeiro Princípio e espelha a “pontualidade” do próprio Centro metacósmico.

Falando desta forma, certamente me expresso em termos metafóricos. Deve-se entender, em primeiro lugar, que o chamado Centro metacósmico e o verdadeiro Princípio se referem ao ato criativo pelo qual o universo é trazido à existência. E quando falamos da “pontualidade” do Centro, ou da “instantaneidade” do Princípio, estamos afirmando a unicidade deste ato, ao encontro da doutrina bíblica: Qui vivit in aeternum creavit omnia simul (“Aquele que vive eternamente criou todas as coisas de uma só vez”). O ato de Deus é único e indivisível; mas este Ato, embora único e contínuo, faz surgir todas as coisas: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez”. Portanto, o universo inteiro, pleno de suas imensas multiplicidades, na verdade não constitui nada senão o efeito contínuo daquele Ato “instantâneo”.

Porém, isso não deve significar que o universo foi criado “há muito tempo” e que agora permanece como um “efeito contínuo”. Em outras palavras, precisamos nos lembrar, mais uma vez, que o Princípio não reside no passado, e que, n’um certo sentido, “Deus cria o mundo e todas as coisas neste presente agora”, para colocar nas palavras do Mestre Eckhart. [15]

Mas não é preciso dizer que em geral nos esquecemos desse fato ontológico crucial. Admitindo ou não que o universo foi criado, de qualquer forma nós tomamos como certo que as entidades físicas ou corpóreas existem e operam simplesmente por si mesmas. Ou, na melhor das hipóteses, nos tornamos holísticos, e atribuímos auto-existência não a entidades individuais, e sim ao cosmo concebido como um todo. Mas eu afirmo que esta visão também está errada. O fato é que o cosmo, em sua imensidão quadridimensional, não é mais auto-subsistente do que um único elétron ou um grão de areia sequer.

Deus disse a Moisés: “Ego sum qui sum” (Êxodo 3:14). E isso significa que na realidade o “ser” pertence apenas a Deus. Enquanto se trata dos existentes cósmicos, descobrimos que eles estão em um estado de fluxo perpétuo, uma genesis ou um “vir a ser” sem fim, que poderia ser chamado mais propriamente de uma busca para ser, ao invés do ser em si mesmo. E, contudo, essas “entidades” existem: pois elas “participam do ser”, como dizem os platônicos. Ou como disse Santo Agostinho de forma muito bela: “são, por que procedem de Ti, mas não são, porque não são aquilo que Tu és.” [16].

Ainda, segue o fato de que nós geralmente nos prendemos à ilusão da auto-suficiência cósmica o máximo que podemos, e de que é necessário, como uma regra, um fenômeno preternatural de algum tipo para nos abalar para fora de nossa complacência ontológica costumeira. Ora, no nível da física, o colapso de um vetor de estado de fato constitui um evento preternatural; pois, como vimos, esse colapso exibe uma ação da natura naturans. O prodígio do colapso do vetor de estado está no fato de que de uma certa forma ele “detecta” a ação radial da natura naturans, e por isso, se preferir, “apanha” o próprio ato criativo. O ato cosmogenético, em outras palavras, pode de um certo modo ser observado “aqui e agora” através de uma transição do plano sub-existencial para o plano corpóreo, porque a transição – que é necessariamente instantânea – não pode ser atribuída a nenhuma causa secundária. O que encaramos aqui é um exemplo de causação “vertical”, o modo que age “fora” do tempo e que deriva diretamente do Centro metacósmico. Em uma palavra, testemunhamos “um ato de Deus”. Devemos, contudo, nos lembrar de que Deus age “uma só vez”, como o Mestre Eckhart ressalta; o que significa dizer que a multiplicidade pertence não à Causa transcendente, mas precisamente aos efeitos criados. Mais uma vez: Qui vivit in aeternum creavit omnia simul. E, assim, o que em um certo sentido testemunhamos não é simplesmente “um ato de Deus”, mas de fato “o Ato de Deus”: o único e indivisível Ato de criação. E, finalmente, aí está o milagre do colapso do vetor de estado. [17]



Notas

15. Meister Eckhart (C. de B. Evans, trad. Londres: Watkins, 1924), vol I, p. 209. Podemos acrescentar que o “presente agora” do Mestre Eckhart não é nada mais do que o nunc stans da Escolástica (“o agora que permanece”). De acordo com a doutrina metafísica tradicional, o tempo não é feito de “momentos presentes” – assim como a linha euclideana não é feita de pontos. Na realidade, há somente um “presente agora”, cujo tempo é na verdade uma “imagem em movimento”, como diz Platão. Neste assunto profundo e difícil, remeto especialmente às referências de Coomaraswamy e Nasr citadas na nota 10. Veja também Cosmos and Transcendence, op. cit., cap. 3, onde eu tratei dessa questão com alguma profundidade.

16. Confissões, 7:11.

17. Para prevenir uma possível má compreensão: não estou sugerindo, certamente, que o físico constitui o nihil “a partir do qual” Deus criou o mundo. O simples fato de que os sistemas físicos são definidos pela especificação (e, conseqüentemente, pressupõem o corpóreo) basta para deixar de lado essa tese.