quinta-feira, 10 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XV

Tradução de trechos do sexto capítulo: VI – No Princípio



Uma das maiores realizações da física contemporânea é a descoberta de que o universo nem “sempre” existiu. Estou me referindo, é claro, à chamada teoria do Big Bang: a famosa doutrina que afirma (grosso modo) que o universo nasceu há cerca de quinze bilhões de anos em uma estupenda explosão.
Mas por que, em primeiro lugar, devemos nos preocupar com a teoria do Big Bang neste ponto? Ou para ser um pouco mais específico: o fato do universo não ter “sempre” existido tem alguma influência na teoria quântica e no seu enigma central, o colapso do vetor de estado? Eu sustento que sim, embora admita que a conexão esteja longe de ser óbvia.

(...)

Não é preciso, contudo, remetermo-nos à física mais recente para perceber que o universo não “começou” em algum ponto no tempo. O que, no fim das contas, significa “começar”? Falamos de um começo com referência a um ser vivo, a uma entidade social ou a um artefato, por exemplo, querendo dizer com isso que a entidade em questão veio a existir em algum tempo específico – não instantaneamente, é claro, mas de uma maneira mais ou menos “localizada”. Desta forma, dizer que algo “começou” em um dado tempo t só pode significar que existe um “pequeno” número positivo ε tal que, no tempo t - ε, a coisa em questão não existia, enquanto em t + ε ela existia. O que “pequeno” significa não pode, é claro, ser especificado de uma só vez; depende evidentemente do tipo de coisa que estamos falando, seja a formação de uma molécula, o nascimento de um ser vivo ou de uma nação, ou a formação de uma estrela. Por outro lado, em cada contexto particular, a ordem da magnitude do ε estipulado é muito bem compreendida, e pode variar de um microsegundo a um milhão de anos.
De todo modo, o conceito de começo implica assim uma referência ao passado: a um tempo no qual a coisa em questão ainda não existia. E esta é justamente a razão porque a noção não pode ser aplicada ao universo como um todo. Pois, com efeito, dizer que o universo “começou” é supor que havia um tempo em que o universo não existia. Mas isso é absurdo, visto que o tempo se refere a eventos, e portanto a algo que se dá dentro do universo. Nas palavras de Santo Agostinho: “Vejam eles que sem a criatura não pode haver tempo, e que parem de falar coisas sem sentido” [2]

Enquanto isso, parece que a maior parte dos defensores do Big Bang continua percebendo esse acontecimento estipulado como “o nascimento do universo”. Assim, esse “nascimento” é concebido como um evento – na verdade, muito semelhante à explosão de uma bombinha. Parecem não notar que esta noção implica, primeiro, a idéia de um espaço metacósmico, e segundo, a idéia de um tempo metacósmico, que, além disso, se une ao tempo cósmico no momento do Big Bang. Mas não é preciso dizer que esse espaço metacósmico e esse tempo metacósmico não existem em lugar nenhum, exceto na nossa imaginação; e, por conseqüência, o mesmo ocorre com o chamado Big Bang.

***

Entretanto, dificilmente podemos negar que os fatos científicos relacionados ao universo primitivo realmente nos fazem lembrar da idéia da criação. Quando um grande cientista pode discursar sobre “Os Três Primeiros Minutos” – sobre o que mais pensamos? Não é de se admirar, portanto, que muitos tenham passado a perceber a justificação da hipótese do Big Bang como a “prova positiva” de que o mundo foi na verdade criado por Deus há tantos bilhões de anos. Muitos sacerdotes compreensivelmente proclamaram essa crença, e mesmo uma figura conservadora e cautelosa como o Papa Pio XII disse algo parecido em um discurso diante da Pontífice Academia das Ciências em 1951. Ao mesmo tempo, pelo jeito também em razão dessa conexão aparentemente bíblica, os ateus e panteístas de várias estirpes ficaram visivelmente perturbados pela descoberta do Big Bang e não poucos se opuseram à teoria com unhas e dentes. Além disso, aos que com tanto gosto imaginaram que praticamente tudo possa ser explicado apenas pela “matéria”, deve ter sido um grande choque descobrir que a própria matéria passou a existir há alguns bilhões de anos através de uma explosão inescrutável. Como colocou o astrônomo Robert Jastrow: “Para o cientista que viveu com sua fé no poder da razão, a história termina como um pesadelo. Ele escalou as montanhas da ignorância; está a ponto de conquistar o mais alto pico; e assim que ele vence a última rocha, é recebido por um bando de teólogos que já estavam sentando lá há séculos.” [3]

Porém, uma dificuldade permanece após termos superados “a última rocha”: é preciso ainda entender o que exatamente os teólogos – especialmente os que “já estavam sentando lá há séculos” – têm a dizer da criação. Agora o ponto crucial é este: “Além de toda e qualquer dúvida, o mundo não foi feito no tempo, mas com o tempo” [4]. Por isso, o ato da criação não pode se localizar no tempo. Não podemos dizer, por exemplo, que o mundo foi criado quinze bilhões de anos atrás – ou, a propósito, seis mil anos atrás, como alguns crentes se habituaram a pensar. Nem podemos sequer dizer que o ato da criação aconteceu “antes que o mundo começasse” – porque, em primeiro lugar, o mundo, estritamente falando, não “começou” de forma alguma. Somos forçados a admitir que o fluxo do tempo não possui nem um começo temporal nem um fim temporal – o que significa que os verdadeiros limites do tempo não estão no tempo [5]. Assim, o contínuo temporal necessariamente possui a característica de um segmento ou intervalo aberto de linha, cujas extremidades foram excluídas. E isso significa que n’um certo sentido os gregos enfim estavam certos quando falavam do universo “sem fim”; mas os cristãos também acertaram quando insistiram que o mundo foi criado por Deus.

Está escrito que Deus criou “no princípio”; e não se pode negar que, desde os tempos bíblicos até os dias de hoje, tanto os crentes quanto os descrentes compreenderam essas palavras n’um sentido temporal. Nem essa forma de conceber a questão está totalmente errada; podemos dizer então que o texto serve como um mito ao expressar uma verdade difícil de uma forma adequadamente concreta. Mas durante todo esse tempo também houve quem interpretasse o “in principio” bíblico n’um sentido metafórico, o qual se encontra de fato “além de toda e qualquer dúvida”.

***

Passamos a entender que, estritamente falando, não há um “primeiro momento do tempo” – pois o verdadeiro começo reside “fora” do cosmos, e, portanto, além da seqüência temporal. O tempo “começa” na eternidade. E é desnecessário dizer que esse “começo” não se encontra ao alcance da ciência.

Mas há de fato um universo primitivo; e, no fim das contas, realmente não faz sentido falar dos “três primeiros minutos” – assim como não faz sentido falar da extensão de um intervalo aberto. E, ademais, esse universo primitivo é acessível ao físico. O cientista é capaz, em outras palavras, de investigar o universo retroativamente, direto na conflagração resplandescente da bola de fogo primordial; mas, ao fazê-lo, ele se depara com um limite invencível. Supondo que as equações da relatividade geral mantenham sua validez por toda essa expansão de gravidade quase infinita, tal limite toma a forma de uma singularidade inicial, cuja inevitabilidade foi demonstrada por Hawking e Penrose. Mas e se, além de um certo ponto, cai a teoria “clássica” – como ela de fato deve, visto que os efeitos quânticos são obrigados a entrar em jogo –, então o limite pode se manifestar de alguma outra forma. Poderia acontecer, por exemplo, do “problema do valor inicial” resultante não estar sendo bem colocado [6]; mas, de qualquer forma, se espera que o processo de extrapolação retroativa no tempo deva mais cedo ou mais tarde chegar a um ponto de parada[7]. Não que cheguemos eventualmente a um estado do universo além do qual não possamos prosseguir; pois todo estado atual evidentemente tem um passado e por isso pode ser traçado. Não há na realidade uma coisa como um estado primeiro ou inicial do universo. Assim, o que no fim limita a nossa extrapolação retroativa não é um estado inicial, mas um limite transcendente; e este limite é que é o Começo.

Porém, é claro, não n’um sentido temporal. O universo na verdade não possui começo temporal – não um começo no sentido comum – como eu disse. Ainda assim, ele possui um Começo – um começo ontológico, pode-se dizer. E este Começo não está no passado; pois o que está no passado está ipso facto situado dentro da seqüência temporal. Nem mesmo se pode dizer que o Começo se encontra mais próximo do universo primordial do que o presente, pois, considerando que ele não reside dentro do contínuo espaço-temporal, o Começo não é na verdade separado de nenhum ponto por um intervalo espacial ou temporal, seja longo ou curto. Assim, ele é, de uma certa forma, “presente” a todo “aqui” e “agora” empíricos – mas não em um sentido empírico, é claro.

O Começo pode então ser concebido como o centro de um círculo simbólico, cuja circunferência represente o universo espaço-temporal em sua totalidade quadridimensional. Os raios assim figuram o que se pode chamar da direção “vertical”, que corresponde não ao espaço-temporal, mas às relações ontológicas. Eles representam por isso uma “dimensão” negligenciada por quem trata o mundo espaço-temporal como a soma total da realidade. Obviamente, não há espaço para os “raios verticais” na imagem reducionista do mundo; porém, da mesma maneira, uma “geometria” desse tipo pode realmente ser acolhida assim que se tenha abandonado a premissa reducionista. Então, podemos – com surpreendente facilidade! – conceber um Centro universal “ao redor do qual gira a roda primordial” (punta dello stelo a cui la prima rota va dintorno), para colocar nas palavras de Dante [8]. E, além disso, podemos compreender que mesmo que o Centro não esteja em lugar algum do espaço ou do tempo, ele ainda assim é ubíquo: ele está “no centro de todo onde e todo quando” [9], para citar mais uma vez Dante.

Essa é, em resumo, a “geometria” do verdadeiro Começo, como ela de fato foi imaginada através dos tempos [10]. E notemos, sem delonga, que esta doutrina perene desqualifica a perspectiva evolucionista: a estimada noção de que o mundo foi criado “há muito tempo” (se é que se admite que ele tenha sido sequer criado) e desde então tem “evoluído” por si mesmo. Pois à luz da doutrina metafísica parece que o Começo “age” não causando um estado inicial – que, então, supostamente faz surgir todo o resto –, mas por um tipo de “causação vertical” que faz existirem todas as coisas em um único instante, por assim dizer, concordando com o verso bíblico: “Aquele que vive eternamente criou todas as coisas em sua totalidade” (Eclo, 18:1). É verdade, claro, que, empiricamente falando, as coisas começam a existir em tempos distintos; mas isso não significa que elas sejam criadas em tempos distintos – pois de fato a criação não ocorre “no tempo”. E, contudo, elas são criadas: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada se fez”, como afirma S. João. E podemos acrescentar que, de acordo com a pontuação que agora se tornou comum (e que coloca o “quod factum est” ao final do verso 3 ao invés de no início do verso 4) [11], em João 1:3 se lê na verdade: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez”. O “quod factum est” pode assim ser interpretado como se referindo ao que foi realmente feito, implicando que nem toda “criação” é do mesmo nível. Há, por exemplo, a “criação” humana que se predica do que Deus criou. Podemos dizer que além da “causação vertical”, que age “ao longo dos raios” e “instantaneamente”, há também outros vários modos de “causação vertical”, que agem “tangentemente” ou “ao longo da circunferência” e que cumprem um papel secundário. Portanto, a preeminência do Princípio funda-se não sobre a prioridade temporal, mas sobre a prioridade ontológica.


Notas

2. Confissões, 11:40.

3. God and the Astronomers (New York: Warner, 1978), p. 3.

4. Santo Agostinho, De civita Dei, 11.6. Sob o risco de dizer o óbvio, deixe-me ressaltar que esta afirmativa não é mais “agostiniana” do que “tomista”; pois, de fato, o Doutor Angélico disse algo muito parecido: “Deus fez no Ser a criação e o tempo simultaneamente” (Summa Contra Gentiles, II, 35:6)

5. Discuti esta questão um pouco mais detalhadamente em Cosmos and Transcendence (La Salle, IL: Sherwood Sugden, 1984), pp. 60-65.

6. Referimo-nos aqui a um problema de valor inicial “retroativo”: dado um estado em algum tempo “inicial” t0, o problema é determinar o estado para t < t0. Além disso, um problema de valor inicial é “bem colocado” se ele admite uma única solução. E é claro que isso não ocorre sempre.

7. Atualmente, há esforços para se criar um modelo “fechado” (e por isso livre da singularidade) do universo, e Stephen Hawking, por exemplo, tem se ocupado intensivamente na busca desse objetivo. Certamente concordamos com ele que tal modelo – se se provasse o seu sucesso – acarretaria “profundas implicações no papel de Deus como o Criador” (A Brief History of Time, Bantam Books, 1988, p. 174). Mas é por esta mesma razão que nós suspeitamos que a empreitada jamais terá sucesso. Pode-se dizer na metafísica que todo modelo cosmológico viável precisa exibir algo semelhante a uma fronteira ou singularidade. Pois ocorre do universo espaço-temporal não ser fechado ou contido em si mesmo, e este fato não pode deixar de se manifestar mesmo em um plano científico. Parece que a boa física é, com efeito, invariavelmente “correta” de um ponto de vista simbólico ou metafísico.

8. Paradiso, 13:11.

9. Ibid, 29:12.

10. Veja especialmente Ananda Coomaraswamy, Time and Eternity (Delhi: Munishiram, 1988), assim como a palestra sobre a “Eternidade e a ordem temporal” nas Palestras Gifford por Seyyed Hossein Nasr, republicadas com o título de Knowledge and the Sacred (Albany, NY: SUNY, 1989). Uma extensa pesquisa sobre o “tempo e a eternidade” nas tradições grega e judaico-cristã pode ser encontrada em Richard Sorabji, Time, Creation and the Continuum (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1983), apresentada, porém, pelas lentes da filosofia analítica contemporânea. Devemos mencionar também Paul Helm, Eternal God (Oxford University Press, 1988), um trabalho representando o mesmo ponto de vista analítico, que rejeita algumas das costumeiras objeções à idéia de intemporalidade.

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