terça-feira, 15 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XVII

Tradução do trecho final do sexto capítulo: VI – No Princípio

Se a singularidade inicial é de fato uma imagem do Centro, é n’um certo sentido uma imagem global ou “macrocósmica”, pois ela evidentemente remete ao cosmo como um todo. Entretanto, deveria haver também reflexos locais ou “microcósmicos” do mesmo Centro – reflexos “aqui e agora” – como o próprio símbolo do círculo sugere pelo fato de que o centro é repetido nas intersecções dos raios com a circunferência. Assim, surge a pergunta sobre se a física também versa sobre essas manifestações “localizadas” do Centro transcendente. Ora, eu argumento que sim, e que essas “manifestações microcósmicas” na verdade não são nada mais do que os casos de colapso do vetor de estado.

Desde as nossas considerações anteriores sabemos que esse colapso está associado a uma transição ontológica do plano físico ao plano corpóreo, e portanto associado a uma determinada passagem da potência à manifestação. Por isso, o colapso deve ser atribuído a uma ação da natura naturans, o princípio “naturante” ou “que dá a forma”. Mas sabemos que a natura naturans age “radialmente”, e, assim, através da causação “vertical”. Normalmente, a ação da natura naturans é certamente mascarada, por assim dizer, pelos modos secundários de causação, que operam “no tempo”, continuamente. O que é especial a respeito do colapso do vetor de estado, por outro lado, é a sua instantaneidade, que torna o fenômeno inexplicável em termos de causalidade “tangencial”. Em um certo sentido, o colapso ocorre “fora do tempo”, e por isso constitui não um fenômeno temporal, mas realmente “radial”. Poderíamos ir mais longe e dizer que, por sua irredutível descontinuidade, o colapso de um vetor de estado “torna visível” uma ação da natura naturans. Eu afirmo que a instantaneidade do colapso manifesta a “instantaneidade” do verdadeiro Princípio e espelha a “pontualidade” do próprio Centro metacósmico.

Falando desta forma, certamente me expresso em termos metafóricos. Deve-se entender, em primeiro lugar, que o chamado Centro metacósmico e o verdadeiro Princípio se referem ao ato criativo pelo qual o universo é trazido à existência. E quando falamos da “pontualidade” do Centro, ou da “instantaneidade” do Princípio, estamos afirmando a unicidade deste ato, ao encontro da doutrina bíblica: Qui vivit in aeternum creavit omnia simul (“Aquele que vive eternamente criou todas as coisas de uma só vez”). O ato de Deus é único e indivisível; mas este Ato, embora único e contínuo, faz surgir todas as coisas: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez”. Portanto, o universo inteiro, pleno de suas imensas multiplicidades, na verdade não constitui nada senão o efeito contínuo daquele Ato “instantâneo”.

Porém, isso não deve significar que o universo foi criado “há muito tempo” e que agora permanece como um “efeito contínuo”. Em outras palavras, precisamos nos lembrar, mais uma vez, que o Princípio não reside no passado, e que, n’um certo sentido, “Deus cria o mundo e todas as coisas neste presente agora”, para colocar nas palavras do Mestre Eckhart. [15]

Mas não é preciso dizer que em geral nos esquecemos desse fato ontológico crucial. Admitindo ou não que o universo foi criado, de qualquer forma nós tomamos como certo que as entidades físicas ou corpóreas existem e operam simplesmente por si mesmas. Ou, na melhor das hipóteses, nos tornamos holísticos, e atribuímos auto-existência não a entidades individuais, e sim ao cosmo concebido como um todo. Mas eu afirmo que esta visão também está errada. O fato é que o cosmo, em sua imensidão quadridimensional, não é mais auto-subsistente do que um único elétron ou um grão de areia sequer.

Deus disse a Moisés: “Ego sum qui sum” (Êxodo 3:14). E isso significa que na realidade o “ser” pertence apenas a Deus. Enquanto se trata dos existentes cósmicos, descobrimos que eles estão em um estado de fluxo perpétuo, uma genesis ou um “vir a ser” sem fim, que poderia ser chamado mais propriamente de uma busca para ser, ao invés do ser em si mesmo. E, contudo, essas “entidades” existem: pois elas “participam do ser”, como dizem os platônicos. Ou como disse Santo Agostinho de forma muito bela: “são, por que procedem de Ti, mas não são, porque não são aquilo que Tu és.” [16].

Ainda, segue o fato de que nós geralmente nos prendemos à ilusão da auto-suficiência cósmica o máximo que podemos, e de que é necessário, como uma regra, um fenômeno preternatural de algum tipo para nos abalar para fora de nossa complacência ontológica costumeira. Ora, no nível da física, o colapso de um vetor de estado de fato constitui um evento preternatural; pois, como vimos, esse colapso exibe uma ação da natura naturans. O prodígio do colapso do vetor de estado está no fato de que de uma certa forma ele “detecta” a ação radial da natura naturans, e por isso, se preferir, “apanha” o próprio ato criativo. O ato cosmogenético, em outras palavras, pode de um certo modo ser observado “aqui e agora” através de uma transição do plano sub-existencial para o plano corpóreo, porque a transição – que é necessariamente instantânea – não pode ser atribuída a nenhuma causa secundária. O que encaramos aqui é um exemplo de causação “vertical”, o modo que age “fora” do tempo e que deriva diretamente do Centro metacósmico. Em uma palavra, testemunhamos “um ato de Deus”. Devemos, contudo, nos lembrar de que Deus age “uma só vez”, como o Mestre Eckhart ressalta; o que significa dizer que a multiplicidade pertence não à Causa transcendente, mas precisamente aos efeitos criados. Mais uma vez: Qui vivit in aeternum creavit omnia simul. E, assim, o que em um certo sentido testemunhamos não é simplesmente “um ato de Deus”, mas de fato “o Ato de Deus”: o único e indivisível Ato de criação. E, finalmente, aí está o milagre do colapso do vetor de estado. [17]



Notas

15. Meister Eckhart (C. de B. Evans, trad. Londres: Watkins, 1924), vol I, p. 209. Podemos acrescentar que o “presente agora” do Mestre Eckhart não é nada mais do que o nunc stans da Escolástica (“o agora que permanece”). De acordo com a doutrina metafísica tradicional, o tempo não é feito de “momentos presentes” – assim como a linha euclideana não é feita de pontos. Na realidade, há somente um “presente agora”, cujo tempo é na verdade uma “imagem em movimento”, como diz Platão. Neste assunto profundo e difícil, remeto especialmente às referências de Coomaraswamy e Nasr citadas na nota 10. Veja também Cosmos and Transcendence, op. cit., cap. 3, onde eu tratei dessa questão com alguma profundidade.

16. Confissões, 7:11.

17. Para prevenir uma possível má compreensão: não estou sugerindo, certamente, que o físico constitui o nihil “a partir do qual” Deus criou o mundo. O simples fato de que os sistemas físicos são definidos pela especificação (e, conseqüentemente, pressupõem o corpóreo) basta para deixar de lado essa tese.

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