segunda-feira, 7 de junho de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte XII

Tradução de trechos do quinto capítulo: V – Sobre se “Deus joga dados”


Sabemos que os sistemas da mecânica quântica são indeterminados. Enquanto se trata das suas previsões, a mecânica quântica é portanto uma teoria inerentemente probabilística ou estatística – isto está muito claro. O que não está de todo claro, por outro lado, é se a teoria é completa, isto é, fundamental. É concebível que a mecânica quântica possa estar lidando com certos epifenômenos estocásticos gerados por um sistema subjacente de um tipo determinístico. Isso é mais ou menos o que Einstein pensava e o que os que acreditam em “variáveis ocultas” pensam até hoje, em desafio à ortodoxia de Copenhagen. E assim segue o célebre debate entre Einstein e Bohr, e talvez ele siga até que o problema central tenha sido resolvido: ou seja, a questão sobre se o universo é determinístico ou não.

Pra começar, eu gostaria de ressaltar que na verdade o problema não pode ser resolvido em um plano estritamente científico ou “técnico”. A própria duração do debate Bohr-Einstein por si só aponta para isso; pois, se se tratasse apenas de um problema de física, iríamos pensar que os dois físicos mais destacados do século poderiam entre si ter resolvido a questão dentro de um período razoável de tempo. Mas eles não a resolveram; e Bohr, por exemplo, aparentemente continuou ruminando o problema até o dia da sua morte [1]. E, porém, o que é melhor ainda, e que quase encerra a discussão, é o fato de existirem teorias rigorosamente determinísticas que levam exatamente às mesmas previsões da mecânica quântica. São as chamadas teorias das variáveis ocultas, originalmente conjecturadas por de Broglie e construídas pela primeira vez por David Bohm em 1952. É claro que permanece o indeterminismo empírico: só que agora se presume que ele surge não porque o próprio universo seja indeterminístico, mas porque o experimentador é a princípio incapaz de preparar um sistema físico no qual as “variáveis ocultas” estejam sujeitas às condições iniciais prescritas. Portanto, de um ponto de vista estritamente científico, parece que temos uma escolha nessa questão. Podemos optar por uma visão determinística ou por uma visão indeterminística da realidade, por um modelo neo-clássico [2] ou quântico – é provável que seja mais uma questão de gosto. E os gostos diferem. Há cientistas do primeiro escalão que não vêem nada de incongruente na noção da acausalidade fundamental – uma visão epitomizada por John von Neumann nestas palavras: “Não há atualmente nenhum motivo ou razão para se falar de causalidade na natureza” [3]; e ainda há outros, começando por Einstein, que acham impensável que “Deus jogue dados”.

O que, então, devemos dizer? Se a questão não pode ser resolvida n’uma base científica, por que meios – além do “gosto” pessoal – ela pode ser resolvida?

O universo é determinístico ou não: esta é a questão. Não podemos duvidar, é claro, que prevalece um certo determinismo no plano empírico. Afinal de contas, somos cercados por fenômenos – desde o movimento dos planetas até o funcionamento dos incontáveis aparelhos construídos pelo homem – capazes de serem descritos e previstos como quisermos pelos métodos da física clássica. E mesmo no domínio quântico, como sabemos, ocorre da evolução dos sistemas físicos ser rigorosamente governada pela equação de Schrödinger – até o fatídico momento do colapso do vetor de estado. Neste ponto, porém, o determinismo (ou, de maneira equivalente, a causalidade) parece cair. E, no entanto, mesmo esta queda (real ou aparente, conforme o caso) não possui em geral um efeito mensurável no nível corpóreo, onde lidamos necessariamente com médias estatísticas, estendidas a conjuntos atômicos estupendamente grandes. Assim, é na verdade a chamada lei dos grandes números que explica o determinismo clássico. E é por isso que von Neumann podia dizer que “Não há atualmente nenhum motivo ou razão para se falar de causalidade na natureza”. Nesta perspectiva, o determinismo clássico reduz-se a um mero epifenômeno, enquanto no nível fundamental, como concebido atualmente, a causalidade desmorona.

Entretanto, precisamos nos lembrar que também existem fenômenos corpóreos (envolvendo conjuntos subcorpóreos tão “macroscópicos” quanto se poderia querer) nos quais os efeitos do indeterminismo quântico não são mascarados pelos epifenômenos estatísticos, mas ficam à vista, por assim dizer – o que explica no fim das contas porque esses efeitos puderam ser detectados em primeiro lugar. É isso o que acontece, por exemplo, quando um contador Geiger é colocado próximo a uma fonte radioativa. O decaimento dos núcleos – que, de acordo com a mecânica quântica, constitui um processo indeterminado – dispara então uma seqüência correspondente de eventos discretos no nível corpóreo. É claro que ainda é concebível poder haver um “mecanismo oculto” dentro do núcleo que determina o momento da desintegração – e, por conseguinte, a seqüência empírica – em concordância com alguma lei matemática, e é de fato isso o que sustenta a teoria das variáveis ocultas. A verdadeira questão, contudo, é se somos obrigados a supor, em fundamentos apriorísticos, que tal mecanismo deva existir.

Uma outra observação à guisa de esclarecer o problema: o conceito de determinismo não coincide de forma alguma com a noção da previsibilidade. No fim das contas, mesmo o mais ferrenho defensor do determinismo deve com certeza reconhecer que nem tudo no mundo pode realmente ser previsto. O próprio Laplace – modelo ideal dos deterministas – tão-somente sustentava que o futuro do universo poderia a princípio ser calculado apenas se fosse conhecida a posição e o momento exatos de cada partícula; mas não é preciso dizer que nenhum cientista jamais foi louco o suficiente para supor que tal conhecimento das “condições iniciais” pudesse realmente ser descoberto por meios científicos, o que realmente se pudesse fazer o cálculo necessário assim que os dados fossem obtidos. É verdade, sem dúvida, que um fenômeno é previsível somente enquanto é determinado; mas o fenômeno pode muito bem ser determinado sem ser previsto em um sentido pragmático ou empírico – há limites, no fim das contas, ao que nós humanos podemos fazer.

“Deus joga dados”? Esta parece ser a pergunta. E tudo indica que Einstein a colocou corretamente; pois a própria expressão sugere o que agora já deve ter se tornado bem evidente: a saber, que na verdade o problema não é científico, mas irremediavelmente metafísico.


Notas

1. Na noite anterior à sua morte, Bohr desenhou uma figura em seu quadro-negro. Ela representava a estrutura experimental do “contra-exemplo” mais intrincado de Einstein.

2. Porém, o que precisa ser abandonada é a noção clássica de localidade; isso é o que John Stuart Bell estabeleceu como um teorema da mecânica quântica em 1964, e o que desde então se verificou em certos experimentos sensíveis. Sobre este problema básico, a física moderna deu um veredito definitivo. Diferente do determinismo rigoroso, o princípio clássica da localidade não mais constitui uma opção viável. E podemos acrescentar que, sobre este problema, Einstein não estava apenas em desacordo com Bohr, como completamente equivocado. Foi contudo o próprio Einstein quem iluminou a trilha que eventualmente levou à prova da não-localidade. Em outras palavras, o artigo Einstein-Podolsky-Rosen realizou o oposto do que se pretendia; ao invés de provar a incompletude da teoria quântica (um problema ainda aberto, para dizer o mínimo), ele levou à refutação do princípio da localidade, e por isso à queda da Weltansschauung clássica. Pois de fato o modelo “neoclássico” de que falamos (i.e., a teoria de de Broglie-Bohm) está muito distante da imagem clássica, apesar do seu aspecto determinista. E isso talvez na verdade explique a fria recepção do trabalho de Bohm por parte de Einstein.

3. Ao qual von Neumann acrescenta: “…porque nenhum experimento indica a sua presença, já que os macroscópicos são a princípio inadequados, e a única teoria conhecida compatível com nossas experiências relativa aos processos elementares, a mecânica quântica, a contradiz”. (Mathematical Foundations of Quantum Mechanics, Princeton University Press, 1955, p. 328). Sabemos hoje que, em relação a este último ponto, von Neumann superestimou seriamente o seu caso; suas deduções matemáticas não descartam a possibilidade da teoria das variáveis ocultas, como von Neumann pensava. Ocorre na verdade que o célebre “teorema de von Neumann”, que por muito tempo dominou o pensamento científico nesta questão, é um tanto irrelevante. Veja especialmente J. S. Bell, “On the Impossible Pilot Wave,” Foundation of Physics, vol. 12 (1982), pp. 989-99.

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