segunda-feira, 5 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte II

Segunda parte da tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf

II. Invariância e teleonomia

Como já sabemos, os seres vivos possuem dois tipos de macromoléculas essenciais: a) proteínas, responsáveis por quase todas as estruturas e atuações teleonômicas; b) ácidos nucleicos, responsáveis pela invariância genética. Segundo o prof. Monod, é principalmente a distinção do ponto de vista químico desses dois tipos de macromoléculas que se encontra na origem da distinção entre as propriedades teleonômicas e invariantes. Portanto, para provar a teoria mecanística da vida (isto é, para demonstrar que a invariância precede causalmente à teleonomia), Monod considera suficiente provar que nos seres vivos esteja presente um mecanismo para a síntese das proteínas características de cada espécie, que é confiada à ação dos ácidos nucleicos. Em outras palavras, basta mostrar que existe um mecanismo de invariância, que torna possível a existência e a reprodução das propriedades teleonômicas. De acordo com Monod, tal prova é fornecida pela “teoria molecular do código genético”, ora solidamente estabelecido, ao menos em seus pontos essenciais.

Não podemos entrar aqui nos detalhes técnicos da prova do prof. Monod. Iremos apenas mencionar o fato de que a teoria molecular do código genético pode na verdade mostrar como toda as “informações” necessárias à síntese dos diferentes aminoácidos, e por isso das diferentes proteínas, estão contidas na estrutura particular do ácido desoxirribonucleico (DNA) de cada célula viva. Além disso, afirma Monod, esse mecanismo de tradução das informações genéticas” (no qual o outro ácido nucleico, o ácido ribonucleico (RNA) cumpre também um papel importante) funciona somente na direção DNA –> proteína, e nunca vice-versa. Temos aqui, insiste o prof. Monod, um dos princípios fundamentais da biologia moderna, que não se pode pôr em questão. Com isso, fica demonstrado, conclui o autor, que a invariância (que é ligada à função do DNA) precede causalmente o surgimento das propriedades teleonômicas, não o contrário (contra a tese do “vitalismo” ou “animismo”).

Porém, temos realmente aqui uma demonstração conclusiva? Falando francamente, achamos que não. Em primeiro lugar, o princípio fundamental da irreversibilidade do processo da tradução das informações genéticas (o chamado “dogma de Watson”), sobre o qual se funda toda a tese, pode, no fim das contas, não ser tão assim tão inquestionável como parece para o prof. Monod. Conforme é bem sabido, H. Temin, da Universidade de Wisconsin, e seu cooperador Satoshi Mizutani mostraram (1970) que uma enzima específica (que é uma proteína) estimula a formação de DNA em vírus cancerígeno que possua apenas RNA. No mesmo ano, Spiegelman, em Londres, foi capaz de provar que o DNA não é sempre o ponto de partida no processo biossintético. Mesmo que estes fatos provavelmente não sejam suficientes para, no presente, colocar em questão o princípio da irreversibilidade, eles mostram ao menos o quão perigoso é fundar deduções de tamanha importância, como as feitas pelo prof. Monod, sobre uma teoria à qual se dá um valor dogmático que ela não pode possuir (como qualquer outra teoria científica).

Em segundo lugar, mesmo que o princípio da irreversibilidade fosse admitido como um dado inquestionável, esse princípio não é por si só suficiente para provar a tese mecanista. Na verdade, de modo a ter uma prova convincente, seria necessário também mostrar que a distinção entre a invariância e as propriedades teleonômicas, como propõe o prof. Monod, é uma distinção adequada do ponto de vista lógico. É especificamente sobre esse ponto que achamos ser necessário expressar nossas maiores ressalvas.

Conforme já destacamos mais de uma vez, segundo o prof. Monod essa distinção se baseia principalmente em considerações químicas, isto é, na diferença entre as proteínas (que são responsáveis por quase todas as estruturas teleonômicas) e os ácidos nucleicos (responsáveis pela invariância genética). Outra vez, somos confrontados aqui com uma distinção cartesiana muito clara. Mas aqui também a clareza é apenas aparente. É realmente verdadeiro que o mecanismo da transcrição das informações genéticas seja um mecanismo de pura invariância, sem teleonomia? Se a estrutura teleonômica é caracterizada pela presença de um “projeto”, não somos obrigados a admitir que o mecanismo genético é profundamente teleonômico? O próprio prof. Monod parece admitir isso implicitamente, quando escreve: “...devemos definir o projeto teleonômico essencial como consistindo na transmissão de geração em geração do conteúdo de invariância característico da espécie. Todas as estruturas, atuações e atividades contribuindo para o sucesso do projeto essencial serão a partir de então chamadas de ‘teleonômicas’” (p. 24). Temos, então, de acordo com o próprio autor, além do projeto teleonômico incluso na estrutura proteica dos seres vivos, um projeto teleonômico mais amplo (“o projeto teleonômico essencial”) que abrange todo o processo, o qual, começando pelo mecanismo de invariância (e incluindo a sua estrutura mesma), resulta na síntese de proteínas. Em outras palavras, mesmo o prof. Monod parece admitir que a chamada “invariância pura” do mecanismo tradutor está à serviço de um projeto teleonômico fundamental e específico. Tal interpretação aparenta ser confirmada por outras afirmações do biólogo francês. “Esse aparelho (isto é, o aparelho teleonômico), é inteiramente lógico, maravilhosamente racional e perfeitamente adaptado ao seu propósito: preservar e reproduzir a norma estrutural” (p. 30). Contudo, “preservar e reproduzir a norma estrutural”, segundo o prof. Monod, é a tarefa do mecanismo de invariância. Parece, portanto, que a distinção entre o aparelho teleonômico e o mecanismo de invariância não é uma distinção logicamente adequada. Isso parece confirmado pelas próprias palavras do prof. Monod, quando ele afirma: “(as proteínas são) responsáveis por quase todas as estruturas teleonômicas...” (p. 27). De acordo com a boa lógica, “quase todas” implica: “não absolutamente todas”. Onde, então, devemos encontrar a causa das outras propriedades teleonômicas? O próprio prof. Monod parece se esquecer de sua distinção nítida quando escreve: “Certas estruturas de DNA cumprem um papel que precisa ser considerado teleonômico” (p. 52, nota 1).

Fica visível, então, que a tentativa de deduzir teleonomia a partir da invariância não leva a resultados convincentes, pela própria razão de que a teleonomia aparenta estar presente e ativa dentro dos próprios mecanismos invariantes “rigidamente determinísticos”. Mais ainda; a teleonomia parece transcender esses mecanismos, a partir dos quais ela supostamente é gerada: “...em um sentido muito real o organismo efetivamente transcende as leis físicas – mesmo que obedecendo-os – assim alcançando de uma só vez a busca e a realização do seu próprio fim” (p. 81). “Leis físicas”: não são precisamente essas leis físicas (e químicas) e apenas essas as responsáveis pelo determinismo da invariância? Como então poderia o mecanismo de invariância ser a causa de uma estrutura (o organismo) que transcende essas leis? A pergunta é tanto mais importante porque, como veremos adiante, o prof. Monod não admite uma diferença qualitativa entre os distintos níveis de organização das estruturas materiais.

Com as observações anteriores, não pretendemos ter provado, contra o prof. Monod, que a teleonomia não pode ser reduzida à invariância ou dela deduzida. Tal conclusão seria, neste nível de considerações, tão pouco justificada quanto as conclusões do autor de “O Acaso e a Necessidade”, na nossa opinião. Nós quisemos apenas destacar o fato de que o problema das relações entre a teleonomia e a invariância não pode ser resolvido no nível da epistemologia do prof. Monod. O “postulado da objetividade”, sobre o qual o cientista francês funda todas as suas considerações, não nos permite, na verdade, ir além do reconhecimento “fenomenológico” de que a teleonomia e a invariância estão presentes e ativas na estrutura dos seres vivos. Para resolver a “contradição epistemológica” que aparenta surgir da presença dessas duas propriedades, parece haver a necessidade de algo diferente de uma mera “prova científica”. Isto porque – como pensamos ter mostrado suficientemente – no fim de tal “prova” somos confrontados com a mesma pergunta do princípio. Na nossa opinião, a questão básica (a ser considerada antes de qualquer outra) é averiguar se o determinismo do mecanismo invariante e da teleonomia são na realidade (supondo que sejam propriedades irredutíveis) mutuamente exclusivos. Mais explicitamente, a “Filosofia Natural” exige que nós vejamos uma oposição fundamental entre o “mecanismo” e o “projeto” (ou a “finalidade”), de modo que devamos ser obrigados a escolher um como o fundamento ou a causa do outro?

É um fato inegável que a ciência moderna, da Renascença até hoje, progrediu nesta direção de pensamento. A consideração do finalismo, da teleologia, foi sempre interditada pelo cientista. O ideal do “conhecimento objetivo”, como compreendido dentro da estrutura da nova ciência experimental-dedutiva, exige que pensemos apenas nos termos do mecanismo determinístico. De partida, o cientista não nega a finalidade: ele apenas a deixa para a consideração do metafísico. É somente n’um desenvolvimento posterior (que marca um novo passo, mais radical em direção ao “cientificismo”) que o finalismo e a metafísica são conjuntamente condenados como um tipo de obscurantismo intelectual. Uma vez destruído o “antigo pacto” animístico (como Monod o chama), o homem é finalmente capaz de se converter da “Escuridão” para o “Reino” do verdadeiro conhecimento científico, o único conhecimento “tout-court”. Depois de tal “conversão”, o único fato final e definitivo que se impõe sobre o cientista é o determinismo rígido – e o acaso, como veremos imediatamente.

Sem dúvida, havia muitos elementos “animísticos” dentro da antiga visão finalística da metafísica aristotélico-escolástica. Apesar disso, parece-nos que no necessário e meritório processo de purificação dessas relíquias do animismo, promovido pelo pensamento moderno, perdeu-se também o sentido genuíno, profundo e de forma alguma “animístico” que o finalismo possuía na antiga tradição filosófica. Na verdade, o “finalismo” (no sentido original deste termo filosófico) não implicava, para Aristóteles ou Tomás de Aquino, a pressuposição da existência de um “plano” ou “projeto” na natureza. A causalidade final era considerada como o aspecto complementar da causalidade eficiente, indissoluvelmente ligada a esta em todos os processos da geração natural. Em outras palavras, em qualquer processo causal, no qual uma causa determinada produz um efeito determinado, temos o aspecto de produção (causalidade eficiente) e junto a ele o aspecto de produção determinada: a causa é vista como dinamicamente orientada à produção desse efeito determinado no lugar de outro. E esse segundo aspecto é precisamente o que se quer dizer por “causalidade final”. Claramente se conclui com isso que na antiga tradição aristotélico-escolástica seria contraditório opor “processo determinado” a “processo finalístico”. Quando a ciência moderna fala de “afinidade” química, de uma tendência que existe em determinados elementos para formar compostos determinados, ela alega estar falando apenas da causalidade final. Na verdade, Aristóteles responderia que essa alegação é mera insensatez, pois o próprio conceito de afinidade, de reação determinada, inclui a causalidade final como o termo complementar necessário da causalidade eficiente.

É importante notar que não emerge na estrutura da filosofia aristotélico-escolástica o conceito de “plano”, “projeto”, ao menos não logicamente, exceto em um segundo momento, propriamente quando a causalidade final dos agentes naturais únicos é vista sinteticamente, como um inteiro movimento ordenado de todo o mundo físico (finalidade hierárquica). É apenas através dessa consideração do dinamismo do mundo como um todo que Aristóteles e Tomás de Aquino chegam à conclusão de que há um “plano”, uma “finalidade cósmica” em andamento no universo. E, finalmente, que deve haver um Ordenador, uma Causa final de todo esse finalismo na natureza.

Essas observações podem servir talvez para mostrar que a visão finalística tradicional não era, no fim das contas, tão francamente animística e antropocêntrica, como o prof. Monod parece inclinado a supor. Mais uma vez, não pretendemos ter dado uma resposta para opor a opinião do cientista francês. Nossa única intenção tem sido destacar o fato de que existem problemas posteriores, que não podem ser ignorados, se se quiser chegar a conclusões verdadeiras. Este é o caso particularmente no nosso presente problema: se o determinismo (“necessidade”) e a teleonomia devem ser considerados propriedades igualmente originais ou não. Tal problema, digamos mais uma vez, não parece ter solução dentro da perspectiva metodológica à qual adere o prof. Monod.

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