quarta-feira, 7 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte III

Terceira parte da tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf


III. Necessidade e Acaso

Na verdade, o processo determinístico da reprodução invariante não é a última palavra na explicação do “mistério da vida”, segundo o prof. Monod. Além da necessidade, e ainda mais profundo do que isso, outro elemento exerce sua influência em todos os processos naturais: o acaso. Monod considera a ação do acaso em dois planos diferentes. Primeiro, nós temos o plano dos fenômenos vitais, vistos em seus desenvolvimentos desde a primeira célula viva até os níves mais superiores da evolução. O mecanismo da reduplicação da célula viva, com todo seu determinismo e exatidão, não escapa à lei física fundamental das alterações microscópicas. Sob circunstâncias excepcionais, um ou mais nucleotídeos de DNA podem ser destruídos ou acrescentados, etc. Esses são acidentes completamente aleatórios, imprevisíveis. Mas, uma vez inscritos na estrutura do DNA, eles serão reproduzidos em milhões de exemplares, assim passando do campo do acaso para o da mais inexorável necessidade. Cada um desses “erros”, ou “mutações” produz uma alteração correspondente na estrutura das proteínas que (como sabemos) constituem – como um todo – o aparelho teleonômico dos seres vivos. Este aparelho, por sua vez, reage como um “filtro” para as “mutações”: as únicas aceitáveis serão as que não reduzirem a coerência do aparelho teleonômico, mas que a reforçarem ou mesmo (em casos muito mais raros) a enriquecerem com novas possibilidades. Finalmente, a seleção dá o juízo final sobre a eficiência do aparelho teleonômico dessa forma modificado.

O fenômeno da evolução da vida é explicado, assim, de acordo com o prof. Monod, pelo jogo dos elementos casuais. “O puro acaso, absolutamente livre mas cego, na própria raiz do estupendo edifício da evolução: este conceito central da biologia moderna não é mais uma hipótese entre outras possíveis ou sequer concebíveis. Ele é hoje a única hipótese concebível, a única compatível com o fato observado e testado. E nada garante a suposição (ou a esperança) de que as concepções sobre isso devam, ou mesmo possam ser revistas” (p.110).

Paremos por um momento. Inferir do fato das mutações aleatórias na estrutura do DNA que o “puro acaso” deve ser posto “na própria raiz do... edifício da evolução” parece ser uma conclusão que excede em muito as premissas científicas. Em primeiro lugar, o que se quer dizer aqui com o termo “puro acaso”? A sua mais radical interpretação levaria a afirmar (como o próprio Monod parece estar propenso a fazer) que “uma mutação é em si mesma um evento microscópico, um evento quântico, ao qual conseqüentemente se aplica o princípio da incerteza – um evento que é, em vista disso, por sua própria natureza essencialmente imprevisível” (p. 112). Mas esta é uma interpretação controversa da física quântica, e disso o próprio Monod está ciente. Assim, ele não insiste nela, e prefere falar de “acaso essencial” no sentido de “absoluta coincidência... que resulta da intersecção de duas cadeias de eventos totalmente independentes” (p. 111). “...mesmo que um dia se abandonasse o princípio da incerteza, permaneceria verdadeiro o fato de que, entre a determinação de uma mutação no DNA, por mais completa que seja, e a determinação de seus efeitos funcionais no plano da interação da proteína, ainda não veríamos nada além de uma ‘absoluta coincidência... O evento ainda pertenceria ao domínio do ‘acaso essencial’” (p. 112). Aqui, “acaso essencial” significa que a probabilidade da intersecção de duas cadeias de eventos totalmente independentes é quase nula. Ora, não sabemos se o prof. Monod já leu Aristóteles. Se não, ele certamente ficaria surpreso ao ver que Aristóteles também fala de eventos fortuitos como a intersecção de duas cadeais causais independentes. Mas Aristóteles, quando fala do acaso, sempre destaca o fato de que para haver um evento casual é preciso pressupor a existência da determinação, da causalidade, na natureza. Fossem todos os eventos na natureza “eventos casuais”, simplesmente nada aconteceria. Na verdade, o “acaso essencial” (ao menos neste último sentido) do qual fala o prof. Monod pressupõe a determinação: sem o mecanismo de invariância (rigidamente determinístico), as mutações aleatórias não produziriam simplesmente coisa alguma. Mais do que isso, é pressuposta a própria teleonomia; pois, sem a “função filtro” do aparelho teleonômico, o processo evolutivo não chegaria a lugar nenhum. Resumamos assim: o “acaso” é de fato um fator importante e indispensável no fenômeno da evolução. Mas está longe de ser provado que ele é o único, ou o mais fundamental.

Um segundo plano, mais básico, no qual devemos considerar a ação do acaso, explica o prof. Monod, é o da origem dos sistemas vivos. Entre as três etapas que distinguíveis a priori no processo causal que possa ter levado ao aparecimento dos primeiros organismos, a primeira (a formação de nucleotídeos e aminoácidos, ou “etapa pré-histórica”) possui uma suficiente base teorética e experimental. A segunda (a formação, começando do estágio anterior, das primeiras macromoléculas, capazes de sua própria replicação) nos coloca diante de problemas extremamente árduos, embora não intransponíveis, pensa o prof. Monod. A dificuldade fundamental, contudo, se encontra no nível do terceiro estágio, ou seja, o da “emergência gradual dos sistemas teleonômicos que, em torno das estruturas replicativas, fossem construir um organismo, uma célula primitiva” (p. 134). O âmago da dificuldade é a explicação da origem do código genético e de seu mecanismo de tradução. “De fato (confessa Monod) isso é menos um ‘problema’ do que um verdadeiro enigma. O código não tem sentido a menos que traduzido. O mecanismo de tradução da célula moderna consiste de pelo menos cinqüenta componentes macromoleculares que são eles mesmos codificados no DNA: o código não pode ser traduzido exceto por produtos da tradução. É a moderna expressão de omne vivum ex ovo. Quando e como esse círculo se fechou? É extremamente difícil de imaginar” (p. 135).

Uma pista para a solução desse enigma é dada, observa o prof. Monod, pelo “fato de que o código está agora decifrado e sabemos que ele é universal” (ibid.). Contudo, de acordo com os presentes resultados da biologia molecular, a estrutura do código parece ser quimicamente arbitrária. Isto é, ela parece ter de ser explicada não por razões químicas (ou melhor, estereoquímicas), mas apenas como “o resultado de uma série de escolhas aleatórias que gradualmente a enriqueceram” (p. 135). Se essa arbitrareidade da estrutura do código genético devesse finalmente ser provada, conclui o autor, teríamos a conseqüência (dada a universalidade desse código) de que entre as incontáveis tentativas de elaboração, apenas uma realmente teve sucesso. Como conseqüência, seria necessário concluir que o evento decisivo do surgimento da vida na Terra “ocorreu apenas uma vez. O que significaria que a sua probabilidade a priori era virtualmente zero. Esta idéia é desagradável para a maioria dos cientistas. A ciência não pode dizer nem fazer nada a respeito de uma ocorrência única” (p. 136). Contudo, observa o prof. Monod, essa repugnância não se baseia tanto em razões científicas reais, como na tendência antropocêntrica de considerar o universo destinado a gerar vida e finalmente o homem. “Devemos estar constantemente em guarda contra essa noção, esse poderoso sentimento de destino. A imanência é estranha à ciência moderna. O destino é escrito conforme e enquanto acontece, não antes... Se ele (nosso destino) foi único, como o próprio surgimento da vida pode ter sido, foi porque, antes que surgisse, as suas possibilidades de surgir eram quase inexistentes. O universo não estava grávido da vida, nem a biosfera grávida do homem. Nosso número apareceu no jogo de Monte Carlo. Surpreende que, como a pessoa que acabou de ganhar um milhão no cassino, devamos nos sentir estranhos e um pouco irreais?” (p. 137).

Paremos por um momento mais uma vez. Assim, de acordo com o prof. Monod, o “segredo da vida” deve ser encontrado, finalmente, no “jogo das forças cegas da natureza de Monte Carlo”. Mais uma vez, somos confrontados com a mesma pergunta decisiva: como pode a maravilhosa lógica e racionalidade dos sistemas vivos (que o próprio Monod tantas vezes destaca) ser explicada como o resultado puro e simples do acaso? Mesmo concedendo que a origem da vida possa ser explicada como uma ocorrência única, como a “absoluta coincidência” de um enorme número de cadeias independentes de eventos (7), ainda assim, em conjunto com o acaso, e como um pré-requisito da sua “realização”, precisamos admitir todo o determinismo das estruturas e propriedades físico-químicas – em uma palavra, toda a regularidade da natureza. Mais uma vez, somos levados de volta à pergunta: toda essa regularidade é uma natureza apenas estatística, e os eventos individuais estão sujeitos a um indeterminismo radical? Como já vimos, o próprio Monod parece hesitar em ir tão longe. Não porque ele esteja “relutante em admitir, como Einstein, que ‘Deus joga dados’” (p. 112). Pois, segundo a opinião do prof. Monod, Deus não parece necessário (ao invés do jogador de dados, basta introduzir uma roleta automática). A razão real dessa hesitação é provavelmente o fato de que Monod esteja ciente de que é preciso haver um “limite inferior” mesmo na hipótese do acaso, como o próprio Demócrito sabia. Na verdade, é impossível construir um “mundo-acaso” sem supor ao menos a distinção entre “vazio” e “átomo” e atribuir um mínimo de propriedades ao último. Sem esta regularidade básica, a “roleta da natureza” poderia não funcionar; mais do que isso, ela poderia nem sequer existir (8).

Assim, nos vemos diante da mesma pergunta que encontramos no começo. Como possivelmente se originam a ordem, o determinismo, a regularidade que encontramos em todos os níveis de organização do mundo material? O “puro e simples acaso” não é uma resposta, mas um mero “postulado”, que parece ser não menos repleto de contradições do que o postulado do “vitalismo” ou do “animismo”.


Notas

7. Não pretendemos considerar aqui o problema que surge do cálculo da probabilidade nessa conexão. Ele foi muitas vezes usado para “provar” a impossibilidade prática da vida surgindo como o resultado do puro acaso. Contudo, tais “provas” foram freqüentemente propostas de uma forma muito simplificada. (veja por exemplo Lecomte du Noüy, em seu livro bem conhecido “O Destino Humano”, e a sua severa crítica em G.G. Simpson: “This View of Life”, Harcourt, 1964, p. 218).

8. Um dos defensores de maior autoridade da Teoria Sintética, G.G. Simpson, no livro e na passagem citados na nota anterior, escreve: “Ninguém, ao menos certamente nenhum cientista, jamais supôs que qualquer evento natural ocorra inteiramente por acaso. O nosso universo, acreditamos, é um universo regido pela lei”. Poderia-se fazer uma consideração posterior a respeito das reais implicações da física quântica. Monod parece ver nela nada mais do que a afirmação de um indeterminismo radical, e conseqüentemente dos eventos de puro “acaso”. Mas só há isso realmente? Por exemplo, o princípio da exclusão de Pauli parece impor, no nível mesmo das partículas elementares, a idéia de um sistema físico como uma atividade estruturada, a partir do qual poderíamos chegar ao ponto de afirmar a existência da teleonomia no nível da própria física quântica. Tal afirmação pareceria, sem dúvidas, escandalosa para o prof. Monod – e, ao contrário, completamente óbvia para os antigos metafísicos. Não é porque eles eram “animistas”, mas porque, como tentamos mostrar, eles viam o todo do dinamismo natural (dos primeiros níveis de estruturação da matéria até o homem) como implicando necessariamente tanto a causalidade teleonômica quanto a eficiente (como aspectos complementares do mesmo dinamismo). Queremos expressar aqui nosso agradecimento ao prof. Errol E. Harris, da Northwestern University, pela sugestão que nos deu (sobre esse ponto da interpretação teleonômica da física quântica) em seu comunicado “Mechanism and Teleonomy” no Congresso Mundial de Filosofia em Varna (1973).

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