sexta-feira, 2 de julho de 2010

Jacques Monod e a Filosofia Natural da Biologia Moderna, parte I

Tradução do artigo Jacques Monod and the Natural Philosophy of Modern Biology. Some Epistemological Considerations, de Annibale Fantoli. http://pdf.lookchem.com/pdf/22/0b56e055-bea9-46fe-ba0f-4cdd4fba44d4.pdf


“...Estes átomos movem-se em um vazio infinito, separados um do outro e diferindo na forma, tamanho, posição e arranjo; quando se alcançam eles colidem, e alguns são abalados em uma direção qualquer fortuita, enquanto outros, entrelaçando-se entre si segundo a congruência de suas formas, posições e arranjos, permanecem unidos e assim afetam a geração dos corpos compostos”.
Estas palavras, escritas pelo famoso comentador de Aristóteles, Simplício (1), dão um resumo da visão atomística de Demócrito – uma visão que, embora com mais de 2400 anos de idade, não parou de exercer uma profunda influência no pensamento moderno, desde o Renascimento até hoje.

É precisamente ao atomismo de Demócrito que Jacques Monod explicitamente se refere em seu livro “Le hasard et la nécessité” (“O Acaso e a Necessidade”), Editions du Seuil, Paris, 1970 (2). O vencedor do prêmio Nobel (1965) junto de A. Lwoff e F. Jacob por seu trabalho de pesquisa sobre o código genético, Monod tomou para si a “missão” de divulgar uma interpretação mecanista rígida do fenômeno da vida entre os leigos, començando assim um acalorado debate, que não parece ter arrefecido.

Neste artigo, não pretendemos entrar nos detalhes da exposição estritamente científica dada em “O Acaso e a Necessidade” sobre as idéias e resultados básicos da biologia molecular. Como o próprio Monod admite, “Essa parte estritamente biológica não é original em nenhum sentido: não fiz mais do que resumir o que são consideradas idéias estabelecidas na ciência contemporânea” (p. 13). Mesmo que essa “tentativa de extrair a quintessência da teoria molecular do código” (ibid.) mereça toda nossa admiração por suas qualidades de clareza e lucidez, a real originalidade do livro, o seu verdadeiro interesse, consiste nas “generalizações ideológicas” que Monod “se aventurou a deduzir” (ibid.) dos fatos científicos à disposição, e que constituem (como o subtítulo de “O Acaso e a Necessidade” indica explicitamente) um “ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna”.

Nosso propósito no artigo presente é colocar em foco os problemas epistemológicos que surgem dessa “filosofia natural” do prof. Monod. No prefácio do seu livro, o biólogo francês afirma: “é claro que as generalizações ideológicas que me aventurei a deduzir dela (isto é, da teoria molecular do código) são minha única responsabilidade. Mas eu creio que, onde elas não excedem os limites da epistemologia, essas interpretações seriam aceitas pela maior parte dos biólogos modernos” (ibid.). Ainda, parece-nos que, se há um problema básico levantado pelo livro de Monod, ele se dá precisamente no nível da epistemologia. Mais explicitamente, a primeira coisa a ser considerada é o princípio epistemológico segundo o qual o conhecimento científico objetivo é considerado o único tipo de conhecimento verdadeiro (Monod o chama mais resumidamente de “postulado da objetividade”). Afirmar, como o faz Monod, que a maior parte dos biólogos modernos concordariam com tal princípio, não parece resolver, e sim expandir o problema. Esse “postulado da objetividade”, supostamente reconhecido pela maioria dos biólogos, é realmente um princípio epistemológico válido? Além disso, em que sentido e até que ponto ele pode ser usado para construir uma “Filosofia Natural” da biologia moderna?


I. O “postulado da objetividade” e as propriedades dos seres vivos

Entre as propriedades dos seres vivos, duas são, de acordo com o prof. Monod, particularmente dignas de consideração. A primeira consiste no fato de que os seres vivos são “objetos dotados de um propósito ou projeto, o qual eles ao mesmo tempo mostram em sua estrutura e executam através de suas atuações” (p. 20). Monod chama esta propriedade de “teleonomia”, um novo nome cunhado (ao que parece) para evitar as conotações “metafísicas” do antigo termo “teleologia” ou do ainda mais antigo “finalidade”. A segunda propriedade é representada pelo fato de que os seres vivos são “máquinas auto-reprodutoras”, através da “sua habilidade em reproduzir e transmitir ne varietur a informação correspondente à sua própria estrutura” (pp. 22-23). Monod chama esta propriedade de “reprodução invariante” ou, mais sucintamente, “invariância”.

De acordo com o biólogo francês, é “metodologicamente indispensável manter uma distinção” entre essas duas propriedades. Uma primeira razão para tal distinção é que “podemos pelo menos imaginar objetos capazes da reprodução invariante, mas desprovidos de qualquer aparelho teleonômico”. (Monod dá como exemplo as estruturas cristalinas, embora ele próprio admita que temos aí um “nível de complexidade... muito menor do que o de todos os organismos vivos conhecidos”). Uma segunda razão é representada pelo fato de que “das duas classes básicas de macromoléculas biológicas, uma, a das proteínas, é responsável por quase todas as estruturas e atuações teleonômicas; enquanto a invariância genética está ligada exclusivamente à outra classe, a dos ácidos nucleicos”. Finalmente, “essa distinção é assumida, explicitamente ou não, em todas as teorias, em todas as construções ideológicas (religiosas, científicas ou filosóficas) pertencentes à biosfera e à sua relação com o resto do universo” (p.27).

Ora, a existência e a distinção dessas duas propriedades constitui para a biologia, de acordo com Monod, “uma flagrante contradição epistemológica” (p. 30). Na verdade, de um lado, “a pedra angular do método científico é o postulado de que a natureza é objetiva – em outras palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser atingido interpretando-se os fenômenos pelas causas finais – isto é, pelo “propósito” (ibid.). Esse postulado, pela mesma razão que é um "postulado puro”, é impossível de ser demonstrado. “Pois é obviamente impossível – concede Monod – imaginar um experimento que prove a não-existência de um propósito, de um fim buscado, em qualquer lugar da natureza.” (p. 31). E mesmo assim, esse “postulado da objetividade é consubstancial com a ciência e tem guiado todo o seu prodigioso desenvolvimento por três séculos. É impossível escapar dele, mesmo que provisoriamentem ou em uma área limitada, sem partir do domínio da ciência em si” (ibid.). Por outro lado, entretanto, é a própria objetividade da ciência – acrescenta imediatamente o prof. Monod – que “nos obriga a reconhecer o caráter teleonômico dos organismos vivos, a admitir que em sua estrutura e atuação eles decidem sobre um propósito e o perseguem” (ibid.).

De acordo com o autor, qualquer concepção de vida (científica, filosófica ou religiosa) supõe necessariamente uma solução dessa “contradição epistemológica”. Mais concretamente, existe – de acordo com Monod – duas grandes classes de soluções. Uma primeira é representada pelas soluções que o autor classifica sob o título de “vitalismo” ou “animismo”, que tentam resolver a contradição sacrificando (conscientemente ou não) o postulado da objetividade, e atribuindo uma função fundamental à teleonomia. Em outras palavras, todos os fenômenos da vida deveriam ser considerados como guiados por um “princípio teleonômico”, do qual esses fenômenos seriam somente a manifestação. O prof. Monod vê em tal posição uma sobrevivência da “ilusão antropocêntrica”, que hoje assume uma nova forma: o homem visto como o “herdeiro natural, aguardado desde tempos imemoriais” (p. 47) do universo inteiro na evolução (3).

Uma segunda classe de soluções, ao contrário, sustenta o postulado da objetividade mesmo no caso dos seres vivos, afirmando que o mecanismo determinista (a “invariância”) precede causalmente a teleonomia. A esta classe pertence a “teoria seletiva (ou sintética)”, da qual o próprio Monod é um adepto. De acordo com o biólogo francês, só essa teoria é que permite uma solução satisfatória ao problema. A parte central do “O Acaso e a Necessidade” contém a “prova” dessa tese, fundada nos resultados da biologia molecular, à qual Monod deu uma contribuição relevante.

Antes de considerar o significado e o valor de tal “prova”, gostaríamos de fazer algumas observações sobre o “postulado da objetividade”, que Monod com tanto vigor afirma ser o fundamento da epistemologia científica moderna.

Primeiro de tudo, observemos o fato de que no fim do primeiro capítulo do “O Acaso e a Necessidade” Monod (como já vimos) reconhece que é o próprio postulado da objetividade que nos obriga a admitir a teleonomia como uma propriedade objetiva dos seres vivos. Até esse ponto, portanto (isto é, dado o fato de que não possuímos ainda uma demonstração da prioridade causal de uma das duas propriedades à outra), devemos supor que a invariância e a teleonomia estão ainda no mesmo nível. Ora, do capítulo 3 em diante o prof. Monod começa a construir a sua “prova” com base na prioridade causal da invariância em relação à teleonomia. O capítulo 2 é um tipo de “intermezzo ideológico”, sendo consagrado à consideração dos vários tipos de “vitalismos” e “animismos”, com freqüência criticados de forma muito severa (4). Essa crítica acentuada (já implícita no uso do termo “animismo”), que precede a “prova” da tese oposta, embora no fim dependente dela, parece-nos metodologicamente injustificável nesse ponto do livro.

Essa não é (na nossa opinião) uma mera observação pedante. Na verdade, apesar de todas as afirmações em contrário feitas pelo prof. Monod, a teleonomia não possui plena cidadania no domínio de sua epistemologia. A afirmação de Monod – segundo a qual o método científico funda-se na “negação sistemática de que o ‘verdadeiro’ conhecimento possa ser atingido interpretando-se os fenômenos pelas causas finais, isto é, pelo ‘propósito’” (p.30) – é uma afirmação precisa demais para permitir qualquer exceção. Se, então, imediatamente em seguida, o autor admite o caráter objetivo da teleonomia, esta admissão não deveria nos enganar. Nós na verdade nos confrontamos aqui com uma concessão que nos coloca diante de uma contradição epistemológica. Ora, na ciência “cartesiana” do prof. Monod não há espaço para contradições reais e definitivas. Não podemos, portanto, nem a priori ter certeza de que tal contradição será superada e, mais do que isso (o que é ainda mais importante), que ela será superada ao se mostrar que a teleonomia não é uma propriedade original, completamente independente, mas que, ao contrário, ela se origina de um mecanismo determinístico de invariância, e, finalmente, do mero jogo do acaso. Na verdade, apenas “o acaso e a necessidade” possuem um direito de cidadania real e definitivo na epistemologia científica, ao menos de acordo com o prof. Monod. Isso significa que, mesmo antes de dar a sua demonstração, o autor está certo de que a teleonomia – pelo menos no sentido de um finalismo independente, original – não pode existir. É só por essa razão que o prof. Monod se sente autorizado a criticar o “vitalismo” e o “animismo” logo após o capítulo 2. Assim, as considerações biológicas que se seguem não são uma “prova”, mas antes uma “contra-prova”, uma “confirmação” do que já foi necessariamente suposto no postulado da objetividade.

Consideremos agora esse postulado. O seu significado é (como o próprio Monod explica) “que a confrontação sistemática da lógica e da experiência é a fonte única do verdadeiro conhecimento” (p. 154). Mas o que se quer dizer aqui por “logica” e “experiência”? (5). Obviamente, se a “lógica” devesse ser tomada como a pura coerência formal entre as proposições que o cientista estabelece e as deduções que ele faz, e se a “experiência” devesse indicar nada mais do que a mera totalidade das sensações e sentimentos, a “confrontação sistemática da lógica e da experiência” se tornaria impossível. Essa “confrontação”, na verdade, só é viável quando a “experiência” inclui tudo do qual podemos ter consciência (como os nossos processos mentais de entendimento, juízo e decisão) e a “lógica” implica também a lógica construtiva que consiste em formular hipóteses a partir da experiência e em verificá-las retornando à experiência. Se é esse o caso, o que então restará da suposta objetividade pura da ciência? “O que Monod não parece adequadamente advertir é o papel do sujeito humano em propor e testar o que é ou pode ser objetivamente verdadeiro. Afinal de contas, os sujeitos humanos conscientes é que construíram a visão de mundo científica fazendo perguntas sobre o mundo, formulando hipóteses sobre ele e julgando que haja bases para se pensar que cada hipótese assim formulada seja provavelmente verdadeira ou provavelmente falsa” (6).

Na confrontação sistemática da lógica e da experiência, o fato de que os elementos subjetivos estejam indissoluvelmente ligados com os objetivos é confirmado por todo o livro do prof. Monod, como tentaremos mostrar. Aqui basta oferecer como evidência apenas um ponto, que no entanto parece ser decisivo. O princípio da objetividade, como já sabemos, de acordo com o prof. Monod é um “mero postulado”. Mas, então, como ele pode ser justificado? O autor responde a esta pergunta no final do livro. “É óbvio que a colocação do princípio da objetividade como a condição do verdadeiro conhecimento constitui uma escolha ética e não um julgamento atingido pelo conhecimento, pois, segundo os próprios termos do postulado, não pode ter havido nenhum conhecimento ‘verdadeiro’ antes dessa escolha arbitrária. Para estabelecer a norma para o conhecimento o princípio da objetividade define um valor: este valor é o próprio conhecimento objetivo. Assentir ao princípio da objetividade é, assim, afirmar a proposição básica de um sistema ético: a ética do conhecimento” (p. 163).

Tomaremos novamente essa afirmação mais adiante. Agora, será suficiente observar que ela mostra de forma eloqüente o quão ambíguo é o termo “objetivo”, do qual Monod faz uso tão extenso, contrastando-o com o “subjetivismo” e o “antropomorfismo” das posições que ele qualifica como “animistas” ou “vitalistas”. Na verdade, o que é mais “subjetivo”, mais “antropomórfico” do que fazer a objetividade da ciência depender de uma escolha ética? No fim das contas, a distinção “cartesiana” entre o “objetivo” e o “subjetivo” torna-se bem menos “clara” e “distinta” do que a princípio indicava.

A nós parece que a mesma observação se aplica com relação à distinção entre as propriedades teleonômicas e invariantes, como tentaremos mostrar agora.



Notas

1. Simplicius de Caelo 242, 21. Cfr. G.S. Kirk e J.E. Raven, “The Presocratic Philosophers”, Cambridge University Press, 1969, p. 419.

2. Este livro, agora traduzido nas principais línguas, apareceu recentemente também na versão japonesa (“Güzen to hiteuzen”, Misuzu Shobo, 1972). Ao citar o livro de Monod no presente artigo, estaremos nos referindo à tradução inglesa: “Chance and Necessity” (Transl. Austryn Wainhouse), Collins, 1972, indicando a página correspondente entre parênteses.

3. O próprio Monod admite que o significado que ele dá aos termos “vitalismo” e “animismo” é diferente do que significa na ciência e filosofia contemporâneas. Mais do que no caso do “vitalismo” (que inclui – além do vitalismo científico de Driesch e Polany – também o “metafísico” de Bergson), tal se dá com o “animismo”, que segundo Monod inclui “visões de mundo” tão contrastantes como as de Teilhard de Chardin e a do Materialismo Dialético.

4. Particularmente o “animismo” de Teilhard (pp. 39-40) e o do Materialismo Dialético (pp. 40-47).

5. Ver as penetrantes observações feitas por Hugo Meynell em referência a isso, “Monod’s Muddle”, The Month, julho de 1973, pp. 241-243, que nos deram a deixa para nossas considerações aqui.
6. Ibid., p. 241.

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