quinta-feira, 6 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte III

Tradução do trechos do segundo capítulo: II. O que é o Universo Físico?


Alguém gostaria de dizer que o universo físico é simplesmente o mundo como concebido pelo físico; mas, por outro lado, está longe de ser claro como exatamente o físico de fato concebe o mundo. Devemos lembrar, em primeiro lugar, que a física passou por um estupendo desenvolvimento e continua a progredir com uma rapidez espantosa. E, além do mais, tem havido ultimamente pouco consenso entre os físicos sobre o que é exatamente que a física está trazendo à luz. Como, então, podemos falar em um “mundo concebido pelo físico”?

Podemos fazê-lo, até certo ponto, em virtude do fato da física possuir uma metodologia própria, um modo distintivo de investigação. As teorias físicas particulares podem ser substituídas, e as opiniões filosóficas podem ir e vir; mas os meios cognitivos básicos pelo quais a física como tal é definida permanecem inalterados. E esses meios cognitivos de uma forma geral determinam os seus objetos: este é o ponto crucial. Digamos, então, que o universo físico seja o reino das coisas a princípio cognoscíveis por esses meios particulares, e vamos ver aonde isso nos leva.

Vimos no capítulo anterior que o mundo corpóreo existe “para nós”: como o domínio das coisas a serem conhecidas através da percepção sensível; e agora descobrimos que o universo físico existe “para nós” quase no mesmo sentido. Só que os respectivos meios de conhecimento são notoriamente diferentes. No primeiro caso, nós conhecemos através da percepção direta, e, no segundo, através de um complexo modus operandi fundado na medição – o que é uma coisa completamente diferente.

Examinemos brevemente o ato da medição. A primeira coisa a ser notada é que medimos não diretamente pela visão, ou por qualquer outro sentido, mas por meio de um artefato: um instrumento apropriado. O que conta, na verdade, é a interação entre objeto e instrumento: é isso que determina o estado final do instrumento, e, portanto, do resultado da medição. E esse resultado, além disso, será uma quantidade; um número, como queira. Ora, para ter certeza, o físico experimental lança mão dos seus sentidos em cada etapa; e é particularmente por meio da percepção sensível que ele corrige o estado final do instrumento. Mas isso não significa que ele perceba a quantidade em questão. Sejamos claros sobre isso. Estritamente falando, não percebemos uma coisa como o peso ou o diâmetro de um objeto familiar, não mais do que somos capazes de perceber o momento magnético, digamos, do elétron. O que percebemos são objetos corpóreos de vários tipos – incluindo instrumentos científicos. E é claro que somos capazes de ler a posição de um ponteiro em uma escala. Mas não percebemos quantidades mensuráveis. E essa é a razão porque precisamos de instrumentos. O instrumento é exigido precisamente porque a quantidade em questão não é perceptível. Logo, a função do instrumento é converter, por assim dizer, esta última no estado perceptível de um objeto corpóreo, para que, por meio da percepção sensível, possamos adquirir o conhecimento de algo que não é por si mesmo perceptível.

Ora, o modus operandi da física se baseia na medição, como eu disse; logo, é através de atos de medição que o universo físico vêm à tona. O físico olha para a realidade – não com as faculdades humanas ordinárias da percepção – mas através de instrumentos artificiais; e o que ele vê através destes “olhos” construídos pelo homem é um estranho mundo novo composto de quantidades e de estrutura matemática. Em uma palavra, ele contempla o universo físico distinto do mundo corpóreo familiar.

O que, então, tomamos dessa curiosa dualidade? Podemos dizer, por exemplo, que um dos dois domínios é real e o outro subjetivo ou de alguma forma fictício? Na verdade, parece que não há fundamentos convincentes para apoiar qualquer um desses reducionismos. O que você vê depende das “lentes” pelas quais você olha: esse é o âmago da questão.

Surge a pergunta de como dois mundos aparentes – ou “cortes transversais da realidade” – podem coexistir, ou se encaixar, como de fato eles devem. E basta dizer, por agora, que esse é um assunto que não pode ser investigado ou compreendido através dos meios cognitivos associados a cada reino. Nem através da percepção sensível, nem pelos métodos da física pode o problema ser resolvido – pela simples razão que cada um desses meios cognitivos se restringe à sua própria esfera. Idealmente, o que precisamos é de uma ontologia integral, e também podemos deixar sem solução, por ora, a questão sobre se tal empreitada é viável. O que importa, por enquanto, é a compreensão de que cada um dos nossos dois domínios – o físico não menos do que o corpóreo – é limitado em sua abrangência. Em cada caso, existem as coisas que podem ser conhecidas através dos meios cognitivos dados, e existem as coisas que não podem. Como um círculo, o conceito de cada domínio de uma só vez inclui e exclui. E desde o início não deveria haver dúvida de que o que cada um exclui precisa, na verdade, ser incomensuravelmente mais vasto do que a multidão – por mais incrível que pareça – do seu conteúdo total.


(...)


Estritamente falando, ninguém jamais percebeu um objeto físico, e ninguém jamais perceberá. As entidades que respondem ao modus operandi da física são, por sua natureza, invisíveis, intangíveis, inaudíveis, desprovidas de sabor e cheiro. Esses objetos imperceptíveis são concebidos através de modelos matemáticos e observados por meio dos instrumentos apropriados. Há, contudo, entidades físicas que se apresentam, por assim dizer, na forma de objetos corpóreos. Ou, colocando o inverso: todo objeto corpóreo X pode por si mesmo ser sujeito a todos os tipos de medições, e, dessa forma, determina um objeto físico associado SX. Se X é uma bola de bilhar, por exemplo, nós podemos medir sua massa, seu raio e outros parâmetros físicos, e podemos representar o objeto físico associado SX de várias formas: por exemplo, como uma esfera rígida de densidade constante. O ponto crucial, de qualquer maneira, é que X e SX não são a mesma coisa. Os dois são na verdade tão diferentes quanto a noite e o dia: pois ocorre que X é perceptível, enquanto SX não.

Ora, a primeira dessas alegações é óbvia e incontrovertível. Todo mundo sabe que uma coisa como um bola de bilhar é perceptível. Ou, melhor dizendo, todo mundo sabe isso muito bem – contanto que não seja um bifurcacionista. Mas e sobre o SX: por que este não é perceptível? Há aqueles, presumivelmente, que diriam que uma esfera rígida, por exemplo, pode muito bem ser percebida. Mas, enquanto, estritamente falando, esse acaba não sendo o caso, [2] a contestação é na verdade irrelevante. Pois a pergunta diante de nós não é se coisas como esferas rígidas podem ser percebidas, mas se SX pode ser, e essa é uma outra questão. Pois enquanto o objeto físico associado SX do presente exemplo pode de fato ser representado (dentro de certos limites de precisão) como uma esfera rígida, ele também pode ser representado de muitas outras formas. Por exemplo, como uma esfera elástica – um modelo que na verdade pode suscitar uma descrição mais precisa. O mais importante, contudo, é que sabemos hoje que os objetos físicos são compostos de átomos – ou, mais genericamente, de partículas subatômicas – e que todas as representações contínuas ou “clássicas” transmitem não mais do que uma visão bruta e parcial da entidade em questão. Mas, ora, se supormos que SX é de fato um conjunto de átomos ou de partículas subatômicas, será ainda concebível que SX pode ser percebido? Obviamente que não; pois está claro que o que percebemos não é uma coleção de átomos, partículas atômicas ou ondas de Schrödinger, mas precisamente uma bola de bilhar. Poderia, é claro, se alegar que o conjunto de átomos ou partículas suscitam de alguma forma o objeto percebido ou perceptível – mas essa é uma questão completamente diferente. O que nos preocupa no momento é a identidade desse objeto percebido ou perceptível, não a sua causa conjecturada. E essa identidade é indiscutível: o que percebemos é a bola de bilhar vermelha ou verde, para dizer mais uma vez. Ninguém, repito, jamais percebeu um conjunto de partículas subatômicas ou uma coleção de átomos.

Assim se chega a um reconhecimento básico que por muito tempo foi obscurecido em razão da inclinação bifurcacionista: agora descobrimos que todo objeto corpóreo X determina um objeto físico associado SX. Devemos a partir daqui nos referir a X como a apresentação de SX. Nem todo objeto físico, é claro, possui uma apresentação; o que quer dizer que nós podemos distinguir entre dois tipos ou classes de entidades físicas: as que admitem apresentação e as que não admitem. Subcorpóreos e transcorpóreos, digamos. Mas me apresso em destacar que essa dicotomia envolve não o objeto físico como tal, e sim a sua relação com o domínio corpóreo. O físico, em outros palavras, que investiga a estrutura ou as propriedades físicas dos objetos em questão, não irá descobrir nenhum traço dessa dicotomia. Conforme os átomos se congregam em moléculas, e as moléculas se unem em agregados macroscópicos, não há nenhum ponto, nenhuma linha mágica de demarcação que sinalize o começo do reino subcorpóreo. Pois, de fato, só com referência ao plano corpóreo é que essa noção é definida. E, portanto, se tivéssemos olhos somente para o mundo físico – e pudéssemos ver apenas átomos, etc – não haveria maneira de podermos distinguir agregados subcorpóreos de agregados transcorpóreos.

Apesar disso, a distinção é vital para a economia da física. Pois fica claro, a partir do que foi dito acima, que os instrumentos de medição devem ser corpóreos. O processo de medição deve terminar, no fim das contas, no estado perceptível de um objeto corpóreo. Mas isso significa, à luz das considerações anteriores, que o instrumento físico é necessariamente subcorpóreo; para ser preciso, deve ser o SI de um instrumento corpóreo I.


Nota 


2. Sob o risco de chover no molhado, o argumento poderia ser colocado assim: uma esfera rígida de densidade constante é caracterizada inteiramente por duas constantes numéricas: o seu raio R e densidade δ. Nem R nem δ, contudo, podem ser percebidas (essas quantidades podem é claro ser medidas, mas como vimos antes, medir não é o mesmo que perceber). Mas, visto que as quantidades pelas quais se define a esfera rígida são imperceptíveis, então também o é a esfera rígida. Ou novamente: ninguém jamais percebeu (no sentido visual) um objeto desprovido de toda cor. Mas a esfera rígida não possui cor (é caracterizada por R e δ, como eu disse). Logo, é imperceptível.

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