quinta-feira, 13 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte VI

Tradução do trechos do segundo capítulo: III. O Mundo Micro e a Indeterminância

Uma coisa é falar de um objeto físico genérico – como o “campo eletromagnético”, por exemplo – e bem outra falar de um objeto específico, do tipo que existe concretamente e pode realmente ser observado. E a diferença é a seguinte: enquanto o objeto genérico é determinado por um modelo matemático ou apenas por uma representação, o segundo é também sujeito a determinações de um tipo empírico. Em outras palavras, ele é um objeto com o qual já estabelecemos um certo contato observacional. Por exemplo, podemos falar do planeta Júpiter porque ele realmente foi visto ou detectado; e, ainda, pudemos procurar o planeta Plutão (descoberto em 1930) porque ele também já havia sido observado, não diretamente, é óbvio, mas através dos seus efeitos sobre outros planetas.

Há, é claro, graus de especificação; entretanto, a distinção entre o genérico e o específico é, apesar disso, bem definida, e acaba por ser crucial. Pois ocorre que a física lida, antes de tudo, com objetos físicos do tipo “específico”: estes são seus objetos “verdadeiros”, podemos dizer, distintos das entidades (como o “campo eletromagnético”) que existem em algum sentido abstrato, idealizado ou puramente matemático. Os “verdadeiros” objetos da física, portanto, são entidades que não só podem ser observadas em algum sentido apropriado, mas que na verdade já foram observadas. Como Júpiter ou Plutão, elas foram especificadas até certo ponto por um conjunto de observações. Usarei o termo “especificação” para me referir ao ato ou atos empíricos pelos quais um objeto físico é especificado; e com esse entendimento podemos realmente dizer que um objeto não é específico até que tenha sido especificado [1].

Vamos agora considerar alguns exemplos de especificação. No caso dos objetos subcorpóreos é normal ou natural especificar SX por meio do objeto corpóreo X correspondente, isto é, por meio de apresentação. Por outro lado, é também possível especificar um objeto subcorpóreo SX de forma mais indireta – como no caso previamente citado de Plutão, por exemplo. Tendo sido especificado por quaisquer meios, o objeto pode, é claro, ser ainda mais especificado por determinações adicionais; a especificação, como já dissemos, é suscetível de gradação.

Enquanto os objetos subcorpóreos podem de fato ser especificados por meio da apresentação (ou melhor dizendo, somente pela apresentação), esta opção não existe no caso de um objeto transcorpóreo, como um átomo, por exemplo, ou uma partícula elementar. Assim, quando se trata de objetos transcorpóreos, a especificação necessariamente se dá em dois estágios: primeiro, o objeto deve interagir com uma entidade subcorpórea, que por sua vez é observada (ou tornada observável) através da apresentação. Considere, como exemplo, um campo eletromagnético produzido no laboratório: em primeiro lugar, o campo interage com o aparato científico pelo qual ele é gerado; e esse aparato (agora concebido como um objeto subcorpóreo) pode então ser observado através da apresentação. Ou ainda; um contador Geiger registra a presença (dentro da sua câmara) de uma partícula carregada. A partícula entra na câmara e causa uma descarga elétrica, que então é registrada de algum modo no nível corpóreo (talvez na forma de um click audível, ou uma leitura de um contador). Ora, essa cadeia de eventos constitui, evidentemente, uma especificação da partícula. Pode-se daí falar em “partícula X” – mesmo que nunca mais seja possível reestabelecer o contato observacional com a partícula X. Por outro lado, com a ajuda de uma instrumentação mais complicada, o experimentalista é capaz não só de estabelecer um contato observacional inicial com uma partícula, como também pode prosseguir com observações adicionais. Em outras palavras, tendo especificado a “partícula X”, ele pode sujeitar esta partícula a mais medições – como foi feito, por exemplo, por Hans Dehmelt, o recente vencedor do Nobel, que conseguiu “aprisionar” um pósitron em uma chamada armadilha Penning por um período de cerca de três meses, durante os quais a dada partícula (apelidada de “Priscilla”) pôde ser observada com graus de precisão sem precedentes.

Mas, seja como for, o que nos interessa agora é o seguinte fato geral: quer lidemos com a partícula fundamental, quer com a mais simples entidade corpórea, não podemos falar de um objeto físico X até que se tenha estabelecido um certo contato observacional inicial com X. Os objetos físicos não “crescem em árvores” simplesmente: eles precisam antes de tudo ser “especificados” no sentido técnico que demos a este termo.

***

A pergunta agora é se é possível especificar um objeto físico tão completamente que o resultado de todas as observações adicionais possam ser antecipados, ou se ele é de qualquer forma determinado com antecedência. Será conveniente, contudo, reformular um pouco essa pergunta, após introduzir algumas outras distinções. Em conformidade com o uso aceito, utilizarei o termo “sistema” para designar uma representação abstrata ou matemática de um objeto físico. Um objeto físico, concebido em termos de uma dada representação, pode então ser denominado como um sistema físico. Além disso, ele é a representação ou sistema abstrato que define os observáveis: as quantidades associadas com o sistema físico, que podem a princípio ser determinadas por meios empíricos. O que for e o que não for observável, em outras palavras, depende não apenas do objeto, mas da forma pela qual o objeto é concebido. Uma bola de bilhar, por exemplo, tomada como uma esfera rígida, admite um número indefinido de observáveis um tanto simples (começando com sua massa, seu diâmetro e as suas coordenadas de posição e velocidade); concebido como um conjunto de átomos, por outro lado, ele admite muitos outros observáveis. A especificação se refere conseqüentemente ao sistema físico, distinto do objeto como tal. Dado um sistema físico e um subconjunto dos seus observáveis, podemos dizer que este subconjunto é especificável se for possível medir cada observável no subconjunto (para que, ao término do experimento composto, os valores de todos esses observáveis sejam conhecidos). A pergunta colocada acima pode, portanto, ser reformulada desta forma: dado um sistema físico, existe um subconjunto especificável de seus observáveis cuja determinação experimental determine os valores de todos os outros observáveis do sistema? Em outras palavras, é possível tornar completamente determinado um sistema físico por meio da especificação? Sabemos hoje, à luz da teoria quântica, que essa pergunta deve ser respondida negativamente. Não há na verdade uma coisa como um sistema físico completamente determinado (um cujos valores exatos de todos os observáveis possam ser antecipados). E isso se dá não só porque não somos capazes de controlar ou monitorar as forças externas com a precisão necessária, mas também devido a uma certa indeterminância residual intrínseca ao sistema físico em si, que nenhuma quantidade de especificação pode dissipar.

Por outro lado, quando lidamos com sistemas físicos de larga escala de um tipo suficientemente simples, os efeitos dessa indeterminância residual podem não ser mensuráveis, ou podem ser tão pequenos que não cumprem nenhum papel significativo [2]. Em um sentido formal e aproximativo, portanto, podemos falar de um sistema físico determinado; e esses, é claro, são precisamente os sistemas dos quais trata a física clássica, e aos quais ela se aplica. Tal sistema pode então ser descrito ou representado em termos de um conjunto completo de observáveis – um conjunto pelo qual todos os observáveis possam ser expressos. E isso significa que não precisamos mais distinguir entre o sistema como tal e os seus observáveis; o sistema agora pode ser identificado, com efeito, a um conjunto completo de observáveis. O que, por exemplo, é um campo elétrico, classicamente concebido? É uma distribuição contínua de vetores elétricos: isto é, de observáveis! Além disso, essa redução do sistema a um subconjunto dos seus observáveis é na verdade implicada pelo próprio formalismo da física pré-quântica, que lida exclusivamente com as relações funcionais entre quantidades observáveis. Assim, um sistema físico clássico não é nada mais do que uma distribuição no espaço e no tempo de certas grandezas escalares ou tensoriais observáveis. [3]

Onde há indeterminância, por outro lado, o formalismo clássico se desfaz. É preciso então distinguir categoricamente entre o sistema físico S e seus observáveis, dos quais nem todos a princípio podem ser determinados pela especificação. Conseqüentemente, a redução clássica (do sistema aos seus observáveis) é admissível apenas no que se pode denominar como limite clássico: isto é, sob condições que garantam que os efeitos da indeterminância não tenham nenhum papel mensurável ou significativo. Fora desse limite, ou desse domínio restrito, a física exige um formalismo não-clássico – uma necessidade que foi brilhantemente realizada em 1925 com a descoberta da mecânica quântica. O novo formalismo, como sabemos, distingue entre sistema e observáveis, e sobre essa base podemos trabalhar com a física em face da indeterminância.


Notas

1 – Contudo, isso não significa necessariamente que um objeto físico específico não existisse antes de sua especificação. Não estou sugerindo, por exemplo, que o planeta Júpiter se materializou de alguma forma no momento em que foi pela primeira vez observado. O que estou dizendo é que é preciso primeiro se especificar um objeto antes que se possa perguntar, entre outras coisas, se o objeto existia, digamos, a mil anos. E no caso de Júpiter, é claro, a resposta a essa questão acaba sendo afirmativa. Há outros tipos de objetos, como veremos em breve, em que isso não acontece.

2 – Estritamente falando, não é apenas o número de átomos, digamos, que conta a esse respeito, mas também o arranjo desses átomos. No caso dos chamados arranjos aperiódicos, por exemplo, os efeitos quânticos podem entrar em jogo mesmo em conjuntos macroscópicos.

3 – É razoável supor que essa “passagem ao limite clássico” possa não ser legítima no caso mesmo dos mais simples organismos vivos. Como alguns têm conjecturado, não é improvável que a indeterminância quântica cumpra um papel vital nos fenômenos da biosfera.

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