quarta-feira, 12 de maio de 2010

Quantum Enigma, de Wolfgang Smith, parte V

Mais trechos traduzidos do segundo capítulo: II. O que é o Universo Físico?

A física lida, no fim das contas, com estruturas matemáticas existenciadas. Deve-se admitir, contudo, que tanto o leigo como o especialista tendem invariavelmente a cobrir essas entidades matemáticas com formas imaginativas mais ou menos concretas derivadas certamente da experiência sensível. Ou, melhor dizendo, é preciso na verdade cobrir essas entidades intangíveis com imagens sensíveis de um tipo ou de outro para colocá-las ao alcance, por assim dizer, das faculdades mentais. Além disso, no caso do matemático ou do físico instruído, esse procedimento é perfeitamente seguro e tem realmente um papel vital na compreensão das estruturas e relações de tipo matemático. Nas mãos do especialista, a forma concreta se torna um símbolo – uma catalisadora da intelecção, se preferir. O teórico competente sabe muito bem como extrair da imagem concreta uma forma abstrata que possa conter uma analogia com a estrutura matemática que ele deseja compreender. Ele aprendeu a captar o que é essencial e a descartar o restante. Essa é na verdade a “arte oculta” que precisa ser dominada. Seguindo uma aprendizagem mais ou menos extensiva, enfim nos tornamos proeficientes no uso mental do que poderia ser denominado em geral como “auxílios visuais”, que podem variar desde as simples imagens das entidades materiais até coisas como gráficos e diagramas, não esquecendo que mesmo uma fórmula matemática necessariamente porta um aspecto visual e sintático que também tem seu papel a cumprir [8]. Assim, pode-se dizer que, com a matemática e a física, não menos do que com qualquer outro empreendimento humano, “agora vemos como por espelho, em enigma”; falando em geral, as formas sensíveis servem como um “espelho”.

O uso de imagens ou suportes sensíveis, contudo, pode facilmente se tornar ilegítimo e se transformar n’um tipo de idolatria intelectual. Tudo depende de entendermos a diferença entre uma representação visual – o que os escolásticos chamariam de “fantasma” – e o objeto físico ou matemático que ela deve de alguma forma representar. No momento em que se confunde imagem e objeto, acontece o erro; quando os fantasmata são confundidos com a realidade, acontece a fantasia. Mas, pra dizer a verdade, a linha é facilmente atravessada e re-atravessada, tantas vezes que pode ser mais realista falar não de puro conhecimento contra a completa fantasia, mas de graus. Porém, a distinção lógica entre um uso “simbólico” e um “concreto” dos fantasmata mantém sua plena validez e seus direitos, apesar da fraqueza humana.

Há, então, graus de compreensão, e mesmo os físicos não estão de forma alguma isentos da tendência concretizante. Eles também, em outras palavras, tendem vez ou outra a “reificar” o objeto físico (como veremos a partir de agora) através de uma aceitação mais ou menos inocente dos suportes visuais; e até mesmo poderia se discutir que, como regra geral, eles reificam, portanto, muito livremente, desde que os fantasmata em questão não entrem em conflito muito patente com as necessidades lógicas ou matemáticas de sua teoria. E, contudo, mesmo a reificação do tipo mais inócuo é sempre ilegítima; em contraste com um uso genuinamente simbólico dos suportes visuais, ela falsamente projeta qualidades sensíveis sobre um domínio onde essas qualidades não têm lugar. Falando de outra maneira, a reificação “corporaliza” o que é inerentemente incorpóreo e desta forma confunde o plano físico com o corpóreo.

Não se pode negar que a reificação foi comum em toda a era newtoniana. Havia, primeiro de tudo, a mecânica dos corpos rígidos e não-rígidos, de objetos subcorpóreos portanto, que sem dúvida eram rotineiramente reificados através da identificação com as entidades corpóreas correspondentes. Havia também a gravitação, é claro, que não podia ser tratada dessa forma; mas esse fato era percebido como uma anomalia. O próprio Newton tentou (no Opticks) explicar a força gravitacional em termos da pressão gradiente de um fluído interplanetário hipotético; mas ele também reconhecia com admirável clareza que, n’um sentido técnico ou computacional, a questão não tinha relação nenhuma com a física. Para calcular o movimento dos corpos sob a ação da força gravitacional, a única coisa que importa é a lei matemática que descreve como que uma “partícula de massa” afeta outra; e Newton tinha boas razões para sustentar que sua própria lei da gravitação tinha liquidado com esse assunto de uma vez por todas.

A ânsia por explicações mecanistas, contudo, não cedeu. Era uma época em que os homens da ciência olhavam com expectativa para a Mecânica como a chave para resolver praticamente todos os fenômenos; e essa Weltanschauung, como sabemos, realmente obteve suas vitórias. Além de suas descobertas primárias – as leis do movimento e da gravidade e a conseqüente explicação das órbitas planetárias –, o próprio Newton foi pioneiro em uma acústica, que, com efeito, reduzia o som a um fenômeno da mecânica contínua, e começou ao menos a especular – muito corretamente – que a temperatura e o calor tinham a ver com a “agitação vibratória de partículas”. É interessante notar que uma segunda teoria do calor, menos feliz, porém não menos mecânica do que a de Newton, fez sua aparição aproximadamente na mesma época e por cerca de duzentos anos foi amplamente aceita. De acordo com esta visão, o calor era supostamente um fluído “sutil, invisível e sem peso” chamado de phlogiston, o qual se pensava de alguma forma permear os corpos e fluir das regiões quentes para as frias, tanto quanto os fluídos comuns fluem por um gradiente de pressão. Somente em meados do século XIX é que a doutrina do phlogiston finalmente foi abandonada em favor da teoria newtoniana, graças ao trabalho de Joule e Helmholtz.

Além dos vários ramos da mecânica – incluindo a ainda problemática teoria do calor – a física newtoniana também compreendia a ótica como um ramo de investigação mais ou menos independente e bem sucedido. Ninguém tinha quaisquer dúvidas sérias de que esse domínio também pudesse eventualmente ser compreendido em termos mecânicos, e de fato existia dois modelos mecanistas – o modelo de onda de Huygens e a teoria corpuscular de Newton – pretendendo explicar o fenômeno da luz.

Havia também uma química rudimentar, à qual Newton, por exemplo, dedicava um imenso esforço. Mas acontece que não havia a menor possibilidade na época de se explicar os fenômenos químicos em termos matemáticos, que dirá mecânicos – o que sem dúvida é a razão porque Newton nunca publicou um tratado separado sobre esse assunto. Contudo, como é de se esperar, Newton e seus colegas inclinaram-se fortemente a uma teoria mecanista dos átomos, que logo veio a ser considerada em círculos mais amplos como um dogma incontrovertível da ciência. Como Voltaire colocou, com seu aplomb de sempre:

Os mais duros corpos são vistos como repletos de furos, ao modo de peneiras, e na verdade é isso o que são. Os átomos são reconhecidos, indivisíveis e imutáveis, princípios aos quais se deve a permanência dos diferentes elementos e dos diferentes tipos de coisass. [9]

Devemos notar, finalmente, que além da mecânica e da ótica – e de um imaginado atomismo – os newtonianos também estavam familiarizados com os fenômenos elétricos e magnéticos de um tipo rudimentar [10]. Por várias razões, contudo, não se pôde fazer muito progresso nesse domínio até o século XIX, quando os meios necessários tornaram-se disponíveis e a pesquisa prosperou, culminando na magnífica teoria de Faraday e Maxwell. E, com a descoberta do campo eletromagnético, a perspectiva mecanista enfim começou a minguar. O conceito de pura estrutura, ou de forma matemática, estava prestes a suplantar as noções mecânicas da época newtoniana. Mas a transição foi gradual. O próprio Maxwell concebia o campo eletromagnético em linhas mecânicas com base em um éter – outro fluído “sutil, invisível e sem peso”, indistinto do malfadado phlogiston – e essa visão foi amplamente aceita por algumas décadas. Em retrospecto, é possível ver que ainda havia dentro da comunidade científica, com efeito, uma poderosa inclinação em favor das explicações mecanicistas e que aparentemente exigiu toda a força do experimento apurado mais o gênio arrojado de Einstein para superar tal propensidade inveterada. Entretanto, a transição se realizou, e agora, por exemplo, já nos reconciliamos com o campo eletromagnético como uma entidade física por seu próprio direito, uma “estrutura” que não pode ser reduzida a categorias mecânicas.

Mas embora tenhamos nos livrado do éter e não mais ansiemos por modelos mecanísticos, ainda temos a necessidade de suportes sensíveis. Assim, o campo eletromagnético, não menos do que qualquer outro objeto físico, deve ser concebido – não em termos mecânicos, claro – mas ainda em virtude das representações adequadas de tipo visual. Como todo aluno sabe, o campo elétrico em um ponto é dado por um vetor, uma entidade matemática que possui um comprimento e uma direção e que pode, conseqüentemente, ser representada por uma seta – uma pequena, de preferência, que possa convenientemente se localizar no ponto em questão. Tendemos, na verdade, a posicionar a seta com a sua “cauda” exatamente no ponto P. Com um pequeno esforço, podemos agora representar um campo elétrico em um dado tempo como uma distribuição tridimensional contínua dessas setas, que mudam seus comprimentos e direções de acordo com as necessidades da teoria matemática. O mesmo pode ser feito com o campo magnético, e portanto com o eletromagnético, que assim exige a adição de duas setas a cada ponto, correspondendo com os componentes elétricos e magnéticos do campo. Para facilitar mais a nossa compreensão, poderíamos até mesmo considerar os vetores elétricos como vermelhos e os magnéticos como azuis, um artifício que permite reproduzir representações impressionantes de uma onda eletromagnética [11]. Não estou sugerindo, é claro, que qualquer um pudesse ser tão simples a tomar o valor nominal da noção de “vetores vermelho e azul”; meu argumento, pelo contrário, é dividido em dois. Primeiro, devemos admitir que pelo menos em um plano mental as representações desse tipo geral são necessárias e realmente legítimas como suporte sensível para o conceito de um campo eletromagnético. E, sendo assim, é em princípio possível – e muito fácil, na verdade – reificar o campo eletromagnético; tudo o que se precisa fazer a esse respeito é esquecer que um vetor elétrico ou magnético em P não é na verdade uma seta, mas algo de um tipo totalmente diferente, que de fato não pode ser “representado” de forma alguma – exceto, é claro, por meio de um artifício, como o de uma seta. Em uma palavra, há um salto a ser feito - e pode não ser fácil saber de fora se uma pessoa “está olhando para o dedo ou para a lua”.

Poderíamos argumentar que de um ponto de vista suficientemente pragmático isso pouco importa; e em geral é verdade. Porém, acontece que, nesse exemplo, a reificação indicada do campo eletromagnético é inadmissível mesmo de um ponto de vista técnico, devido ao fato de que os vetores elétricos e magnéticos não são invariantes de Lorentz. A decomposição do campo eletromagnético em componentes elétricos e magnéticos, em outras palavras, depende da escolha do quadro de referência. E o que é por si só invariante e, portanto, objetivamente real, acaba por ser não um par de vetores em um espaço tridimensional, mas uma chamada 2-forma exterior em um espaço-tempo quadridimensional. Enquanto isso, nossos “vetores vermelhos e azuis” mantém, apesar de tudo, sua validez e utilização como uma representação do campo eletromagnético – contanto que se compreenda que tal representação não deve ser tomada nominalmente, e que mesmo n’um sentido formal ela se aplica apenas dentro de uma classe restrita de quadros de referência. Com relação à 2-forma exterior, esta também se vê necessitada de suportes visuais; mas não existe “representação” – nem uma única representação concreta no espaço e tempo ordinários – com a qual esse objeto matemático possa ser identificado. Em uma palavra, o campo eletromagnético não pode ser reificado em uma forma invariante de Lorentz.

O mesmo se aplica na verdade a outras estruturas invariantes de Lorentz, e portanto à física relativista como um todo. E essa é sem dúvida a principal razão da relatividade nos parecer tão formidável: ela é “difícil” em virtude do fato de não poder ser reificada impunemente. Além disso, quando se trata do mundo micro, o mesmo ocorre até quando a exigência da invariância Lorentz é negligenciada, na medida em que o dualismo onda-partícula evidentemente proíbe a reificação das chamadas partículas. Pois, de fato, esses objetos não podem ser representados consistentemente como partículas, porque no contexto de certos experimentos elas se comportam como ondas; e pela mesma razão, elas não podem ser representadas como ondas. Conseqüentemente, elas não podem ser representadas de forma alguma – e é precisamente isso que nos deixa perplexos.

O que aconteceu em nosso século é que a física foi em seu próprio terreno levada a rejeitar as interpretações ingênuas e a manter uma postura rigorosamente simbólica em relação às representações concretas. Ou, melhor dizendo, ela foi forçada a manter tal postura no domínio das altas velocidades e, acima de tudo, no mundo micro. Quando se trata do domínio físico macro comum, por outro lado, a tendência a reificar ainda se manifesta, mesmo em autores que longamente se queixam sobre o assunto “estranheza quântica” – como se 1024 átomos pudessem ser representados mais facilmente do que um! Deve-se ainda reconhecer que há uma diferença ontológica entre os domínios físico e corpóreo, e que o hiato não pode ser fechado pela mera agregação das chamadas partículas.


Notas

8 – Poderíamos destacar nessa conexão que a linguagem – e, portanto, o pensamento – obviamente possui o seu suporte sensível, ainda que auditivo. Porém, quando se trata da compreensão da estrutura matemática, sem dúvida os símbolos visuais é que cumprem o papel principal.

9 – Veja W. C. Dampier, A History of Science (Cambridge: Cambridge University Press, 1948), p. 167.

10 – Não só Newton reconhecia a força gravitacional e eletromagnética como parece que ele também antecipou as forças nucleares, conforme podemos tirar da seguinte afirmação na 31ª Investigação do Opticks: “As atrações da gravidade, do magnetismo e da eletricidade alcançam distâncias muito sensíveis, e logo foram observadas pelo olhar comum, e pode haver outras que alcançam distâncias tão pequenas que até agora escaparam à observação.”

11 – Só precisamos, é claro, levar em consideração a dependência do tempo do campo. Isso pode ser feito, por exemplo, através da exibição de um gráfico animado.

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