sexta-feira, 23 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte III

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html

§ 4.1 A tabulação
A forma mais simples de tabela é a lista. Duas ou mais listas que devem se corresponder lateralmente são mais fáceis de se ler se forem colocadas em uma estrutura que torne explícitos os paralelos. As tabelas foram muito comuns na Idade Média; cada saltério ou livro de horas tinha o seu calendário, por exemplo, e estes eram dispostos em uma trama linear adornada com elementos decorativos. A tabulação dos conceitos ao invés de dados cronológicos podia ser apresentada da mesma forma, embora geralmente se fizesse mais positivo e geométrico o entorno decorativo para que os termos paralelos ficassem claramente delineados. Consequentemente, a própria tabela se tornava uma obra de arte abstrata; em contrapartida, a arte representacional da Idade Média tomava emprestado os padrões composicionais: o desenho de muitos vitrais é flagrantemente tabular, como também o são os de diversos livros de gravura medievais. [42] Apesar das tabelas serem geométricas em forma, os seus princípios são aritméticos; as correspondências são menos espaciais ou conceituais do que baseadas em um número equivalente de partes. Esse fator era para ser explorado ilustrativamente em esquemas mais complexos, mas algumas tabelas apresentam paralelos que parecem existir somente em termos numerológicos. A Arbor sapientiae, com a sua relação entre as sete Artes Liberais e as sete Idades do Homem, é um exemplo; a criança pode aprender a gramática de modo adequado, mas é ridículo sugerir que o estudo da Astronomia seja a prerrogativa da idade avançada. Da mesma forma, são incompreensíveis os paralelos entre as sete Horas Canônicas, os sete Atos da Paixão e os cinco Sentidos mais o Consentimento e o Livre-Arbítrio (figura 9), a menos que sejam adicionadas incrições explicativas para ligar os tópicos de maneira conceitual e visual. O resultado é um tipo de esquema tipográfico elevado, apresentando de maneira decorativa uma série de afirmações com forma sintática idêntica; na verdade, uma variante da primeira classe de auxílio visual acima descrita, mas compartilhando algumas das características do diagrama geométrico. O mais elaborado desses epítomes utiliza uma lógica formalista comparável ao método escolástico, com frases formulaicas ligando conceitos que levam (quae ducit ad ...) e contrariam (quae est contra ...) um ao outro, funcionando como syncategoremata (figura 10). A complexidade aparente dessas tabelas é, contudo, desmentida pelas correspondências numerológicas elementares nais quais se fundam.
§ 4.2 A “Scala virtutis”
Diferente da divisio, a lista não sugere automaticamente uma imagem representacional. Entretanto, se ela discriminasse os tópicos em uma ordem ascendente, poderia muito bem ser disposta nos degraus de uma escada (cf figura 12, canto inferior esquerdo) ou de uma escadaria. A principal ilustração da Escada Celestial de João Clímaco (final século VI) mostra as Virtudes inscritas em uma escada que vai da Terra ao Céu.[43] Uma escada similar, que aparece ao lado da lista de conteúdos no começo do livro, revela uma das limitações desse tipo de imagem: como os degraus correspondem exatamente aos tópicos indicados, a escada é lida de baixo para cima, a lista na direção contrária. A Escada das Virtudes aparece como uma ilustração de outros textos, nomeadamente o Speculum virginum do século XII, um tratado educacional tornado mais palatável pelo uso que faz de esquemas e desenhos emblemáticos.[44] Uma passagem no De consolatione philosophiae (c523) de Boécio impelia os desenhistas a utilizar a mesma imagem para dispor as sete Artes Liberais.[45] Como a árvore, a escada oferecia um motivo que reforçaria a mensagem das inscrições: nesse caso a elevação moral e o progresso educacional. Entretanto, uma imagem inerentemente direcional como essa tinha suas desvantagens, como mostra o exemplo de João Clímaco. Apenas a roda multivalente (cf seção 5.1) era suficientemente versátil para cumprir com os requisitos da exposição diagramática, e esse foi o desenho mais amplamente utilizado no repertório geométrico. No entanto, diversas outras formas representativas foram ocasionalmente empregadas com sucesso.
§ 4.3 A “Turris sapientiae”
Uma delas era o edifício esquemático. A referência bíblica aos sete pilares da casa construída pela Sabedoria inspirou vários edifícios alegóricos,[46] alguns dos quais legendados como diagramas. A gravura final no Speculum virginum (figura 11) busca combinar uma forma arquitetônica com a de uma árvore: as folhas da árvore inscritas com os Dons do Espírito Santo, e cada uma associada a sete conjuntos de itens que incluem as petições da Oração do Pai Nosso, as Virtudes e as Beatitudes.[47] Aqui a alusão aos sete pilares da Sabedoria é implicada por uma inscrição; já outros edifícios esquemáticos são independentes do texto bíblico, e parecem dever mais às molduras arquitetônicas que convencionalmente envolviam os índices remissivos no começo dos livros do evangelho. A Arbor historiae de Pedro de Poitiers, por exemplo, inclui alguns elementos arquitetônicos, mas eles funcionam simplesmente como molduras e não possuem nenhum significado alegórico. Há, porém, a imagem chamada de Torre da Sabedoria, criada no final do século XIII, [48] um edifício esquemático no qual a função dos membros arquitetônicos realça o sentido da informação tabulada (figura 12). O centro da Torre é uma trama tabular sob a forma das 12 fileiras da maçonaria. Cada fileira é inscrita com uma Virtude e nove injunções morais. O edifício também possui portas, janelas, degraus de entrada e ameias, cada qual recebendo um significado alegórico; o seu alicerce é a Humildade, os seus quatro pilares as quatro Virtudes Cardeais. As partes do edifício ainda são marcadas com os termos arquitetônicos apropriados: bases, colunas, capitéis, etc. O edifício moralizado era um tópico convencional para os pregadores medievais (um fato que algumas vezes levou os críticos à má interpretação da estrutura eclesiástica), e a Torre é obviamente influenciada por esta prática.[49] Mas ela é fundamentalmente um diagrama tabular, como se revela pela presença, em alguns exemplos, de um código alfabético à esquerda e uma nota explicando como ele deve ser usado para interpretar a elevação.
§ 4.4 O texto e a imagem
A Torre da Sabedoria é um desenho autônomo, não associado a nenhum texto particular. A maioria dos diagramas emblemáticos, entretanto, são relacionados à literatura exegética. A pomba, o querubim (figura 8 frente) e os quatro Rios do Paraíso são algumas das imagens que forneceram a estrutura para a classificação dos tópicos, e cada uma está conectada a um texto que se lê como um comentário a ela. [50] No entanto, essas imagens são ininteligíveis sem a explicação verbal, e às vezes aparecem independente dela.[51] É uma boa pergunta se as gravuras inspiraram o texto ou vice-versa. Embora nos estudos iconográficos seja procedimento ortodoxo tentar encontrar um texto ou programa literário por trás de uma composição pictórica, [52] é falácia supor que necessariamente exista alguma. Os textos que acompanham as árvores das Virtudes e Vícios descrevem-nas em detalhe, [53] mas, como se viu, essas árvores derivam da divisio estemática antiga, não de um registro escrito. Elas pertencem a uma tradição de auxílios visuais capazes de funcionar independentemente de uma exposição em prosa, e também em conjunto com uma. Relatos contemporâneos contam de eruditos concebendo precisamente esses desenhos esquemáticos, evidentemente como entidades autônomas.[54] Muitas das imagens discutidas aqui devem ter-se originado dessa forma, quer como novas criações, como a Torre da Sabedoria, quer como adaptações de diagramas existentes. A figura dos Rios do Paraíso, por exemplo, deriva-se em grande parte de um diagrama meteorológico circular dos quatro ventos principais e seus subsidiários.[55] Diagramas circulares como esse não eram desenhados inicialmente como exposições analíticas, mas como ilustrações esquemáticas de conceitos cósmicos. Contudo, na Idade Média eles foram admitidos no repertório de formas usadas na exegese diagramática de idéias filosóficas e teológicas.


Notas

42. Para composições tabulares em vidro, veja os esquemas de formas composicionais em M H Caviness The Early Stained Glass of Canterbury Cathedral Princeton 1977, figuras de apêndice 1ff; cf E J Beer Die Rose der Kathedrale von Lausanne und der kosmologische Bilderkreis des Mittelalters Bern 1952. Típicas Bíblias ilustradas geralmente empregam um arranjo tabulado: A De Laborde Etude sur la Bible moralisée illustrée Paris 1911–27; Reallexikon zur deutschen Kunstgeschichte Stuttgart 1937–, sv Armenbibel.

43. J R Martin The Illustration of the Heavenly Ladder of John Climacus (Studies in Manuscript Illumination v) Princeton 1954.

44. E Greenhill Die geistigen Voraussetzungen der Bilderreihe des Speculum Virginum. Versuch einer Deutung (Beiträge zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters Bd xxxix, Heft 2) Münster 1962; Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 62ff; para uma diferente versão da imagem, veja R Green et al Herrad of Hohenbourg. Hortus Deliciarum (Studies of the Warburg Institute 36) London-Leiden 1979, p. 201, pl 124.

45. O texto descreve uma personificação da Filosofia cujo manto está marcado com níveis, como em uma escada (“in scalarum modum gradus”; De consolatione philosophiae I pr 1 L Bieler (ed), Turnholt 1957; PL 63, 589); P Courcelle La consolation de philosophie dans la tradition littéraire Paris 1967. Cf o uso de Raimundo Lúlio das imagens de escada em um contexto filosófico: J N Hillgarth Ramon Lull and Lullism in Fourteenth-Century France Oxford 1971, pp. 222, 452–54, pl V.

46. A casa da Sabedoria é provavelmente representada pela estrutura de sete pilares na inicial ao Eclesiástico em Arras, Bibl de la Ville MS 559, t iii, fol 1r; S Schulten “Die Buchmalerei des 11 Jhs im Kloster St-Vaast in Arras” Munchner Jahrbuch der bildenden Kunst ser 3, vii, 1956, p. 79, figura 50. Os bustos nos topos dos pilares podem representar as sete Artes Liberais. Os nomes de seis das Artes estão inscritos em um desenho de uma torre em Boulogne, Bibl mun MS 40, fol 98r. Também aparecem torres ems figures astronômicas; aí, contudo, a alusão não é à casa da Sabedoria, mas à importância das fontes árabes na transmissão das idéias científicas para a Europa. A palavra árabe para signo zodiacal, burj, também significa “torre” e foi traduzida e ilustrada como “turris”; Burnett, op cit nota 64 abaixo, p. 81.

47. A Watson “The Speculum virginum with Special Reference to the Tree of Jesse” Speculum iii, 1928, p. 455. O setenários também aparecem na Árvore de Jessé que abre o Speculum.

48. O seu inventor pode ser plausivelmente identificado como Franciscus Bonacursus, arcebispo de Tiro, morto em 1274; F Saxl “A Spiritual Encyclopaedia of the Later Middle Ages” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes v, 1942, p. 110.

49. J Sauer Symbolik des Kirchengebäudes und seiner Ausstattung in der Auffassung des MittelaltersThe Journal of Aesthetics and Art Criticism xx, 1961–62, pp. 3–23. R Krautheimer “Introduction to an ‘Iconography of Mediaeval Architecture’”, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes v, 1942, pp. 1–33, é um útil corretivo. Freiburg i Br 1924, discute a interpretação alegórica dos edifícios na literature exegética medieval. O número de historiadores da arquitetura que acreditam que uma capela-mor inclinada allude à cabeça decaída de Cristo na cruz, ou que uma porta externa em uma corridor da nave representa a ferida em Seu flanco, é menor do que já foi, mas esse tipo de interpretação ainda pode ser encontrado. Para um exemplo alarmante, veja P Fingesten “Topographical and Anatomical Aspects of the Gothic Cathedral”

50. A pomba está associada aos capítulos de columba do bestiário de Hugo de Folieto, PL 177, 15–20; C de Clercq “Le rôle de l’image dans un manuscrit medieval (Bodleian, Lyell 71)”, Gutenberg-Jahrbuch 1962, pp. 23–30. O querubim aparece com dois textos de sex alis cherubin que frequentemente eram publicados juntos; PL 210, 266–280. Os prováveis autores dos tratados são Alan de Lille e Clemente de Llanthony; M-T d’Alverny Alain de Lille. Textes inédits (Etudes de philosophie médiévale lii) Paris 1965, pp. 154–55. Para os vários textos sobre os Rios do Paraíso, veja Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 59–67. Veja também Katzenellenbogen, op cit nota 27 acima, pp. 62, 69.

51. O querubim, por exemplo, aparece no saltério mencionado na nota 57 abaixo, em muitos dos compêndios de tabelas relacionados e nas “enciclopédias espirituais” descritas por Saxl (nota 48 acima). Uma imagem monumental dele pode mal ser discernida em uma parede da Casa do Capítulo da Abadia de Westminster.

52. Cf E Panofsky Studies in Iconology New York-Evanston 1962, p. 11: “Iconographic analysis, dealing with images, stories and allegories instead of with motifs, presupposes ... a familiarity with specific themes or concepts as transmitted through literary sources....” Vale observar que, entre esta confusão de ênfases, as duas últimas palavras não são destacadas; o número de estudos iconográficos que buscam com implacável vigor as potenciais fontes literárias sugerem o contrário.

53. Ps-Hugh of S Victor De fructibus carnis et spiritus PL 176, 997–1006; R Bultot “L’auteur et la fonction littéraire du ‘de fructibus carnis et spiritus’”, Recherches de Théologie ancienne et medievale xxx, 1963, pp. 148–54; as árvores são também descritas e ilustradas no Speculum virginum; veja nota 44 acima.

54. Em 986, Gerberto de Reims descreveu como ele fez a figurae que ilustra a arte da retórica para o uso no ensino; Ep 92 J Havet (ed), Paris 1889; PL 139, 224. Para mais auxílios educacionais concebidos por Gerberto, veja O G Darlington “Gerbert, the Teacher” The American Historical Review lii, 1947, pp. 456–76; sobre outros recursos pedagógicos no início da Idade Média, veja Beaujouan, op cit nota 10 acima. Esses auxílios visuais foram usados em salas de aula por toda a Idade Média, e diz-se que Pedro de Poitiers desenhou arbores das Virtudes e Vícios similares à sua Arbor historiae; Moore, op cit nota 36 acima, p. 168.

55. Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 60; para ilustrações de rosas-dos-ventos, veja J Baltrusaitis “Roses des vents et roses des personnages à l’époque romane” Gazette des Beaux-Arts ser 6, xx, 1938, pp. 265–76.

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