quarta-feira, 14 de abril de 2010

Alguns breves argumentos em favor do dualismo, Parte II

Tradução do blog http://edwardfeser.blogspot.com/


Seguindo Aristóteles, a tradição escolástica reconhecidamente defendeu que as causas finais – direção a um objetivo, intencionalidade, fins naturais – permeiam o mundo natural. Contrário à crença popular, isso não significa que eles pensassem que tudo no mundo tem um propósito ou função no mesmo sentido em que os órgãos biológicos têm propósitos ou funções. Logo, não é certo acusá-los de pensar, absurdamente, que montes de sujeira, asteróides, cordilheiras e coisas do tipo devem simplesmente ter algum papel dentro do universo como um todo, análogo em certo sentido ao papel que os corações e rins têm no corpo. Funções do tipo exercidas pelos órgãos corporais constituem somente um tipo, e relativamente raro, de causalidade final. Nem eles pensavam que a causalidade final fosse em geral associada a algo como a consciência. Para um aristotélico, dizer que uma planta por virtude da sua natureza “quer” crescer é só uma figura de linguagem. Literalmente falando, é claro que a planta não quer coisa alguma, já que ela é totalmente inconsciente. Só em nós e em certos animais que as causas finais são associadas à consciência.

O que os escolásticos tinham em mente está resumido no dito de Aquino de que “todo agente age em vista de um fim”, também conhecido como “princípio da finalidade”. Por um “agente” ele quer dizer aquilo que provoca ou causa algum efeito. E o que ele está dizendo é que quando uma certa causa gera um certo efeito ou série de efeitos como num tipo de lei (conforme diríamos hoje), isso só se dá porque ela naturalmente “aponta para” ou é “dirigida a” tal efeito ou série de efeitos como seu fim próprio. Por exemplo, um palito de fósforo quando riscado irá, a menos que se previna (p. ex. jogando água), gerar chama e calor – e especificamente chama e calor, ao invés de gelo e frio, ou cheiro de lilases, ou efeito nenhum. Ele possui um poder causal inerente de provocar aquele efeito em específico. O que Aquino e os outros escolásticos argumentaram é que, se não reconhecemos a existência de tais poderes inerentes e se não reconheçemos que sempre que uma certa causa eficiente A gera o seu efeito B tal só se dá porque a geração de B é a causa final ou fim natural de A, então não temos como tornar inteligível o exato porquê de A gerar B em específico ao invés de outro efeito ou de nenhum outro efeito. A existência de causas finais é, nesse sentido, uma condição necessária para a existência de causas eficientes – isto é, da causação como costumam compreender os filósofos modernos. Esta é uma razão pela qual Aquino considerou a causa final como “a causa das causas”.

Ora, a filosofia moderna, em particular a sua concepção de ciência, é definida mais do que tudo por sua rejeição às causas finais. Com efeito, conforme filósofos como William Hasker e David Hull têm destacado, neste momento da história da ciência o que permanece da imagem “mecanística” do mundo natural herdada dos primeiros modernos de fato não é nada alem de tal rejeição. Como defendo em The Last Superstition, nunca houve uma justificativa filosófica séria para ela; essa rejeição era, e ainda é, fruto de uma motivação mais ideológica do que intelectual. Além disso, há, no meu ponto de vista (e, de novo, como eu argumento no TLS), razões esmagadoras para considerá-la um erro. Uma dessas razões é a de que, como o famoso embaraço de Hume ilustra, a causação de fato tornou-se seriamente problemática na filosofia moderna, exatamente como a análise de Aquino nos levaria a esperar que se tornasse, dado o abandono das causas finais.

O abandono das causas finais também contribuiu de forma crucial para a criação do “problema mente-corpo”, algo que não existia, certamente não em uma forma familiar à dos filósofos contemporâneos, antes da rejeição dos modernos ao esquema metafísico aristotélico-escolástico. Pois insistir que o mundo material é totalmente desprovido de causas finais – isto é, desprovido de qualquer coisa que inerentemente “aponte para” ou se “dirija a” qualquer coisa além de si – é implicitamente negar que a intencionalidade possa ser material, pois a intencionalidade, claro, é só a capacidade da mente de apontar ou ser dirigida para algo além de si, como acontece no pensamento (veja meu post anterior da série). Portanto, insistir que o mundo material é desprovido de quaisquer causas finais inerentes enquanto ao mesmpo tempo se reconhece a existência da intencionalidade é implicitamente comprometer-se com o dualismo. Na verdade, esta é certamente uma razão pela qual Descartes, um dos pais da revolução “mecanística” na ciência, era um dualista. Longe de ser uma forma de resquício pré-científico, o dualismo do tipo cartesiano no todo é uma conseqüência lógica da virada para o mecanismo que definiu a revolução científica.

A única maneira de se apegar à concepção mecanística da natureza ao mesmo tempo em que se rejeita o dualismo é, assim, negar a existência da intencionalidade. E é por isso que, como defendeu John Searle, todas as formas existentes de materialismo na verdade implicitamente negam a sua existência, e, portanto (eu diria), acabam sendo formas disfarçadas de materialismo eliminativo. Isso é mais ou menos admitido por Jerry Fodor quando ele escreve, como fez no Psychosemantics, que “se a ‘aboutness’ [i. e. a intencionalidade] é real, ela deve ser de fato outra coisa”. Ou seja, a intencionalidade per se simplesmente não pode ser real a partir da concepção mecanística do mundo material que Fodor e todos os materialistas herdaram dos primeiros filósofos modernos. Por isso, o máximo que o materialista pode fazer é tentar substituí-la por alguma ersatz fisicalisticamente “respeitável”. Mas isso é simplesmente um materialismo eliminativo travestido de “psicologia folk”; e o materialismo eliminativo, por mais que você o vista, é simplesmente incoerente. (ainda, novamente, veja o TLS, em particular o capítulo 6, para os detalhes)

Temos, portanto, outro breve argumento em favor do dualismo, que pode ser resumido assim: se o materialismo é verdadeiro, então (visto que ele se compromete com uma concepção mecanística do mundo material) não há causas finais e, por isso, não há nada que inerentemente “aponte para” ou seja “dirigido a” algo além de si; e neste caso, não pode haver nada como a intencionalidade; mas há algo como a intencionalidade; logo, o materialismo não é verdadeiro.

Esse é um argumento em favor do dualismo se, devo dizer, ao menos em primeiro lugar for admitido que o mundo material existe (o que, claro, todos, exceto alguns aderentes do idealismo, admitem), porque ele implica que há características do mundo além das materiais. A única forma de evitar as conseqüências dualísticas (além de optar pelo eliminativismo ou idealismo) seria reconhecer que os aristotélicos estavam certos no fim das contas, e que as causas finais são uma característica real da realidade material. Mas isso, é claro, seria abandonar toda a moderna interpretação mecanística-cum-materialística da ciência. E nem se conseguiria evitar o dualismo por muito tempo, pois seriam simplesmente abertas as portas para a versão tomista ou hilemórfica do dualismo (oposta à cartesiana). Mas essa é uma história para outra hora – uma história que, como outros detalhes do argumento aqui esboçado, pode ser encontrada (se eu puder ser perdoado por mais uma propaganda descarada) no The Last Superstition.

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