sábado, 17 de abril de 2010

Alguns breves argumentos em favor do dualismo, parte IV

Tradução do blog http://edwardfeser.blogspot.com/

Os argumentos em favor do dualismo considerados até agora nesta série são mais ou menos “modernos” ao invés de “clássicos”. Eles focam-se nos aspectos da mente mais familiares aos filósofos contemporâneos, a saber, a intencionalidade (o significado ou direção além de si mesmos da mente e similares) e os qualia (os aspectos de uma experiência consciente diretamente cognoscíveis apenas pela instrospecção, e portanto apenas por quem sofre a experiência). E eles sustentam que, dada a concepção mecanista da matéria admitida pelos filósofos modernos (tanto os dualistas como os materialistas), essas características da mente são necessariamente imaterais.

Os argumentos clássicos para a imaterialidade da mente, quero dizer, do tipo que era comum dentro da filosofica ocidental antes de Descartes e defendido por alguns como Platão, Aristóteles e Aquino, são muito diferentes. Você não irá encontrar estes pensadores incursando sobre os qualia ou a intencionalidade, porque as próprias noções de qualia e intencionalidade, como comumente entendidas, são artefatos da re-concepção mecanista do mundo material. “Qualia” é o que você ganha quando nega que a matéria possa ter algo como as qualidades sensíveis que ela parece ter na experiência comum. “Intencionalidade” é o que você ganha quando insiste que não há no mundo material qualquer coisa que lembre a causalidade final, quando, por isso, você vai adiante e coloca todo o sentido e propósito dentro da mente, e quando também, por sua vez, você vai adiante e caracteriza os estados mentais como “representações” internas de uma realidade externa. Eu falei um pouco sobre isso tudo em posts anteriores, e é um tema que exploro em maiores detalhes no The Last Superstition.

Para Platão, Aristóteles, Aquino e outros antigos e medievais, a principal razão porque a mente deve ser imaterial está em sua afinidade com seus objetos primários do conhecimento, isto é, os universais, que são por si mesmos imateriais. Quando adequadamente elaborado e compreendido, esse tipo de argumento é, na minha opinião, decisivo. Ainda assim, ele recebeu pouca atenção dos filósofos contemporâneos, em parte, considero, devido à sua ignorância geral sobre o que os antigos e os medievais pensavam, e em parte porque a lógica da revolução mecanística inaugurada por Galileu, Descartes, Hobbes, Locke, et al. os empurrou para um espaço conceitual tão emperrado e estreito que eles mal conseguem conceber qualquer alternativa. O resultado é que quando eles de fato se dirigem aos argumentos dos antigos e medievais (a respeito deste assunto ou de qualquer outro), quase sempre os distorcem da maneira mais grotesca, fazendo uma leitura anacrônica cujas suposições só têm sentido se tomarem como pressupostas concepções de matéria, mente, causação, etc. que os pensadores mais antigos em questão teriam considerado profundamente confusas e equivocadas. (Assim, Aristóles é transformado em um “funcionalista” quanto à mente, a Quinta Via de Aquino é lida como se fosse uma antecipação do frágil “argumento do design” de Paley, etc.)

No The Last Superstition, eu explico detalhadamente porque alguma forma de realismo em relação aos universais é racionalmente inevitável. (Se é a forma platônica de realismo, a aristotélica, ou a escolástica que devemos endossar é uma outra questão, irrelevante para os presentes propósitos) Eu não vou tentar resumir o problema aqui, mas os exemplos a seguir devem bastar para dar uma noção de como tem de proceder um argumento da realidade dos universais à imaterialidade da mente. Os leitores que quiserem ver um tratamento mais aprofundado devem consultar o TLS.

Observe que quando você pensa sobre a triangularidade, como pode fazer ao provar um teorema geométrico, você está necessariemente contemplando a triangularidade perfeita, e não uma mera aproximação dela. A triangularidade que o seu intelecto capta é inteiramente determinada ou exata; por exemplo, o que você capta é a noção de uma figura plana fechada com três lados perfeitamente retos, ao invés de algo que pode ou não pode ter lados retos ou que pode ou não pode ser fechado. É claro, a sua imagem mental de um triângulo pode não ser exata, mas indeterminada e vaga. Porém, captar alguma coisa com o intelecto não é o mesmo que formar uma imagem mental dela. Pois qualquer imagem mental de um triângulo será necessariamente de um triângulo isósceles em específico, ou de um escaleno, ou de um equilátero; mas o conceito de triangularidade que o seu intelecto capta se aplica igualmente a todos os triângulos. Qualquer imagem mental de um triângulo terá certas características, como uma cor particular, que não fazem parte do conceito de triangularidade em geral. Uma imagem mental é algo privado e subjetivo, enquanto o conceito de triangularidade é objetivo e captado por muitas mentes ao mesmo tempo. E assim se dá com outras coisas. Em geral, captar um conceito simplesmente não é o mesmo que ter uma imagem mental. (Novamente, veja o TLS para mais detalhes)

Agora, o pensamento que você tem sobre a triangularidade quando a capta deve ser tão determinado ou exato quanto a própria triangularidade, do contrário ela não seria um pensamento sobre a triangularidade em primeiro lugar, mas apenas um pensamento sobre uma aproximação da triangularidade. Contudo, as coisas materiais nunca são determinadas ou exatas dessa forma. Qualquer triângulo material, por exemplo, é sempre apenas uma aproximação da triangularidade perfeita (já que ele é obrigado a ter lados menos do que perfeitamente retos, etc, mesmo que isso seja indetectável a olho nu). E, em geral, os símbolos e as representações materiais são sempre em certa medida inerentemente vagos, ambíguos, ou inexatos, suscetíveis a várias interpretações alternativas. Segue-se, portanto, que qualquer pensamento que você tenha sobre a triangularidade não é algo material; em particular, não é um processo que ocorre no cérebro. E o que sucede com a triangularidade sucede com qualquer pensamento que envolva a captação de um universal, pois os universais em geral (ou ao menos a maioria deles, no caso de alguém querer discutir sobre isso) são determinados e exatos de uma forma que objetos e processos materiais não podem ser.

Como defendeu James F. Ross, alguns dos mais conhecidos argumentos da filosofia analítica do século XX reforçam esse entendimento. Por exemplo, o argumento de Quine para a indeterminância da tradução e o argumento de Kripke sobre a “quadição” mostram que em princípio não há nada nos fatos sobre o comportamento ou a fisiologia humana ou em qualquer outro conjunto de fatos fisicalisticamente “respeitáveis” que possa determinar se por (digamos) “gavagai” eu quero dizer “coelho” ou “parte não destacada de coelho”, ou se estou realizando uma adição ao invés de uma “quadição”. De fato, estes argumentos mostram que essa mesma indeterminância afeta tudo o que eu diga ou faça. Por exemplo, se eu usar o modus ponens ao defender um argumento típico de Quine – ou Kripke – , o que eu usarei é de fato o modus ponens e não uma mera aproximação do modus ponens; certamente é melhor que seja o modus ponens e não uma mera aproximação, do contrário meus argumentos serão realmente inválidos, pois mesmo para negar que eu jamais uso o modus ponens e sim que apenas o aproximo é necessário que eu primeiro capte determinadamente o que é o modus ponens antes de julgar que eu nunca realmente o utilizo. Da mesma forma, se alguém quisesse negar que jamais captamos realmente a triangularidade perfeita, teria primeiro que captá-la ele próprio antes de emitir o juízo (obviamente falso, neste caso) de que ela é algo que nunca captamos.

Então, não há um sentido coerente dedutível da sugestão de que todos os nossos pensamentos são indeterminados. Mas se ao menos alguns deles são determinados, e nenhum processo físico ou grupo de fatos físicos é jamais determinado, segue-se que no mínimo alguns de nossos pensamentos não são físicos. (o argumento de Ross, por falar nisso, é desenvolvido elegantemente em seu artigo “Immaterial Aspects of Thought,” publicado no Journal of Philosophy in 1992. Uma versão posterior se encontra disponível em seu website, na forma de um capítulo do seu manuscrito Hidden Necessities)

Esse é um caminho pelo qual pode ser desenvolvido um argumento do realismo sobre os universais à imaterialidade da mente. Há outros caminhos também, os quais eu irei resumir em posts futuros.

O que quer que se pense de argumentos como esse, é importante entender que eles (como os outros argumentos que apresentei nesta série) não são de um tipo que venha a ser minado pelas descobertas da neurociência ou, nesse sentido, por qualquer outra ciência empírica. Eles não são argumentos de “alma das lacunas”, que pretendem dar uma explicação semi-científica de algum fenômeno psicológico sobre os quais não tenhamos obtido dados empíricos suficientes para explicar de uma forma materialista. Pelo contrário, eles pretendem mostrar que é em princípio impossível, conceitualmente impossível, que o intelecto seja explicado de uma forma materialista. Se há algo em que esses argumentos funcionam é em estabelecer conclusivamente que o intelecto não poderia ser identificado com processos no cérebro mais do que dois e dois poderiam dar cinco. Se eles estão errados, estariam errados da forma que alguém pode errar ao tentar realizar uma prova geométrica, e não em virtude de ter falhado em explicar esta ou aquela descoberta das pesquisas sobre o cérebro.

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