quinta-feira, 29 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte IV

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html 
§ 5.1 As “Rotae”
O valor de um círculo como um veículo pictórico para expressar conceitos pode parecer inferior ao de uma árvore ou ao de uma tabela colunar. Se dividido de forma concêntrica, ele oferece somente uma hierarquia de categorias desde o centro até a circunferência; se de forma radial, uma seqüência recorrente, sem nenhum ponto de partida definido. Contudo, essa combinação paradoxal de hierarquia e continuum cíclico foi fundamental para muitas teorias medievais. Os quatro elementos dos quais se acreditava consistir toda a matéria, por exemplo, não eram apenas uma seqüência ascendente com a terra no fundo e o fogo no topo; cada elemento compartilhava uma de suas duas qualidades com outro: terra e fogo são secos, embora um seja frio e o outro quente. Assim, eles podiam ser dispostos no formato concêntrico ou radial.[56]

Além disso, um círculo dividido radialmente e concentricamente apresenta um esquema que é basicamente uma tabela colunar contínua. Os conceitos são estratificados e alinhados, mas falta o elemento direcional da tabela ou da árvore. Esses esquemas eram usados para dispor extensas séries de conceitos numericamente relacionados: a Virtude, os Sacramentos, as Obras de Misericórdia, etc (figura 13). Às vezes, um sinal marcava o ponto no qual o leitor devia começar, mas o próprio formato não tinha começou ou fim, podendo ser lido em sentido horário ou anti-horário. O conteúdo e o contexto de algumas dessas rotae (o material teológico nos livros devocionais) [57] sugerem que elas funcionavam não só como tabulações de dogmas importantes, mas também como objetos de contemplação, a forma circular focando a concentração como uma mandala.

A rota tinha outras vantagens: ela poderia participar das qualidades de uma roda real, simbolicamente, como na Roda da Fortuna ou nas Rodas da Verdadeira e da Falsa Religião, [58] ou praticamente, quando um ou mais círculos cortados, chamados volveles, eram ligados à pagina de um manuscrito por um fio de membrana, e podiam ser girados como um tipo de máquina de calcular (figura 14, cf figura 18). Ela era também um dos desenhos diagramáticos mais bem estabelecidos e difundidos. Tornou-se corrente na Idade Média desde as ilustrações até os epítomes do conhecimento, dos quais o arquétipo medieval era o De natura rerum de Isidoro de Sevilla (560–636); os desenhos das rodas formavam uma parte tão proeminente do livro que ele era conhecido também como o Liber rotarum.[59] Essas e outras rotae similares figuram extensivamente nos livros escolares e manuais de aprendizagem, e na Idade Média teriam sido uma parte tão familiar da experiência visual do homem letrado quanto é o gráfico para o leitor moderno.[60]
§ 5.2 A Astronomia
A razão original para o uso das rotae nos trabalhos científicos é auto-evidente: elas forneciam o formato óbvio para expor conceitos cósmicos tais como o universo geocêntrico, a passagem cíclica dos meses, o zodíaco e as fases da Lua. O diagrama astronômico básico é o esquema das esferas, com a Terra no centro cercada pelos planetas e pelas estrelas fixas. Ele podia ser desenvolvido de forma a incluir os outros elementos entre a Terra e os planetas, e mais esferas além das estrelas fixas (figura 15). A elaboração de um tipo diferente envolvia a adição de motivos figurativos: uma boca do inferno no centro da Terra, ou Deus e seus anjos no Empíreo. Por outro lado, uma afirmação adicional estritamente astronômica podia ser incorporada, como as fases da lua ou a duração das órbitas planetárias (figura 1). Mas mesmo quando o diagrama oferecia dados puramente científicos no contexto de um tratado técnico como o Tractatus de sphera de Sacrobosco (início do século XIII), ele podia ser adornado com motivos figurativos ou ornamentais completamente decorativos (figura 15, cf figura 23).[61] Em compilações mais deliberadamente populares, como o vernacular Image du monde,[62] esses esquemas adornados recebiam um pródigo tratamento artístico, sendo executados em custosos pigmentos e em ouro. Às vezes isso era feito em detrimento de sua função didática, e os resultados são desenhos ornamentais inexpressivos; mas outros, sendo trabalho de mestres pintores, combinam a precisão de um diagrama científico com a fantástica beleza da arte decorativa gótica, e são diferentes de quaisquer outras pinturas medievais (figura 16). Mesmo quando o desenhista se contentava em executar um diagrama linear sem adornos, os tratados técnicos produzidos pelas oficinas de alta qualidade continham figuras executadas com primor, econômicas nas linhas e elegantes nas letras (figura 17). Ao exemplo dos primeiros instrumentos astronômicos, eles combinavam a utilidade com a beleza; e, de fato, vários estão diretamente relacionados com aparelhos científicos. Os discos rotativos nos manuscritos do Equatorium de Campano de Novara (morto em 1296) são réplicas de partes de uma enorme máquina para determinar a posição dos planetas. Provavelmente o instrumento nunca foi construído, mas os discos para cada planeta são partes funcionais, atuando como um computador analógico. [63]
§ 5.3 A “Ars demonstrativa”
O disco rotativos também podiam ser empregados como uma ferramenta lógica. Conforme foi mencionado, uma versão simplificada do Ars generalis de Raimundo Lúlio foi exposta em uma série de árvores; mas a ars original era inscrita em tabelas e rotae, algumas das quais giravam.[64] A ars luliana existe em várias formas, mas todas elas contêm um alto valor matemático e são eminentemente apropriadas para a exposição diagramática. As versões mais completas empregam as 23 letras do alfabeto (I/J e U/V são doublets, W é omitido); A–D significam os elementos; A também denota uma rota e uma tabela; S–Z igualmente indicam figuras; o restanto do alfabeto representa um ou mais conceitos e pode ser apresentado em combinações que formulam proposições. As letras B–R representam inicialmente os 16 princípios absolutos que são base da ars: as virtudes arquetípicas ou “dignidades” de Deus. Elas são conectadas por princípios relativos, ou graus de relacionamento, como a diferença, a congruência, o maior, o menor, que funcionam como syncategoremata no sistema luliano. A esses eram adicionados os assuntos, um conjunto compreensivo de tópicos abertos a questões ou à dúvida; e regras, que correspondem aproximadamente às categorias aristotélicas e representam as formas de duvidar. Esses são colocados nas rotae e volveles desenhadas com tintas coloridas. A combinação de rodas e letras cria um tipo de máquina de cifra, fornecendo, em teoria, respostas logicamente consistentes: ela foi criada originalmente como um sistema lógico irrefutável para converter os pagãos. As mais elaboradas formas da ars empregavam 16 rodas; os seguidores de Lúlio tentaram acomodar a essência do sistema em uma única volvele de dois ou três discos, e o seu grau de sucesso indica a versatilidade da rota giratória como uma ferramente especulativa (figura 14). A importância da filosofia de Lúlio excede em muito a dos mecanismos pelos quais ele a expôs. Se estes parecem antecipar o computador, também remetem aos “livros do destino”, instrumentos para adivinhar a sorte originados na Antigüidade.[65] Eles utilizavam tabelas numéricas, códigos alfabéticos e às vezes volveles engrenadas como uma alternativa às letras/números equivalentes em nomes pessoais para predizer o futuro (figure 18). Apesar disso, as figurae da ars de Lúlio lhe são essenciais, e é possível que a sua presença tenha influenciado as várias modificações pelas quais passou desde a primeira Ars compendiosa inveniendi veritatem de c1274 até a última Ars generalis ultima de 1308. Sem dúvida, uma das razões para reduzir o número de “dignidades” de 16 para nove foi permitir que a ars incorporasse os elementos trinitários, que também facilitavam a inscrição em uma rota e o seu alinhamento.


Notas

56. Compare as figuras 15 e 23. Sobre as várias formas pelas quais os elementos poderiam ser dispostos, incluindo uma que se diz estar explicitamente de acordo com os princípios geométricos, veja H Bober “In principio. Creation before Time” De artibus opuscula XL. Essays in Honor of Erwin Panofsky New York 1961, pp. 13–28; Pressouyre, op cit nota 20 acima; Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 37–41.

57. Por exemplo, o chamado Saltério de De Lisle (Londres BL MS Ar 83) inclui tabelas do tipo encontrado nos MSS descritos nas notas às figuras 5 e 9 [estas são dadas separadamente na companion gallery exhibit]; para as ilustrações, veja Ligtenberg, op cit nota 34 acima, figuras 5, 6, 17–21, 23. Uma monografia sobre o Ar 83 está sendo preparada por L F Sandler.

58. Sobre a Roda da Fortuna, veja E Kitzinger “World Map and Fortune’s Wheel: A Medieval Mosaic floor in Turin” Proceedings of the American Philosophical Society cxvii, 1973, pp. 344–73; Courcelle, op cit nota 45nota 50 acima, e Katzenellenbogen, op cit nota 27 acima; sobre as Rodas da Religião, veja de Clercq, op cit acima, pp. 70–72.

59. J Fontaine Isidore de Séville. Traité de la nature Bordeaux 1960 (texto e tradução francesa); PL 83, 963–1018. Sobre as ilustrações, veja Fontaine pp. 15–18.

60. H Bober “An Illustrated Medieval School-Book of Bede’s De natura rerum”, Journal of the Walter’s Art Gallery xix–xx, 1956–57, pp. 65–97.

61. L Thorndike The Sphere of Sacrobosco and its Commentators Chicago 1949, fornece um texto e tradução, mas infelizmente omite as figuras.

62. Evans, op cit nota 40 acima, pp. 314, 321.

63. F S Benjamin and G J Toomer Campanus of Novara and Medieval Planetary Theory Madison, Milwaukee, and London 1971; sobre o desenvolvimento do equatorium, veja D J Price The Equatorie of the Planetis Cambridge 1955, capítulo 8.

64. Yates, op cit nota 21 acima, fornece a melhor introdução à obra de Lúlio e ilustra algumas das rotae em pls 11, 19; veja também R D F Pring-Mill “The Trinitarian World Picture of Ramon Lull” Romanistisches Jahrbuch vii, 1955–56, pp. 229–56; Hillgarth, op cit nota 45 acima.

65. T C Skeat “An Early Medieval ‘Book of Fate’: the Sortes XII patriarcharum. With a note on ‘Books of Fate’ in general” Mediaeval and Renaissance Studies iii, 1954, pp. 41–54; Heimann, op cit nota 7 acima, pp. 39–46; C S F Burnett “What is the Experimentarius of Bernardus Silvestris? A Preliminary Survey of the Material” Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge xliv, 1977, pp. 79–125.

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