quinta-feira, 22 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte II

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html
§ 3.1 As “Figurae”
O estema potencialmente amorfo representado pela figura 4 pode receber uma forma mais definitiva, seja em uma estrutura geométrica abstrata, seja em uma imagem figurativa, como uma árvore, uma escada ou uma roda. Tais desenhos (chamados de figurae em latim e de schemata em grego) são mais difundidos nos manuscritos medievais do que normalmente se pensa, porém difíceis de localizar através das entradas de catálogos, tendo em vista que a sua negligência por parte dos historiadores da arte é em geral equiparada à dos bibliotecários, que omitem esses desenhos das descrições codicológicas. Alguns livros consistiam inteiramente de diagramas, sem nenhum texto de apoio; as ilustrações esquemáticas também proporcionavam assuntos para a arte monumental, [20] mas normalmente formavam parte de um discurso de prosa. Algumas eram criadas especificamente para um contexto particular, porém muitas eram tomadas de outras fontes, às vezes sofrendo pelo caminho uma mudança de sentido. Assim, a figura em Image du monde (cf seção 5.2), que ilustra a rotundidade da Terra, é derivada de uma gravura na topografia cristã do Cosmos indicopleustes, que pretendia demonstrar o contrário.[21] Ocasionalmente, esses diagramas eram executados por mestres artesãos, sendo por si mesmos obras de arte; no mais das vezes, são desenhos à caneta despretensiosos inseridos no contexto ou à margem pelo próprio escriba. Por mais brutos que sejam, eles constituem partes integrais do texto; omiti-los, como fazem alguns editores, é condenável.
§ 3.2 A “Divisio scientiae”
A seqüência descrita acima, desde o arranjo gráfico até as imagens figurativas, não é uma explicação cronológica do desenvolvimento da ilustração esquemática, mas uma classificação ad hoc dos principais tipos de auxílio visual: o tipográfico, o estemático, o geométrico e o emblemático. Historicamente, o diagrama elucidativo e o texto ilustrado surgiram ao mesmo tempo na Antigüidade Clássica. [22] Junto com a representação da narrativa, foi uma das duas primeiras formas de ilustração textual. As obras de Aristóteles eram quase que certamente ilustradas com diagramas, e enquanto é improvável que os diálogos platônicos também o fossem, os comentários sobre eles empregavam figuras extensivamente. [23] É possível que as cópias medievais destes comentários preservem os autênticos esquemas antigos; a evidência disponível sugere que, comparados às imagens representacionais, os desenhos diagramáticos são transmitidos com uma variação notavelmente pequena. [24] A maioria desses diagramas são figuras geométricas ou simples estemas lineares; porém quando os primeiros autores medievais utilizaram-nos para ilustrar os seus próprios escritos, eles foram adornados com elementos figurativos: plantas, animais e seres humanos. [25] Estes podem ter uma função mnemônica; mas podem também ser simbólicos, ou puramente decorativos. O principal objetivo dos esquemas primitivos em si era analítico: eles demonstravam como um assunto poderia ser dividido em suas partes componentes. A apresentação diagramática de tal informação era mais imediata e também mais econômica do que uma explicação em prosa. No fim, a divisio scientiae atingia grande complexidade, compatível com a análise compreensiva exigida pelo método escolástico. [26] Mas a sua estrutura era essencialmente simples, análoga a um crescimento orgânico: a partir dos nós que representam os principais assuntos, surgem as categorias individuais que se dividem em seus componentes, como o tronco de uma árvore se divide em ramos e galhos. Assim, embora esses fossem diagramas técnicos essencialmente utilitários, não era inapropriado que tomassem as formas de árvores estilizadas. Folhas e fruto representavam as partes individuais de cada “ramo” do conhecimento, que derivava de um tronco onde se inscrevia scientia ou philosophia.
§ 3.3 A “Arbor scientiae”
A transformação do tipo de estema mostrado na figura 4 em uma forma que evoca o crescimento arbóreo é facilmente realizada pela adição de fragmentos de ornamento foliado (figura 5). Algumas dessas árvores horizontais são investidas com um considerável detalhe botânico, apesar da sua orientação;[27] mas para obter o benefício completo da imagem de árvore, era necessário à divisio expandir-se para cima. Isto inverte o formato convencional da árvore genealógica, que em quase todos os exemplos é um estema descendente. As mais exaustivas divisiones emulam a genealogia, sendo estemas não-figurativos que derivam desde cima. O único modo pelo qual um desenho poderia aludir ao crescimento orgânico era um em que as ramificações assumissem a forma de raízes, ao invés de ramos: um expediente raramente empregado. A grande exceção à forma descensional para as genealogias é a Árvore de Jessé, a representação esquemática dos ancestrais de Cristo. [28] Ela raramente mostra as 42 gerações enumeradas por S. Mateus, reduzindo o número de antepassados a algumas figures centrais como Davi, Salomão e a Virgem. Da mesma forma, a ascendente Árvore das Ciências tendia a ser seletiva, e as suas ramificações eram menos analíticas do que emblemáticas; as sete Artes Liberais representam a soma do conhecimento humano, enquanto a legenda, arbor scientiae, evoca a Árvore do Conhecimento bíblica. Essas árvores devem ser tratadas como pertencentes ao mundo da alegoria e não ao do diagrama científico; mas, como veremos, esses dois mundos não eram discretos entre si, o que explica a ubiqüidade e diversidade desses desenhos. Quando, por exemplo, o filósofo catalão Raimundo Lúlio (c1235–1316) buscou apresentar uma versão simplificada do seu trabalho lógico Ars generalis (cf seção 5.3), ele decidiu fazê-lo em um tratado intitulado Arbor scientiae, ilustrado com uma série de 16 árvores, dispondo de forma sistemática as categorias inerentes à sua filosofia. Precedente a elas há uma vasta árvore de todas as ciências, na qual cada “ramo” é realizado literalmente e analisado na terminologia botânica.[29] É a árvore sob a qual Lúlio se encontrou com o monge que o estimulou a compilar a nova redação de sua obra e é ao mesmo tempo a forma convencional pela qual deveria expô-la.
§ 3.4 A árvore esquemática
A árvore estilizada não estava restrita à exposição das categorias do conhecimento: ela estava disponível para qualquer tópico que fosse suscetível à análise sistemática. Alguns desses diagramas se aproximam de uma forma de árvore sem introduzir quaisquer características vegetativas;[30] em contrapartida, outros não têm qualquer semelhança com um crescimento orgânico em sua estrutura, mas são contudo chamados de arbores, além de brotarem folhas estilizadas. A Arbor consanguinitatis, por exemplo, em geral parece mais uma treliça do que uma árvore; e, como uma realização visual da Tabela de Parentesco e Afinidade, encontrada no início do Livro de Oração Comum, ela nem mesmo incorpora o princípio da ramificação analítica encontrada na divisio. A versão mais comum desse esquema é uma composição centralizada que deve ser lida a partir do meio (figura 6), mas que ainda assim costuma ser ornada com decoração foliada. [31] Mesmo quando a estrutura é arbórea, a imagem não precisa ser; algumas divisiones usam motivos tirados das iniciais decorativas dos manuscritos,[32] enquanto outras usam formas abstratas lineares não derivadas de nenhuma fonte óbvia. O diagrama das hierarquias eclesiásticas e seculares que ilustra o De statu ecclesiae de Gilberto de Limerick é feita de um sistema de triângulos e arcos ogivais que sugerem uma elevação arquitetônica; mas esse desenho do final do século XII precede o uso de desenhos arquitetônicos em pequena escala.[33] Em outros ainda, a “árvore” aludida não é de forma alguma uma imagem botânica, mas uma religiosa, a Árvore da Cruz.[34]

Mesmo as elaboradas arbores descendentes que não emulam nenhuma forma objetiva concebível empregam elementos representacionais, como rolos de pergaminhos e colunas, para fornecer uma estrutura, conferindo uma grandeza formal ao desenho (figura 7). Algumas são pontuadas com pequenas cenas ou retratos em medalhões, lembrando as árvores genealógicas romanas descritas por Plínio (Hist nat xxxv, 2) e Sêneca (De beneficiis iii, 28, 2): estemas pintadas nas paredes, com os ancestrais identificados pelo nome ou por uma máscara-retrato.[35] Na Idade Média, arbores similares eram usadas para dispor as genealogias dinásticas, com freqüência incluindo eventos históricos somados a detalhes biográficos.[36] Esse tipo de esquema poderia ser usado para apresentar uma informação histórica de natureza menos pessoal: não uma árvore genealógica, mas uma tabela de tempo ilustrada. A Arbor historiae de Pedro de Poitiers, no final do século XII, é basicamente uma imensa genealogia dos Patriarcas de Israel começando em Adão; mas é também uma crônica do mundo, e algumas versões interpolam muito da história secular contemporânea.[37] Os acontecimentos mais marcantes estão registrados não só verbalmente, como também em lacônicas ilustrações; assim, na figura 7 um frasco de urina na margem indica a descoberta da medicina por Apolo logo antes da época da profetisa Débora; uma sanfona representa a invenção do coro grego, quase contemporânea com Gideão.
§ 3.5 A “Arbor virtutum”
Entretanto, era normalmente irresistível a analogia entre o crescimento vegetal e a subdivisão ramificada de um tópico, ainda mais quando a própria imagem da árvore podia contribuir com a mensagem sendo transmitida. Esse era o caso do tópico da distinctio ética das Virtudes e Vícios. Os tratados medievais sobre a moral apresentavam análises elaboradas dos traços característicos dos sete Pecados Capitais e de suas Virtudes correspondentes;[38] matéria óbvia para a exposição diagramática. O aforismo de Cristo sobre as árvores boas e as corruptas (Mat 7:17; cf. Mat. 3:10) e o dito de S. Gregório de que o orgulho é a raiz de todo mal (Moralia xxxi, 45) incentivavam o uso das imagens arbóreas. O orgulho e sua contraparte, a Humildade, formavam as raízes das árvores, os outros Vícios e Virtudes principais eram os ramos, e suas subdivisões em qualidades morais individuais eram inscritas nos frutos ou folhas (figura 8 verso). Os pares de árvores resultantes podiam ser distinguidos pela cor; uma árvore verde para as Virtudes, uma marrom morta para os Vícios; ou pela forma: as folhas e frutos da árvore boa eminentes, os da má decaídos.[39] Assim, as qualidades inatas das formas naturais são exploradas para realçar a informação expressa pelo esquema, uma vantagem que a figura emblemática possuía sobre a geométrica. Uma desvantagem correspondente era a congestão criada pela tentativa de incorporar inscrições explicativas nos elementos vegetais sem obliterá-los. Excepcionalmente, uma mesma árvore carregaria tanto as Virtudes quanto os Vícios, [40] mas em geral uma árvore que incorporasse mais de um conjunto de tópicos disporia assuntos de mesma natureza, não antitéticos. Árvores deste tipo, como a Arbor sapientiae, que apresentava de um lado as Artes Liberais como uma seqüência correspondendo às Idades do Homem no outro lado, [41] precisavam ser lidas lateralmente, o que não é uma forma natural de interpretar um crescimento orgânico. O desenho mais apropriado para esse tipo de exposição visual não era uma árvore, mas uma tabela de colunas, que também permitia uma disposição mais clara das inscrições.


Notas

20. Nenhum dos livros de diagramas foi publicado integralmente. Pouquíssimos sequer foram adequadamente descritos; uma exceção é a primeira parte de Brussels, Bibl Roy MS 9565–9566, que era originalmente independente; veja R Derolez “Dubthach’s Cryptogram. Algumas notas em Connexion with Brussels MS 9565–9566” L’antiquité classique xxi, 1952, pp. 359–75. Uma noção do conteúdo e da aparência dos volumes de luxe das ilustrações esquemáticas pode ser obtida a partir das figuras 5, 7–10, 12, 13, e de reproduções de Paris, BN MS fr 9220 in Ligtenberg, op cit nota 14 abaixo, figuras 1, 13, 14, 22; veja Les manuscrits à peintures en France du XIIIe au XVIe siècle (catálogo de exibição BN) Paris 1955, no 66, p. 35. A maior parte dos trabalhos monumentais foram destruídos (cf nota 51 abaixo); entre os sobreviventes incluem-se o pavimento do santuário na Abadia de Westminster (S Wander “The Westminster Abbey Sanctuary Pavement” Traditio xxxiv, 1978, pp. 137–56); o afresco do cosmos por Pietro di Puccio no Camposanto, Pisa (M Bucci, L Bertolini Camposanto monumentale di Pisa, Pisa 1960, figura 99); e as pinturas na cripta da catedrak de Anagni (L Pressouyre “Le cosmos platonicien de la cathédrale d’Anagni” Mélanges d’archéologie et d’histoire lxxviii, 1966, pp. 551–93). Pressouyre cita outros exemplos perdidos.

21. Para a ilustração de Cosmas, veja W Wolska La Topographie chrétienne de Cosmos indicopleustèsImage, veja R Calcoen Inventaire des manuscrits scientifiques de la bibliothèque royale Albert Ier ii, Brussels 1971, pl XXI. Paris 1962, pl VII e p. 211f; para a da

22. K Weitzmann Ancient Book Illumination Cambridge Massachusetts, 1959, p. 1.

23. R S Brumbaugh “Logical and Mathematical Symbolism in the Platonic Scholia” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xxiv, 1961, pp. 45–58.

24. Assim, enquanto uma cópia do século XV (Venice Marc MS Cl XIV 35) de um Ms do século XII (Florence Laur MS S Marco 190) do De nuptiis de Marciano Capela modifica as gravuras das artesKunstgeschichtliche Studien für Hans Kauffmann Berlin 1956, pp. 59–66. personificadas estilística e iconograficamente, as ilustrações diagramáticas são mantidas inalteradas; para as personificações, veja L H Heydenreich “Eine illustrierte Martianus Capella-Handschrift”

25. E K Rand “The New Cassiodorus” Speculum xiii, 1938, p. 444, pls C and D.

26. J Mariétan Problème de la classification des sciences d’Aristote à St-Thomas Paris 1901; L Baur Dominicus Gundissalinus. De divisione philosophiae (Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters Bd iv, Heft 2/3) Münster 1903.

27. A Katzenellenbogen Allegories of the Virtues and Vices in Medieval Art Londres 1939, p. 65, figuras 64, 65.

28. A Watson The Early Iconography of the Tree of Jesse Oxford-London 1934; para as raízes como divisiones, veja F A Yates “The Art of Ramon Lull” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xvii, pls 15, 16.

29. Yates, op cit nota 28 acima, p. 144.

30. Veja as figurae arborum que ilustram as teorias do ritmo e da métrica na música do século XV no MS Vat Barb lat 307; J Smits van Waesberghe Musikerziehung. Lehre und Theorie der Musik im MittelalterMusikgeschichte in Bildern, Bd iii, Lfg 3) Leipzig 1969, pp. 172–75. (

31. H Schadt Darstellungen des Arbores consanguinitatis bis zum 4. Laterankonzil 1215 diss Tübingen 1973; Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 108–16.

32. Veja os esquemas que ilustram a tradução francesa do Ad Herennium de Cícero Chantilly, Mus Condé MS 590, fols 9v, 11v; J Folda Crusader Manuscript Illumination at Saint-Jean d’Acre 1275–1291 Princeton 1976, figuras 24, 25.

33. Durham, Cathedral Lib MS B II 35, fol 36v; R A B Mynors Durham Cathedral Manuscripts Oxford 1939, no 47, p. 42, pl 32. Sobre o desenvolvimento dos desenhos em escala de plantas e elevações, veja R Branner “Villard de Honnecourt, Reims and the Origin of Gothic Architectural Drawing” Gazette des Beaux-Arts ser 6, lxi, 1963, pp. 129–46.

34. O esquema mais espetacular desse tipo é a lignum vitae de S Boaventura, familiar no afresco de Taddeo Gaddi na Santa Croce de Florença; R Ligtenberg “Het lignum vitae van den H Bonaventura in de ikonografie der veertiende eeuw” Het Gildeboek xi, 1928, pp. 15–39.

35. E H Wilkins “The Trees of the ‘Genealogia deorum’” Modern Philology xxiii, 1925–26, pp. 61–65.

36. Cf as tabelas cronológicas nos fols 140r–149v do MS de Durham citado na nota 33 acima; Mynors op cit pl 44.

37. A obra aparece sob vários títulos, e os estudiosos modernos preferem Compendium historiae in genealogia Christi; entretanto, ela era chamada como uma arbor na Idade Média, e o termo é apropriado. O texto e o layout paradigmático em H Vollmer Deutsche Bibelauszüge des Mittelalters zum Stammbaum Christi mit ihren lateinischen Vorbildern und Vorlagen (Bibel und deutsche Kultur i) Potsdam 1931, pp. 127–88; veja também P S Moore The Works of Peter of Poitiers, Master in Theology and Chancellor of Paris (1193–1205) Notre Dame 1936, pp. 97–117; W H Monroe “A Roll-Manuscript of Peter of Poitiers’ Compendium” The Bulletin of the Cleveland Museum of Art lxv, 1978, pp. 92–107.

38. M W Bloomfield The Seven Deadly Sins Michigan 1952.

39. Katzenellenbogen, op cit nota 27 acima, pp. 63–67; para o texto de Gregório, veja a nota 85 abaixo.

40. Londres BL MS Add 30024, fol 2r; o MS é descrito em M W Evans “Allegorical Women and Practical Men: the Iconography of the artes Reconsidered” Medieval Women (Studies in Church History, Subsidia 1) Oxford 1978, p. 329; e a miniatura está ilustrada em Lexikon der christlichen Ikonographie iv, Freiburg i Br 1972, sv Tugenden und Laster figura 6.

41. Eg Paris BN MS fr 9220, fol 16r; ilustrado em Ligtenberg, op cit nota 34 acima, figura 22.

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