quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte I

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html
§1 Os diagramas científicos e o pensamento medieval
A Figura 1 é uma diagrama científico presente em um manual medieval. [1] A Figura 2, embora formalmente parecida, não é o mesmo tipo de coisa. O texto abaixo dela a descreve como uma “representação da nossa Igreja”; de fato, é um sumário das teorias éticas e históricas cristãs expressas em uma linguagem geométrica. O uso de ilustrações diagramáticas para expor idéias teoréticas e fatos científicos era característico da Idade Média.[2] Muitas dessas composições são belíssimos designs, adornados com elementos representativos e elucidados por inscrições eruditas em verso e prosa; mas até recentemente, tanto os historiadores da arte como os da literatura as negligenciavam. A Figura 2 nunca foi publicada, embora tenha sido associada a um dos mais conhecidos ateliers ingleses do século XIII; nem os textos que a acompanham estão presentes em um índice remissivo de initia. Isto é compreensível, já que tais imagens estão além dos cânones normais da arte, e os textos não são interessantes fora da sua contextuação. Contudo, defenderemos aqui que essas figuras geométricas traçadas não só merecem um estudo por si mesmas enquanto exemplos do design medieval, como também proporcionam um valioso comentário sobre a forma pela qual os pensadores medievais abordavam alguns dos seus problemas mais importantes, fornecendo uma compreensão sobre os processos mentais na Idade Média.

A exegese medieval era particularmente adaptada à exposição diagramática, e até um certo ponto influenciada por ela; também o era a lógica medieval, porque as suas inovações mais características foram formalistas e não epistemológicas. Ao final da Idade Média, um pensador como Heimerico de Campo podia expressar o seu sistema filosófico inteiro em uma única figura, [3] ainda que estes exemplos tardios tendam a ser mais arcanos do que elucidatórios. Mas, durante o período a ser considerado aqui (principalmente os séculos XII a XIV), a exposição geométrica foi usada de uma forma não apenas concisa, como também mais explícita do que a prosa. Ela também atingiu o status de uma forma de arte abstrata. Antes de descrever tal realização, e oferecer uma interpretação da imagem ilustrada na figura 2, será apropriado fazer algumas observações sobre a interrelação entre arte e geometria na Idade Média e sobre algumas peculiaridades metodológicas da lógica medieval.
§ 2.1 A arte e a Geometria
Quando o arquiteto do século XIII Villard de Honnecourt compilou um álbum de textos e gravuras para usar como um livro modelo, ele o descrevia como um auxílio para desenhar de acordo com a arte da geometria. [4] O livro incluía figuras baseadas em armaduras esquemáticas compostas de círculos, quadrados e triângulos. Este é um indício inequívoco da importância da geometria no design medieval. Enquanto devemos admitir que as tentativas dos críticos modernos em sujeitar a arte e a arquitetura da Idade Média à análise geométrica sejam raramente convincentes (pontos de referência são arbitrários, mas mesmo assim correspondem só aproximadamente à trama linear sobreposta), [5] é claro, contudo, que muito da arte medieval é governado por esquemas geométricos. Na pintura do século XII, uma simetria artificial é imposta a representações planas de figuras e objetos; as gravuras posteriores são menos formalistas, mas as imagens são ainda dispostas regularmente e enquadradas em molduras geometricamente construídas. Isso pode ser tomado como um corolário da preocupação medieval com o ordenamento do universo e a imposição de um sistema em cada aspecto da existência: quatro elementos, cinco sentidos, seis idades, sete virtudes, além de sete vícios, artes, planetas, e um número quase ilimitado de outros conceitos.[6] Alguns dos temas iconográficos mais importantes são retratados em termos geométricos: a representação convencional do cosmos é uma série de círculos concêntricos; a de Deus O mostra em uma auréola circular, ou em uma feita de elementos circulares; como criador, Deus brande um compasso de geômatra. [7] Ele podia ser definido geometricamente como uma esfera infinita, o seu centro em toda parte, a sua circunferência em parte alguma. [8]
§ 2.2 A Geometria
Apesar disso, o início da Idade Média tinha pouco conhecimento da geometria como entendida hoje em dia. Até as traduções de Euclides por Adelardo de Bath (fl 1119–1142), a experiência prática medieval do assunto estava limitada a uma curiosa mistura dos fragmentos dos Elementa e da agrimensura. [9] Apesar disso, a geometria sempre ocupou, ao menos em teoria, um lugar de eminência no currículo educacional, como uma das sete Artes Liberais. [10] Ela era, portanto, não só uma matéria fundamental nas escolas medievais, mas também um dos próprios elementos da ensino e um componente essencial da atividade intelectual. A extraordinária afirmação de Hugo de S. Vítor de que ela é “a fonte das percepções e a origem das expressões” [11] exemplifica o tipo de entusiasmo confuso que o assunto causou na época das traduções de Adelardo; mas a adequada geometria euclideana logo foi estabelecida como uma matéria popular nas escolas. Já em cerca de 1160, Pedro de Blois reclamava que os pupilos a estudavam antes de dominar as disciplinas básicas, como a gramática. [12] No início do século XIII, a ciência avançava pela primeira vez desde a Antigüidade, através das pesquisas de Leonardo de Pisa, também conhecido como Fibonacci (c1170–1250).[13] A geometria passou então a ser uma disciplina de destaque tanto na teoria científica quanto na prática pedagógica.
§ 2.3 A arte e o argumento
A arte medieval também possuía seus aspectos pedagógicos. A sua defesa por parte dos Pais da Igreja como um meio de instruir os iletrados não deve ser tomada muito literalmente;[14] é difícil acreditar que a verdadeira razão para decorar igrejas fosse tão utilitária, e é improvável que um iletrado encontrasse um manuscrito iluminado; mas havia ocasiões em que a arte era tratada como um auxílio à memória e como uma ferramenta para clarificar argumentos. A Idade Média era bem ciente do valor do auxílio visual. [15] Na ilustração de livros, em particular, as gravuras podiam exercer um papel didático, elucidando e amplificando o texto. O arranjo da palavra e da imagem era calculado para que uma complementasse a outra, e a gravura era vinculada ao argumento através de uma frase como “conforme esclarece a figura seguinte” (cf figura 23). Mesmo na ausência de gravuras, o texto era disposto de uma forma a melhorar a compreensão do seu conteúdo para o leitor. Um tamanho diferente de letra inicial era usado no começo de cada livro, capítulo e verso na Bíblia; diferentes graus da caligrafia eram usados para se distinguir entre texto, comentário e glosa nominal. Uma preocupação parecida quanto ao efeito visual da página é vista no uso de formas ornamentais para transformar assuntos potencialmente enfadonhos e tabulados (calendários e índices) em grandes designs decorativos: valiosos frontispícios para livros de horas ou evangelhos; mas ainda assim tabelas e índices basicamente funcionais, dispostos de forma clara.
§ 2.4 O argumento
A claridade da exposição é fundamental para um sistema filosófico como a escolástica. A essência do método escolástico é a análise dialética de conceitos. A tese e a antítese são sujeitas a um exame (interrogatio) contra a evidência empírica e as opiniões das autoridades estabelecidas (auctoritates). Depois que se chega a uma solução, os argumentos inaceitáveis são por sua vez refutados. Um prelúdio necessário para isso é a divisão (distinctio) dos conceitos em seus elementos básicos. Isso significa que, inicialmente, o argumento deve ser apresentado da forma mais completa e clara possível. A distinctio pode ser exposta graficamente na página para que um tópico seja visualmente analisado em suas partes e sub-partes pela interposição de uma distribuição estratificada de termos dentro da sintaxe de uma sentença (figura 3). Desta forma, uma frase verbal é fragmentada em constantes e variáveis. As constantes precedem e seguem as variáveis estratificadas, cada uma das quais carrega uma diferente informação; as constantes permanecem inalteradas e fornecem o contexto no qual as variáveis devem ser compreendidas. Embora esta seja uma técnica empregada por um escriba e não um ilustrador, e embora use quase que somente material verbal, para se apreciar o resultado ele deve ser visto. Não se trata mais de uma página de texto que pode ser lida em voz alta com o mesmo efeito; trata-se de uma experiência visual.[16]

É sempre controverso traçar analogias entre as artes visuais e outras disciplinas; mesmo um trabalho tão qualificado e sutil quanto a análise de Panofsky sobre o desenvolvimento da arquitetura gótica segundo o método escolástico está aberto a questionamentos.[17] Contudo, quando meios gráficos são de fato empregados nas demonstrações lógicas, como ocorre com a exposição diagramática, tais analogias são mais justificáveis. Assim, a distinção entre variáveis e constantes pode ser comparada à feita pelos lógicos escolásticos entre o sujeito e o predicado de uma proposição, por um lado, e os co-predicados, tais como “todos”, “alguns”, “se-então”, por outro. Estes últimos termos, que funcionavam como os sinais para as constantes na lógica simbólica e que não possuíam equivalente exato na lógica aristotélica, eram chamados de syncategoremata. Eles forneciam a armadura formal para a análise lógica na Idade Média; diversos tratados eram dedicados a tais termos, que representam um dos maiores desenvolvimentos no pensamento medieval. [18] O significado para a exposição diagramática dessa técnica de ligar diferentes significantes com um syncategorema inalterável será examinado mais tarde.

Como uma alternativa para o arranjo gráfico textual, o escritor podia ignorar toda e qualquer a exposição em prosa e apresentar o material na forma de uma análise estemática (figura 4). A estrutura e função dessas distinctiones se tornam mais inteligíveis se os termos nelas empregados forem tomados não como coisas necessariamente significantes, mas sim como estando no lugar de coisas de acordo com outra convenção básica da lógica escolástica, a teoria da suppositio.[19] Esta propõe que um termo substantivo não precisa possuir status ontológico; ele pode simplesmente ser colocado no lugar (suppositio) de algo, e a questão do exato status daquele algo pode ser deixada de lado, assim como o problema dos universais. Um diagrama com classificações é um meio ideal para esse tipo de especulação. Assim, “Homem” na Árvore de Porfírio (cf seção 6.1) não representa necessariamente o conceito “humanidade”, mas cada ser humano individual. A exigência da integralidade da apresentação é cumprida, mas em um tipo de abreviação. De maneira parecida, o problema do raciocínio por indução é contornado: a enumeração de entidades individuais (atualmente ou na forma abreviada que a suppositio oferece) o suplanta. Além disso, é óbvia a afinidade desse método lógico com a exposição diagramática. Um termo como “ser”, que é o sujeito da distinctio na figura 4, pode agora ser aceito como não-ontológico e puramente conceitual. Ele não exige justificação lógica (que o diagrama estemático, sendo uma afirmação plana, uma enuntiatio em termos escolásticos, não pode fornecer) e sua natureza será revelada por uma exaustiva enumeração das suas partes (para cujo propósito o diagrama estemático é eminentemente apropriado).


Notas

1. Sobre os manuais medievais (algumas vezes equivocadamente chamados de “enciclopédias”), veja W H Stahl “The Systematic Handbook in Antiquity and the Early Middle Ages” Latomus xxiii, 1964, pp. 311-21; M de Gandillac et al La pensée encyclopédique au moyen âge Neuchatel 1966.

2. O único estudo compreensivo deste asssunto é o de A C Esmeijer Divina quaternitas. A Preliminary Study in the Method and Application of Visual Exegesis Amsterdam 1978. Ele trata especificamente do período até c.1250, mas suas extensas notas e bibliografia fornecem um resumo da pesquisa sobre o assunto em geral. O trabalho de H Bober sobre os esquemas medievais não foi publicado até o momento, mas veja os seus artigos citados nas notas 56, 60 [nas próximas partes] e os excertos do seu artigo sobre esquematas citado em ME Reeves e B Hirsch-Reich The “Figurae” of Joachim of Fiore Oxford 1972.

3. Westerlo, archief abdij Tongerlo Liber floridus fol 1r; 550 Jaar Universiteit Leuven (exhibition catalogue, Stedelijk Museum) Louvain 1976, no 467, p. 329.

4.... come li ars de iometrie le commande et ensaigne”. O álbum é Paris BN MS fr 19093; facsimile e comentário in H R Hahnloser Villard de Honnecourt. Kritische Gesamtausgabe des Bauhüttenbuches ms fr 19093 der Pariser Nationalbibliothek, segunda edição, Graz 1972; para as figures geométricas, veja as pp. 272-79.
T Bowie The Sketchbook of Villard de Honnecourt Bloomington, London 1959, contém todas as ilustrações em um formato menor com um breve comentário em ingles.

5. C Bouleau The Painter’s Secret Geometry London 1963, pp. 49–79; G Lesser Gothic Cathedrals and Sacred Geometry London 1957. Para uma tentative de aplicar a análise geométrica na poesia medieval, veja T E Hart “Twelfth Century Platonism and the Geometry of Textual Space in Hartman’s Iwein: a ‘Pythagorean’ Theory”, Res publica litterarum ii, 1979, pp. 81–107.

6. Para um hábil resumo deste aspecto do pensamento medieval, veja C S Lewis The Discarded Image Cambridge 1964, p. 10; uma explicação mais detalhada é dada in H Meyer Die Zahlenallegorese im Mittelalter (Münstersche Mittlelalter-Schriften xxv) Munich 1975.

7. J B Friedman “The Architect’s Compass in Creation Miniatures of the Later Middle Ages” Traditio xxx, 1974, pp. 419–29; A Heimann “Three Illustrations From the Bury St Edmunds Psalter and Their Prototypes. Notes on the Iconography of some Anglo-Saxon Drawings” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xxix, 1966, p. 52. Cf a explicação um tanto hipotética de Cassiodoro (meados do séc. VI) de que a Trindade emprega a geometria para dar espécies e formas às suas criações: “Geometrizat enim, si fas est dicere, sancta Trinitas (alguns MSS lêem divinitas) quando creaturis suis, quas hodieque fecit existere, diversas species formulasque concedit”; Institutiones II v 11, R A B Mynors (ed), Oxford 1937, p. 150; Migne Patrologia latina 70, 1212–13. Sempre que possível, as citações de textos irão se referir às edições mais recentes e a Migne, a partir de agora abreviado como PL.

8.Sphaera infinita cuius centrum est ubique, circumferentia nusquam”; Liber xxiv philosophorum art ii; C Baeumker (ed) Studien und Charakteristiken zur Geschichte der Philosophie insbesondere des Mittelalters (Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters. Texte und Untersuchungen Bd xxv, Heft 1/2) Münster 1927, p. 208. Para outros exemplos da aplicação da terminologia geométrica a proposições teológicas, veja Reeves, op cit nota 2 acima, p. 42.

9. B L Ullman “Geometry in the Medieval Quadrivium” Studi di bibliografia e di storia in onore di Tammaro de Marinis iv, Verona 1964, pp. 263–85; sobre as traduções veja Dictionary of Scientific Biography New York 1970–, sv Adelard of Bath.

10. P Abelson The Seven Liberal Arts, a Study in Medieval Culture New York 1906; J Koch (ed) Artes liberales von der antiken Bildung zur Wissenschaft des Mittelalters (Studien und Texte zur Geistesgeschichte des Mittelalters v) Leiden-Cologne 1959. Sobre o ensino do quadrivium (as disciplinas matemáticas) veja G Beaujouan “L’enseignement du ‘quadrivium’” Settimane di studio del Centro italiano di studi sull’alto medioevo xix, La scuola nell’occidente latino dell’alto medioevo Spoleto 1972, pp. 639–723.

11.... fons sensuum et origo dictionum”, Didascalicon II 15, C H Buttimer (ed), Washington 1939; PL 176, 757; veja J Taylor The Didascalicon of Hugh of St Victor New York-London 1961, p. 203, n55.

12. Ep 101; PL 207, 312–313. A carta, embora autêntica, pode não refletir a experiência em primeira mão: P Oelhaye “Un témoignage frauduleux de Pierre de Blois sur la pédagogie du XIIe siècle” Recherches de théologie ancienne et médiévale xiv, I947, pp. 329–31.

13. Dictionary of Scientific Biography New York 1970–, sv Fibonacci.

14. G Lange Bild und Wort. Die katechetischen Funktionen des Bildes in der griechischen Theologie des 6 bis 9 Jahrhunderts Würzburg 1969; Esmeijer, op cit nota 2 acima, pp. 1–8.

15. Esmeijer, op cit nota 2 acima, passim especially p. 31 n5.

16. Sobre a prática de ler em voz alta como um fator significante na literature medieval, veja H J Chaytor From Script to Print Cambridge 1945, capítulo 2. Para uma atitude comparável ao arranjo da página em livros impressos, veja K J Höltgen “Synoptische Tabellen in der medizinischen Literatur und die Logic Agricolas und Ramus”, Sudhoffs Archiv fur Geschichte der Medizin und der Naturwissenschaften xlix, 1965, pp. 371–90.

17. E Panofsky Gothic Architecture and Scholasticism Cleveland-New York, 1957.

18. Palavra usada pela primeira vez por Prisciano (séc. VI), que a restringia a preposições e conjunções; o sistema medieval, que em sua mais extrema manifestação tratava qualquer palavra que afetasse o sentido de uma proposição que não fosse seu sujeito ou predicado como um syncategorema, é sem precedentes. Veja P Boehner Medieval Logic Manchester 1952, pp. 19–26; H A G Braakhuis De 13de eeuwse tractaten over syncategorematische termen Leiden 1979, (com resumo em inglês).

19. D P Henry Medieval Logic and Metaphysics London 1972, pp. 47–55.

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