quinta-feira, 29 de abril de 2010

A Geometria da Mente, parte V

Tradução do artigo “The Geometry of the Mind”, de Michael W. Evans, disponível em http://www.she-philosopher.com/library/evans.html   

§ 6.1 A “Enuntiatio” e a “interrogatio”
O exemplo da ars luliana demonstra que, embora as rodas e árvores fossem formalmente diferentes, elas podiam ser usadas como alternativas para dispor o mesmo sistema filosófico. As árvores e tabelas também eram usadas de forma intercambiável: as árvores exibiam claras correspondências laterais, e as tabelas assumiam crescimentos arbóreos (figura 10). Isso ocorria apesar do fato das duas formas serem não apenas estruturalmente distintas, mas também corresponderem a dois diferentes métodos especulativos medievais: a distinctio escolástica, descrita acima, e a exegese tipológica. Esta não buscava distinguir os diferentes componentes de um único tópico, mas encontrar analogias entre conceitos que eram reconhecidamente distintos, como os Antigo e Novo Testamentos.[66] Quando um esquema unia a árvore com a tabela, ficava incapaz de explorar as características peculiares a cada uma das formas; ele, contudo, tornava explícito um elemento particular comum às duas: era essa a qualidade da informação que elas transmitiam. Em ambos os casos, era uma enuntiatio, uma assertiva, uma afirmação não sustentada. Mas, obviamente, é inadequado um visual análogo ao método filosófico que só possa comunicar nestes termos; no mínimo, exige-se algo equivalente à interrogatio escolástica. A volvele, que variava a informação fornecida pelo diagrama de acordo com a direção na qual se girava a rota, fornecia isso; mas não era necessário criar esquemas móveis para simular a versão diagramática da interrogatio: a mesma coisa podia ser realizada com uma figura estática se ela oferecesse uma escolha de interpretações de diferente validade. Um exemplo familiar e muito antigo desse tipo de diagrama é o labirinto: ele fornece uma variedade abundante de escolhas, mas somente uma leva infalivelmente pelo labirinto. É como se em uma árvore esquemática somente um dos ramos dê frutos; todos os outros levam, literalmente, a becos sem saída [trocadilho que só funciona em inglês: dead ends, "extremidades mortas"]. O labirinto, é claro, ofusca onde a árvore clarifica; mas se na árvore algumas das bifurcações são delimitadas, enquanto outras conduzem o leitor a conceitos posteriores, o resultado é um tipo de labirinto que impele o participante a entender onde é que está indo. A figura mais simples desse tipo era a Letra Pitagórica, na qual os dois braços do Y representavam a escolha entre o bem e o mal.[67] Uma versão mais complexa era a Árvore de Porfírio, que expunha a relação entre gêneros e espécies e exigia uma multiplicidade de escolhas (figura 19). Surgida como uma ilustração aos comentários da Isagoga de Porfírio (final do século III), ela procedia do gênero último, a substância, às espécies últimas, os homens individuais, por uma série de divisões dicotômicas. [68] Cada bifurcação da árvore continha um lado positivo e um lado negativo. Embora fosse geralmente representada como uma composição simétrica, ela “crescia” somente do lado positivo, e, diferente da divisio, era inerentemente assimétrica. Ela também diferia da divisio por ser finita: nenhuma outra divisão era possível depois que se atingisse a categoria dos homens individuais, convencionalmente identificados como Sócrates e Platão. Mas a diferença fundamental é que o leitor não era simplesmente apresentado à totalidade do material; era-lhe dada uma série de alternativas para escolher. Em um certo sentido, ele participava do diagrama, como alguém participa de um labirinto.
§ 6.2 O Quadrado de Oposição
O quociente de participação é aumentado na familiar figura lógica chamada Quadrado de Oposição. Ela ainda é encontrada em introduções modernas à lógica, mas já existia de forma virtualmente idêntica nos tratados clássicos sobre o assunto. [69] Ela dispõe as relações entre as proposições na forma de uma cruz de saltire [cruz diagonal] dentro de um retângulo. As relações não são meramente afirmadas: elas são ilustradas para o leitor por sentenças apropriadas que exemplificam o que significa o contrário, o subcontrário, o subalterno e o contraditório. Por outro lado, o leitor pode começar pelas sentenças e usar o diagrama para descobrir as suas relações. O diagrama aqui é um instrumento, como a volvele, móvel, porém, na forma em que pode ser lido, e não na forma em que pode ser orientado. Ele não enuncia verdades simplesmente, mas permite ao leitor encontrá-las. O Quadrado de Oposição podia ser elaborado com membros laterais para cobrir proposições subalternas particulares, ou, com uma horizontal no meio e uma cruz de saltire acima e abaixo dela, tornava-se a figura chamada de pons asinorum, que era usada para descobrir o termo médio em um silogismo (figura 20). Comentários posteriores da Idade Média sobre os textos escolásticos, especialmente sobre os Summulae logicales de Pedro Hispano, ampliavam essas figuras lógicas até o ponto da complexidade maníaca, abrangendo proposições compostas e a chamada ars insolubilis;[70] mas as faixas sobrepostas resultantes conectando os termos tornaram-se tão intrincadas que o diagrama representa um desafio em si mesmo, ao invés de um auxílio para uma solução.
§ 6.3 O “Scutum fidei”
Diagramas como o Quadrado de Oposição continham um óbvio apelo para os teólogos: com um pouco de engenho, a prova visual fornecida por uma figura lógica podia ser adaptada à apresentação do dogma religioso. Assim como Lúlio esperava que seu ars convenceria os pagãos sobre a verdade do cristianismo, também outros empregaram demonstrações visuais filosóficas e científicas para fins especificamente teológicos. Uma modificação triangular do Quadrado de Oposição foi assim usada como uma ilustração da doutrina da Trindade e de várias outras crenças religiosas (figura 21). O artifício foi inventado em meados do século XIII; esta era a época em que a heráldica estava se tornando um sistema estritamente codificado, e os primeiros exemplos o identificam com o brasão no Escudo da Fé mencionado por S. Paulo (Efés. 6:16). Mas logo ele perdeu as suas conotações armoriais, e exemplos posteriores apresentam um diagrama de três lados, às vezes acompanhados por instruções sobre como lê-lo.[71] Um caso similar de apropriação teológica de uma figura técnica é o uso que faz Pedro Alfonso em seus Dialogi (após 1106) de uma figura astronômica do De natura rerum de Beda para mostrar como a Trindade se relacionava com o Tetragrammaton.[72] Um manuscrito de Chartres do século XIV continha uma tentativa ainda mais determinada de implicar a ciência na religião: uma ilustração das propriedades matemáticas dos anéis de Borromeu foi utilizada para demonstrar a relação entre as três Pessoas. [73] Essa apropriação de diagramas científicos para fins religiosos é mais do que apenas um outro aspecto do desejo da Igreja em recorrer a auxílios visuais: também pode ser considerada como um reconhecimento da lógica irrefutável e da exatidão das ilustrações técnicas, e uma tentativa de conferir as mesmas qualidades às proposições teológicas.
§ 6.4 As visões
Não eram somente as doutrinas eclesiásticas que invocavam o diagrama científico como um exemplar pictórico; quando as experiências religiosas extáticas, proféticas ou revelatórias eram representadas graficamente, elas também lançavam mão de motivos e composições retiradas de esquemas. As ilustrações das visões de Hildegarda de Bingen, mística do século XII, são derivadas de diagramas cósmicos;[74] as profecias de Joaquim de Fiore (morto em 1202) são reveladas em árvores e tabelas;[75] e Opicinus de Canistris (1296–c1350) lançava mão de desenvolvimentos recentes nas cartas de navegação para registrar as suas revelações místicas em forma cartográfica.[76] É claro que isso não as invalida: “a experiência visionária é… uma imagem que a mente constrói… a partir de matérias-primas já à disposição” [77] e já notamos como a exposição diagramática era familiar às pessoas letradas na Idade Média. A conexão nem sempre é aparente: não é imediatamente óbvio que essa seja a fonte das diversas figuras do estranho livro devocional conhecido como os Cânticos de Rothschild: mas é possível mostrar que uma cópia ilustrada da Image du monde estava disponível aos artistas como um modelo e foi responsável por algumas das suas extraordinárias imagens (figura 22, cf figura 16).[78] O texto no lado oposto à figura 22 refere-se à visão de Ezequiel da roda dentro da roda (Ezeq 1:15f e 10:9f), que fornecia um precedente bíblico para as rotae como componentes das alucinações automísticas. Mas os diagramas em geral possuíam conotações de autoridade e de convicção que se correlacionam bem com os relatos de experiências místicas. Havia, além disso, uma razão mais prática porque as formas diagramáticas devessem ser tão compatíveis com visões, dependendo de uma das peculiaridades do esquema inscrito. Era a habilidade de expressar, explicitamente, diversos níveis de sentido ao mesmo tempo: uma qualidade que as torna praticamente únicas na arte visual. Exceto em exemplos muito específicos, uma representação pictórica significa somente uma coisa. A idéia de que as imagens carregam diversos níveis de sentido é um dos mitos dos estudos iconográficos modernos, não sustentados por nenhuma evidência.[79] Um diagrama, contudo, é capaz disso: o mesmo esquema pode acomodar diversos conceitos, cada um identificado por uma inscrição. Assim, a mesma figura que dispõe os elementos e o mundo pode ser usada para mostrar ao mesmo tempo o Homem e seus humores e o ano e suas estações.[80] A mecânica da analogia é numerológica, mas a técnica depende da teoria de uma harmonia entre o Homem e o Universo; aquele sendo um microcosmo deste. [81] Cada aspecto do mundo físico possui um paralelo no Homem, seja com seus órgãos corporais, seja com suas faculdades; e a teoria pode ser representada de acordo com o seu conteúdo, antropomórfico ou cósmico; um implicará o outro. Portanto, uma única figura, diagramática ou humana, n'um tipo de intensidade visionária, pode conter o universo inteiro em toda a sua complexidade, envolvendo o tempo, a matéria, o cosmo, o Homem e Deus. (figura 23).[82]


Notas

66. C Spicq Esquisse d’une histoire de l’exégèse latine au moyen âge (Bibliothèque thomiste xxvi) Paris 1944; H de Lubac Exégèse médiévale. Les quatre sens de l’écriture Paris 1959–64; Esmeijer, op cit nota 2 acima.

67. W Harms Homo viator in bivio (Medium aevum. Philologische Studien Bd xxi) Munich 1970.

68. E W Warren Porphyry the Phoenician. Isagoge (Medieval Sources in Translation 16) Toronto 1975; para a Árvore, veja p. 35; para as suas adaptações, veja M-T d’Alverny, “Le cosmos symbolique du XIIe siècle” Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge xx, 1953, pp. 31–81; para a sua forma essencialmente assimétrica, veja Enciclopedia filosofica Florence 1967, sv Albero di Porfirio.

69. L Pozzi Studi di logica anticae medioevale Padua 1974, pp. 39–61.

70. W Ong Ramus, Method, and the Decay of Dialogue Cambridge Massachusetts 1958, pp. 74–83; for the pons asinorum, veja Pozzi, op cit nota 69 acima, pp. 63–73.

71. O desenho é invariavelmente discutido nos termos da versão falsificada das Horae de Paris de 1524 de Simon Vostre, como ilustrado por Didron (op cit nota 73 abaixo), p. 575, no qual os seus elementos heráldicos são omitidos. Uma explicação mais completa sobre as fontes e o desenvolvimento da figura será incluída no próximo artigo do presente autor: “An Illustrated Fragment of Peraldus’s Summa of Vice” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes.

72. Reeves and Hirsch-Reich, op cit nota 2 acima, p. 42.

73. Chartres, Bibl de la Ville MS 233, fol 48v(?); o livro foi destruído na Segunda Guerra Mundial, e a figura, um entre quatro desenhos similares, está registrada somente em uma gravura in A Didron Iconographie chrétienne. Histoire de Dieu (Collection de documents inédits sur l’histoire de France) Paris 1843, p. 569; revised translation Christian Iconography New York 1965, volume ii, p. 46. Em ambas as edições, a data e a marca de biblioteca estão erradas; veja o Catalogue général des manuscrits des bibliothèques publiques de France. Départements xi, Paris 1890, pp. 116, 117; Y Delaporte Les manuscrits enluminés de la bibliothèque de Chartres Chartres 1929, p. 115.

74. H Liebeschütz Das allegorische Weltbild der Heiligen Hildegard von Bingen (Studien der Bibliothek Warburg 16) Leipzig-Berlin 1930; C Singer “The Scientific Views and Visions of Saint Hildegard” Studies in the History and Method of Science i, Oxford 1917, pp. 1–55.

75. Reeves e Hirsch-Reich, op cit nota 2 acima.

76. R G Salomon Opicinus de Canistris. Weltbild und Bekentnisse eines avignonesischen Klerikers des 14. Jahrhunderts (Studies of the Warburg Institute 1), London 1936; idem “A Newly Discovered Manuscript of Opicinus de Canistris” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes xvi, 1953, pp. 45–57; R Glanville “Mapping Realities” AAQuarterly volume 12 número 4.

77. E Underhill Mysticism London 1911, p. 271.

78. M R James Description of an Illuminated Manuscript of the XIIIth Century in the Possession of Bernard Quaritch London 1904; Evans, op cit nota 40 acima, p. 319.

79. O caso contra os “níveis de sentido” é colocado in E H Gombrich Symbolic Images. Studies in the Art of the Renaissance London 1972, pp. 15–17.

80. Esmeijer, op cit nota 2 acima, p. 37; Bober, op cit nota 60 acima, p. 84; o diagrama de Gilberto de Limerick (nota 33 acima) também sobrepõe assim conceitos diferentes.

81. F Saxl “Macrocosm and Microcosm in Medieval Pictures” Lectures London 1957, pp. 58–72.

82. O grau de complexidade que tais esquemas podiam obter é ilustrado pelo famoso diagrama no Manual de Byrhtferth (Oxford, S John’s College MS 17, fol 7v). Isso inclui não só os elementos, humores e estações, mas, além disso (lendo de fora pra dentro), os solstícios e equinócios, os signos zodiacais, os meses e sua duração, os ventos, as Idades do Homem, os pontos cardeais e as letras A – D – A – M, que não somente soletram o nome do primeiro homem como são também um acrônimo das quatro partes do mundo em grego. Para ilustração e bibliografia, veja C M Kauffmann Romanesque Manuscripts 1066–1190 (A Survey of Manuscripts Illuminated in the British Isles) Londres 1975, p. 56, e ill 21.

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