quinta-feira, 15 de abril de 2010

Alguns breves argumentos em favor do dualismo, parte III

Tradução do blog http://edwardfeser.blogspot.com/

No post anterior desta série, defendi que a concepção “mecanística” do mundo natural adotada pelos primeiros filósofos modernos mais ou menos implica um tipo de dualismo na medida em que o seu banimento das causas finais do mundo material efetivamente torna a intencionalidade necessariamente imaterial. A intencionalidade, é claro, é uma das duas características mentais às quais os filósofos da mente contemporâneos têm dedicado mais atenção. A outra é a consciênica, e em particular os “qualia”, que se diz tornarem a consciência algo especialmente difícil de explicar em termos materiais. Há uma boa razão para tal dificuldade – ou melhor, impossibilidade – e esta é a mesma razão porque a intencionalidade é impossível de explicar em termos materialísticos. Ela reside na concepção mecanística da própria matéria.

Os primeiros filósofos e cientistas modernos eram obcecados com a quantificação. Havia diferentes razões para isso, sendo uma delas o desejo de reorientar os esforços intelectuais para melhorar a qualidade de vida neste mundo, longe da transcendentalidade dos antigos e medievais. Isso levou a uma nova ênfase na tecnologia e mais geralmente no controle e exploração do mundo natural, no interesse da melhoria das condições materiais do homem. Uma vez que a quantificação facilitaria tal coisa, os aspectos da natureza que poderiam ser descritos em termos puramente matemáticos adquiriram uma importância especial, e os que não puderam acabaram parecendo, do ponto de vista desta nova abordagem mundana do conhecimento, no máximo irrelevantes e no mínimo distrativos. Assim é que as causas finais, os poderes invisíveis, as formas substanciais e coisas similares foram jogadas pela janela. O mesmo aconteceu com os aspectos qualitativos da natureza. As cores, odores, sabores, sensações, sons, etc, ao menos como é entendido pelo senso comum, variam de observador para observador – pense naquelas velhas historinhas filosóficas como a da água à temperatura ambiente que parece morna para uma mão e fria para outra, a do daltonismo, etc –, algo que as deixa mal encaixadas em uma ciência que procura tornar a natureza sujeita à predição e controle humanos. Que se jogue isso pela janela também. O mundo físico seria redefinido como consistindo de partículas incolores, inodoras e insípidas em movimento; e a cor, a temperatura, etc, seriam completamente redefinidas em termos de relações quantificáveis mantidas entre tais partículas (p. ex. o calor e o frio em termos de movimento molecular). E quanto à cor, odor, sabor, etc, conforme o senso comum as compreende? Por sua vez seriam redefinidas como “qualidades secundárias” (ou melhor, idéias de qualidades secundárias) inteiramente mentais, como ancestrais do conceito de qualia dos filósofos contemporâneos. Sob o ponto de vista em questão, elas não existem no mundo físico em si, mas somente na nossa representação perceptual do mundo.

Assim, deveria ser óbvio que, como no caso da intencionalidade, a noção de que não seja possível a explicação materialística dos qualia não é uma tentativa desesperada de evitar as implicações da ciência moderna, mas é, precisamente pelo contrário, uma conseqüência da ciência moderna. A própria concepção mecanística da matéria que subjaz a ciência (ou, melhor, que subjaz o que desde o século XVII se permite considerar como ciência) implica que os qualia (como os chamamos hoje) sejam imateriais ou não-físicos. Muitos dos primeiros pensadores modernos – Descartes, Cudsworth, e Locke, por exemplo – enxergaram isso, o que é parte da razão deles serem dualistas. Dada a concepção mecanística da natureza, esses pensadores concluíram que as “qualidades secundárias”, “qualidades sensoriais”, “qualia”, ou como quer que você queira chamar, são necessariamente imateriais, precisamente porque a matéria foi (re)definida pela filosofia mecânica em contraste a essas qualidades.

Alguns naturalistas contemporâneos – Joseph Levine, Thomas Nagel, e John Searle, por exemplo – têm mais ou menos identificado isso, reconhecendo que nada há no conceito materialista contemporâneo de matéria (que deriva da concepção “mecânica” do século XVII) além do seu contraste com as características “qualitativas” (e intencionais) de nossa experiência do mundo. Precisamente por esta razão é que todos esses três pensadores têm tratado (das suas maneiras distintas) o materialismo moderno como profunda e conceitualmente problemático, embora não tenham chegado a abraçar o dualismo. Mas outros naturalistas contemporâneos – Dennett e Churchlands, por exemplo, isso sem mencionar incontáveis outras mentes menores do tipo que escrevem grosseiros panfletos ateístas e povoam os livros de neurociência – ignorantemente sugerem que não há nenhuma boa razão para pensar que a mente deixará de render-se ao mesmo tipo de explicação redutivista em cujos termos todo o restante na natureza já foi explicado.

Na verdade, há uma razão muito boa para que a mente deva ser especialmente resistente a tal “explicação”; precisamente porque tudo que não se encaixa na imagem mecanística-cum-quantificacional do mundo natural não foi “explicado” de forma alguma pela ciência, mas simplesmente varrido para debaixo do tapete da mente e tratado como uma mera “projeção”. Isso é verdade particularmente no caso de tudo que na natureza pareça ou lembrar a causalidade final ou possuir um caráter qualitativo irredutível (oposto ao quantitativo). É conceitualmente impossível que a própria mente seja “explicada” da mesma forma – isto é, terminando por varrer o problam –, o que é a razão porque a filosofia moderna enfrenta um “problema mente-corpo” de um tipo que não existia antes da revolução mecanística e porque todas as tentativas materialistas de “explicar” a mente são de fato versões disfarçadas do materialismo eliminativo. A cansativa mentira de que “todo o resto já foi explicado em termos materialísticos” é, portanto, um gigantesco jogo de conchas, malandragem pura, uma fraude completa do início ao fim. (Este é um tema que explorei pela primeira vez no meu livro Philosophy of Mind e que desenvolvo melhor no The Last Superstition)

De qualquer forma, temos agora um breve argumento em favor do dualismo, que pode ser resumido assim: dada a própria concepção materialista (mecanística-cum-quantificacional) da matéria, as cores, odores, sabores, etc, como nós as experimentamos, não existem no mundo material em si; mas tais qualidades existem nas nossas representações perceptuais do mundo material; logo, existem características do mundo – isto é, essas qualidades sensoriais ou “qualia” que caracterizam nossas experiências perceptuais – que não são materiais ou físicas.

Obviamente este argumento levanta questões sobre como essas características imaterais se relacionam com as materiais – Elas são básicas ou emergentes? Como elas podem casualmente interagir com as materiais? Elas são inerentes a uma substância física ou não-física? –, mas o fato de que ele as levanta não tem a ver com o rigor do argumento em si. A minha opinião é a de que as respostas do dualismo padrão (cartesiano) a tais perguntas são problemáticas precisamente porque ele aceita a mesma concepção mecanística da matéria à qual os materialistas se prendem. A abordagem correta é desafiar tal concepção e retornar para a perspectiva aristotélico-escolástica que ela substituiu. Mas se estou certo sobre isso ou não é também irrelevante para o argumento recém colocado, que não assume nenhuma das premissas aristotélico-escolásticas, mas simplesmente retira as conseqüências da mesma concepção da matéria com a qual os próprios materialistas se comprometem. Quaisquer que sejam as deficiências do dualismo cartesiano, elas não chegam perto da absoluta incoerência e ignorância do materialismo contemporâneo.

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