terça-feira, 13 de abril de 2010

Alguns breves argumentos em favor do dualismo, Parte I

Traduzido do blog http://edwardfeser.blogspot.com/


Não é razoável esperar que mesmo o melhor argumento em favor de uma posição filosófica controversa possa, de imediato e por si mesmo, convencer o mais cético oponente – ou, de fato, sequer movê-lo no sentido de reconsiderar sua posição. Simplesmente não é assim (não normalmente, pelo menos) que a mente humana funciona. Uma discussão sobre algum argumento em particular a favor da existência de Deus, do dualismo mente-corpo ou da moralidade sexual tradicional (para pegar apenas três exemplos) pode refletir um tácito desacordo sobre pressupostos metafísicos fundamentais, tão profundo e inconsciente que os lados da discussão (ou ao menos um deles, geralmente o cético ou “naturalista”) mal tem noção de que tais princípios sequer existem, e é por isso que com freqüência passam batido por eles. O que parece uma óbvia objeção a um argumento pode normalmente na realidade constituir-se como uma falha em ver a razão do argumento, e em particular uma falha em ver que o que o argumento faz é precisamente colocar em questão a inteligibilidade ou justificabilidade racional da própria objeção. Enquanto o argumento em questão pode em muitos casos ser exposto de forma muito simples e direta, podem ser necessárias páginas e páginas, ou mesmo um livro inteiro para se construir o cenário no qual os termos e pressupostos básicos sejam bem compreendidos e aquelas incontáveis objeções descabidas possam ser pacientemente jogadas fora, como muito do lixo intelectual que fica no caminho do entendimento.

Algumas objeções comuns ao dualismo são assim. Elas assumem, falsamente, por exemplo, que qualquer argumento em favor do dualismo deva ser algo análogo a um argumento “Deus das lacunas”, por assim dizer – um que busca explorar alguma lacuna atual no nosso conhecimento do cérebro e sugerir que a “hipótese” de uma substância imaterial possa explicar o que os neurocientistas até agora não puderam. Então, se objeta que tal explicação violaria a navalha de Ockam, e que a neurociência já “explicou” x, y e z, e que portanto se pode esperar que ela explicará todo o resto, etc. Eu ouço essas objeções freqüentemente. Geralmente são apresentadas por pessoas que até têm boas intenções e que não estão interamente por fora de alguns argumentos apresentados tanto por materialistas quanto por anti-materialistas na filosofia da mente. Contudo, elas refletem um entendimento muito superficial do debate, pois os principais argumentos em favor do dualismo não possuem essa estrutura de forma alguma. Eles não são “hipóteses” “explicativas” semi-científicas que “postulam” a existência disto ou daquilo como um caminho entre outros (embora o mais “provável”) para “explicar” “a evidência”. Eles se pretendem, pelo contrário, como estritas demonstrações metafísicas. Eles ou provam conclusivamente que a mente é imaterial ou não provam nada. E, se provam, não pode haver espaço para o materialista buscar outros caminhos possíves para explicar “os dados”. Pois a existência de uma mente imaterial, ou de um aspecto imaterial da mente, com tal prova, simplesmente tomará a si mesma como um dado que qualquer teoria aceitavel terá de considerar.

Novamente, isso não significa que se devam julgar tais argumentos baseados em uma reação imediata a uma primeira leitura; provar algo conclusivamente não é o mesmo que prová-lo instantaneamente, para a satisfação imediata do cético mais hostil e teimoso. Mesmo a boa compreensão de um argumento, especialmente na metafísica, pode exigir um grande esforço e sustentação mental. Ainda assim, alguns argumentos dualistas são claros o suficiente para no mínimo o seu impulso básico ser exposto de forma bem sucinta, mesmo que um tratamento completo exigisse várias explicações posteriores desta ou daquela premissa ou conceito central. Neste e nos próximos posts eu quero apresentar alguns desses argumentos, da forma mais breve possível. (uma maior elaboração pode ser encontrada em meus livros Philosophy of Mind e The Last Superstition.)

Um aspecto da mente que os filósofos têm tradicionalmente considerado particularmente difícil de explicar em termos materialistas é a intencionalidade, que é a característica de um estado mental em virtude do qual ele significa, envolve, representa, aponta, dirige-se a algo, geralmente algo além de si mesmo. O seu pensamento sobre o seu carro, por exemplo, é sobre o seu carro – ele significa ou representa o seu carro, e portanto “aponta a” ou é “dirigido” ao seu carro. Desta forma, ele é como a palavra “carro”, que envolve ou representa carros em geral. Note, contudo, que, considerado meramente como um grupo de marcas de tinta ou (se falado) ondas sonoras, “carro” não representa nem significa coisa alguma; ele é, por si só, de qualquer maneira, nada mais do que um padrão de marcas de tinta ou de ondas sonoras sem significado e adquire qualquer sentido que possua a partir de seres falantes como nós, que, com a nossa capacidade para o pensamento, podem conferir significado a formas físicas, sons, e assim por diante.

O enigma que a intencionalidade coloca para o materialismo pode ser resumido assim: os processos cerebrais, como as marcas de tinta, as ondas de som, o movimento de moléculas de água, a corrente elétrica e qualquer outro fenômeno físico que você imaginar parecem claramente desprovidos de qualquer sentido inerente. Por si mesmos eles são simplesmente padrões de atividade eletroquímica sem sentido. Contudo, nossos pensamentos possuem um sentido inerente – assim é que eles podem concedê-lo a marcas de tinta, a ondas de som, etc, a coisas que de outro modo não teriam sentido algum. Nesse caso, portanto, parece que nossos pensamentos não podem ser identificados com nenhum processo físico no cérebro. Resumindo: pensamentos e coisas similares possuem um sentido ou uma intencionalidade inerente; os processos cerebrais, como marcas de tinta, ondas sonoras e similares, são totalmente desprovidos de qualquer sentido ou intencionalidade inerente; então os pensamentos e seus semelhantes não podem ser identificados com processos cerebrais.

Você pode, como eu sugeri, encarar isso somente como um “enigma” para o materialismo – um que possa ser resolvido desenvolvendo-se uma complexa análise functional de estados mentais, ou enquadrando o materialismo no conceito de “superveniência” ao invés de identidade ou redução, ou seja lá o que for. Ou você pode encará-lo como uma colocação muito simples e direta de uma objeção que, mesmo que possa também ser formulada em termos muito mais sofisticados e técnicos e de uma forma que leve em conta e se antecipe às várias objeções materialistas capazes de ser levantadas, vá direto ao âmago do problema do materialismo e de fato mostre porque este não pode ser verdadeiro.

Esta última visão é a que endosso. Eu sustento que o problema para o materialismo acima descrito é insuperável. Ele mostra que uma explicação materialista da mente é impossível em princípio, uma impossibilidade conceitual. E a razão para isso envolve em parte o conceito de matéria com o qual os próprios materialistas se comprometeram, ao menos implicitamente. Alguns dos próximos posts nesta série irão desenvolver tal sugestão. Ao longo do caminho, veremos (entre outras coisas) que a alegação materialista comum de que “todo o resto foi explicado em termos materialistas” é uma lenda urbana, baseada em nada mais do que malandragem conceitual combinada com ignorância histórica. Fique ligado.

Um comentário:

  1. Primeiro argumento: Argumento da "intencionalidade"

    "Resumindo: pensamentos e coisas similares possuem um sentido ou uma intencionalidade inerente;"

    A intencionalidade nada mais é que um vício, trata-se da nossa moral ao decidir em uma polêmica, ou nosso gosto ao decidir um hábito.

    Ela vem, não de um agente externo, tal como uma mente fora do corpo, mas das nossas ações passadas, tal como se definem nossos vícios, se definem nossas intenções, afora exceções, quando a razão nos faz contrariar nossas intenções, assim como nossos vícios, por pararmos para pensar melhor nisso. E nesse segundo caso, trata-se de utilizar a lógica, inerente à construção do intelecto, elétrica e assim fisicamente presente na nossa massa cinzenta, o cérebro, também não se trata de um agente exterior ou paralelo à matéria, mas sim imanente a ela.


    Agora que refutei seu argumento provindo do dualismo em ataque ao materialismo, sinto-me no dever de te oferecer um argumento provindo do materialismo.

    Fosse a mente humana externa, nosso cérebro deveria ter (seguindo qualquer tipo de lógica baseada na realidade científica não apenas dos experimentos já realizados, mas das previsões para qualquer fenômeno) alguma forma de exportar suas ideias para outro plano.

    Muito se diz da energia emanada pelo cérebro, energia de leituras ainda desconhecidas. Porém apesar das leituras, e da pouca energia que essa é, ela não passa de um subproduto das operações cerebrais, e não um produto primário. Creio que a habilidade de transitar um pensamento de um plano de existência para outro deveria provir de um orgão bem especializado e bem hábil, algo que não temos, ou seja, é uma total ausência de evidências plausíveis.

    Agora outro argumento: História de vida.

    Como já dito, a intencionalidade que temos hoje em muito deve ao nosso passado. Não só. Nossa mente, nossas opiniões, a forma como interpretamos e a intensidade com que sentimos nossas emoções, tudo isso pode ser observado como fruto dos acontecimentos práticos e reflexões teóricas que fizemos em vida.

    Se pegarmos o argumento espiritista, uma reencarnação não precisaria de anos para aprender a falar, e, mesmo se por motivos biológicos, ela precisasse, não precisaria de aulas. Não precisaria aprender a escrever, para então escrever, nem aprender a ler, para então ler, um código que ela já conhecia de forma exterior à matéria.

    Caso descartemos esse argumento espiritista, ficamos com a questão: Se a alma exterior não possui uma reencarnação, então o que é que ela possui que o cérebro não tem? Bom, a intencionalidade eu já demonstrei que não é. E intencionalidade me parece bem próximo de, num viés religioso, discutir "alma", a boa intenção é uma alma santa, a má, uma perversa. Mas pode não ter sido sua reflexão consciente.

    Então se o cérebro material é autossuficiente em seus recursos para os produtos que nós observamos, e se não observamos outros produtos que não os que podemos encontrar causas cerebrais, não há qualquer evidência de dualismo, não é portanto passível, neste momento, de qualquer teoria fundamentada. É metafísica cartesiana, já refutada (e MUITO BEM refutada) pela metafísica espinosana.

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